O MITO DO FILME DE VANGUARDA
por Fred Camper



1.


Eu não fui um fã de cinema quando criança. Com 15 anos, em 1963, talvez um pouco pretensiosamente, fiquei entusiasmado com minhas descobertas de poesia e música clássica. Um amigo me convidou para a projeção de um filme “experimental” que ele havia acabado de ver e que adorou: Twice a Man (1963-1964), de Gregory J. Markopoulos. Ao contrário de vários jovens da minha idade que descobriram o filme na mesma época e que escreveram sobre esta descoberta décadas mais tarde, sua temática homossexual, ainda que perceptível e interessante, estava longe de ser o ponto principal para mim. Em vez disso, lembro-me de pensar na época: “este é um filme que organiza suas cores e formas com a integridade que os sons são organizados na música clássica.” Logo eu estava vendo filmes de Ron Rice e Stan Brakhage, e também descobrindo Alfred Hitchcock, Samuel Fuller, John Ford, e logo em seguida D. W. Griffith, F. W. Murnau, Roberto Rossellini e Kenji Mizoguchi. Meu critério de “música clássica” permaneceu o mesmo para todos os filmes, e de uma forma ou de outra todos os que amei o cumpriram, ainda que com muitas falhas.

Eu descobri que alguns blockbusters podiam me entreter vagamente ainda que parecessem esteticamente sem valor, enquanto outros me causavam repulsa, mas que nenhuma dessas experiências parecia importante se comparadas ao poder expressivo e até mesmo transcendente da verdadeira arte. Assim como Paul Strand, escrevendo em 1923 – quando a fotografia dificilmente era tratada seriamente por qualquer um no mundo das artes –, declarou que o teste para uma fotografia deveria ser “se você consegue imaginar a pendurando na mesma parede que uma gravura de Dürer, uma pintura de Rubens ou mesmo Corot, sem que a fotografia caia em pedaços”, eu passei a aplicar o que mais tarde chamei de meu “teste de Bach” nos filmes. De fato, existem exceções que são interessantes em si mesmas, sem necessariamente exigir qualquer comparação direta com a música clássica – The Blood of Jesus (Spencer Williams, 1941), tecnicamente cru mas verdadeiramente sincero, Glen ou Glenda? (Glen or Glenda, Ed Wood, 1953), ou o uso incomum da técnica fílmica por Susie K. Benally em A Navajo Weaver (1966) vêm à mente. E existem os filmes que aparentam não depender de maneira alguma do visual, como o So Is This (1982) de Michael Snow, inteiramente textual, ainda que Snow, estreando uma grande obra, La région centrale (1971), em Nova York mais de quatro décadas atrás, falou de um filme curto que também estava mostrando com certo desprezo, enquanto mencionava que se permitia pensar em La région centrale em relação a Bach. Mas os filmes de Hollywood que eu amo eu defendo, em contraste com muitos autoristas, quase inteiramente em termos de forma. Enquanto outros veem Raoul Walsh como um “contador de histórias nato”, eu vejo um poeta do espaço.

Este problema, como irei argumentar, não é algo como uma questão de gostos pessoais – uma pessoa gosta de Bach, outra de comédias românticas; uma prioriza histórias, outra imagens. Eu também não desejo negar a ninguém prazeres não-estéticos; ninguém precisa dedicar todo o seu tempo à apreciação da arte mais elevada. Eu não o faço. Mas, ao mesmo tempo, eu argumentaria que tudo está em jogo nesta diferença. A noção de que cada um tem gostos e desgostos e de que tudo é igualmente válido leva muitos a imbecilizar ao invés de desenvolver suas mentes, chafurdando nos envolvimentos escapistas da televisão imersiva a custo de muitas coisas. Reagimos à vida de personagens ficcionais desses programas em termos de emoção crua, em vez de conscientes do seu lugar em uma forma. Um dos muitos perigos de permitir que reações subjetivas a “humanos” criados pela mídia dominem a vida das pessoas pode ser encontrado no estado degradado da política atual, onde, em vez de utilizar fatos e raciocínios para tentar decidir quais candidatos oferecem os melhores programas para nossos futuros, a maioria dos votantes faz escolhas com base nos gostos e desgostos mais superficiais, incluindo reações instintivas a candidatos baseadas em pouca evidência, escolhendo até mesmo candidatos que foram estrelas de cinema ou televisão com base nas suas carreiras pregressas, e com consequências potencialmente desastrosas para nações e para todo o mundo. Obras de arte, é claro, não se baseiam em fatos e raciocínios, mas suas estruturas complexas, se completamente engajadas com isto, levam o espectador a pensar, a repensar, a avaliar, e finalmente a se tornar mais, em vez de menos, consciente de por que reage do modo como reage a cada um.

Na adolescência, comecei a perceber um padrão entre muitos amantes de cinema, uma cisão entre aqueles que defendiam principalmente filmes de vanguarda ou experimentais, e aqueles que defendiam a Hollywood clássica. Os dois poderiam concordar sobre um Lang antigo, ou um filme “de arte”, mas geralmente tendiam a defender estéticas diferentes, e frequentemente tinham gostos diferentes em literatura, os narrativistas preferindo ficção em prosa, e os vanguardistas, poesia. A defesa da narrativa tendia a falar de personagens, atores, e os efeitos emocionais das histórias, indicando um envolvimento escapista que, para os mais perceptivos entre eles, podia ser realçado por composições consistentemente expressivas ou um movimento de câmera impressionante, ou outros aspectos de direção.

Os vanguardistas tinham um argumento contra tudo isso que eu respeito bastante. Geralmente declarado como dogma em vez de argumentado de fato, pode ser encontrado desde os manifestos de Dziga Vertov no início dos anos 1920. As crenças frequentemente não-declaradas que informavam essas atitudes são mais ou menos as seguintes: o cinema narrativo convencional é derivado da literatura do século XIX, do que decorre os filmes se tornarem como livros ilustrados nos quais o estilo, tal como é, serve à história, a ilustra, em vez de possuir qualquer integridade formal em si. Concebidos para imergir o espectador num mundo de emoções escapistas, estes filmes são esteticamente vazios e politicamente regressivos; seus sonhos atraentes e suas fantasias baseadas em personagens separam o espectador do mundo tal como ele é, negando a eles uma compreensão verdadeira e um pensamento genuinamente complexo e, portanto, permitindo que as forças malignas na sociedade ajam a seu próprio favor. É apenas o verdadeiro cinema “avançado” que pode engajar o espectador de maneira significativa, e, ajudando-nos a levar vidas mais conscientes, talvez possa tornar o mundo um lugar um pouco melhor.

O engraçado é que eu basicamente concordo com esta análise quando aplicada à imensa maioria dos filmes narrativos. Ela ainda descreve a maior parte do que se vê no mundo atual. Em filmes comerciais esteticamente vazios, as imagens parecem escolhidas sem o mínimo de inteligência além da escolha de imagens prazerosas para ilustrar a ação, ou com um estilo consciente tão amaneirado e incômodo (ao menos para mim, se não para outros!) que nunca vai além de suas escolhas superficiais para chegar a algum tipo de expressão genuína. Esta descrição certamente parece se aplicar ainda mais intensamente ao pouco que eu pude ver da televisão multiepisódica. As melhores narrativas na literatura, por outro lado, são contadas com tal profundidade artística que o uso da linguagem as encerra em um universo próprio, uma apresentação da visão que dá à “história” um sentido tão profundo que nenhum resumo detalhado é possível. Os maiores filmes narrativos funcionam de maneira semelhante no que diz respeito ao estilo. Assim, para mim, a redução ao cinema à narrativa na maioria das obras de imagens em movimento soa como uma verdadeira tragédia.

A maneira empobrecida na qual muitos, inclusive os críticos, parecem ver a maioria dos filmes pode ser demonstrada pela aplicação do que eu chamo de “teste do rádio”. Imagine que o filme discutido, seja por críticos mainstream ou por um blog de cinema, ou numa conversa entre fãs de cinema, fosse na verdade uma peça de rádio que consistisse na trilha sonora do filme com intervenções ocasionais, necessárias para descrever ações importantes não mencionadas no diálogo, tais como “o barco está começando a afundar”. Pergunte-se então se a discussão crítica do filme seria alterada, e em quanto seria. Frequentemente, nenhuma mudança seria necessária, porque a “discussão”, do modo como ocorre, é ou apenas mera sinopse da trama, ou uma sinopse da trama mais um breve comentário sobre algumas emoções ou ideias, como se o modo como a trama é apresentada em imagens fosse irrelevante – o que, infelizmente, é o caso na maioria das vezes. Será que nós, como criaturas inteligentes e conscientes, crescemos de algum modo ao sermos manipulados por ilustrações amorfas sequenciadas de maneira ainda mais amorfa, que simplesmente realçam as emoções de uma história pouco profunda? (Eu não estou, entretanto, defendendo adaptações fílmicas de grande literatura, as quais, despojando a história de sua prosa, irão, se não tiverem um estilo próprio, parecer sem valor, ou quase isso.)

Ainda assim, não posso aderir aos colegas vanguardistas na condenação do cinema narrativo comercial, porque existem numerosas exceções a este padrão. Já mencionei várias delas. Há também Howard Hawks, Vincente Minnelli, Robert Bresson, Fritz Lang, Max Ophüls, e muitos, muitos outros. Ver além da história nestes filmes pode exigir o desenvolvimento de uma sensibilidade, o que significa que, para o público mainstream, eles podem parecer indiferenciáveis dos filmes que chamei de esteticamente vazios, com todos os efeitos socialmente negativos já mencionados, mas para o espectador atento eles compartilham a complexidade da melhor arte.


2.


Para argumentar contra a condenação vulgar da narrativa comercial pelos defensores da vanguarda, eu gostaria de estabelecer um princípio geral, um que se aplica não apenas a discussões e análises de cinema mas a toda arte visual. Ainda que a discussão sobre arte não possa nunca ter a provabilidade positiva de proposições matemáticas ou o verificacionismo experimental da física, ainda assim eu gostaria de propor algo que penso estar um tanto próximo de um teorema demonstrável. Diz respeito ao tipo de argumento a favor da arte em que me envolvi pela maior parte da minha vida: descrever uma obra de arte, ou uma parte de uma obra de arte, tão precisamente quanto possível, e então oferecer uma interpretação do seu efeito, ou usar a descrição como uma justificativa para uma reivindicação da sua grandeza. Às vezes, essas descrições parecem verdadeiras de maneira trivial, como quando o corte para um close em uma cena dramática parece nos envolver nas emoções de uma personagem específica. Nicholas Ray, descrevendo o uso de planos zenitais de helicóptero em seu primeiro filme, Amarga esperança (They Live by Night, 1947-1948), disse que eles sugeriam “destino”, e sim, planos do alto frequentemente diminuem personagens, fazendo com que pareçam pequenas peças em um drama muito maior e que está além dos seus controles. Quando Scottie leva Madeleine para fora de seu apartamento em Um corpo que cai (Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958) o ângulo do alto estranhamente comprimido que descreve esta ação é apropriado em relação ao desastre vindouro – assim como o plano do alto do carro que se segue imediatamente.

Esses pontos parecem óbvios, mas será que o são de fato? Eu me lembro de uma edição antiga de um manual tradicional de cinema em que se afirmava que a grande maioria dos movimentos de câmera expressam a instabilidade do universo. Na verdade, o que eles geralmente “expressam” é que uma personagem está andando pela rua, já que muitas das escolhas estilísticas na cinematografia narrativa podem ser consideradas, ao menos em parte, pela necessidade de mostrar a ação. Nenhuma técnica cinematográfica possui um efeito previsível, porque suas características descritíveis, assim como todas as características do momento em que são utilizadas e seu lugar no filme todo, possuem, como um cientista diria, um número quase infinito de variáveis. A iluminação, o movimento, o ritmo da montagem, o roteiro, a atuação, o desenho de som, a distância focal da lente utilizada, e o contexto cinematográfico mais amplo das interrelações percebidas pelo espectador, ainda que inconscientemente, entre todos esses elementos, podem facilmente dar a qualquer dispositivo sentidos adicionais, às vezes não-tradicionais e contraintuitivos. De fato, o movimento para um ângulo alto dos dois protagonistas na conclusão de O paraíso de um homem (Man’s Castle, Frank Borzage, 1933) representa não o destino opressivo ou iminente, mas uma materialidade sem peso, e a recém-conquistada liberdade das duas personagens.

Na arte visual, tanto Agnes Martin como Sol LeWitt produziram grades. Diz-se que a grade expressa a era das máquinas, a geometria, a alienação em relação à natureza. LeWitt fotografou grades nas ruas das cidades, e em sua obra ele desenhou grades que se referem à geometria e criam um sentido de precisão, de conformidade às suas próprias formas, tudo confirmando a interpretação tradicional. As grades de Martin são gentis, emocionais, flexíveis, evocativas, poéticas, parecem conduzir o espectador para fora de si mesmas, e refletem uma profunda inspiração da natureza.

Um dos maiores filmes de Jacques Rivette, Noroeste (Noroît, 1975-1976), é uma espécie de melodrama de piratas. De quando em quando suas imagens são separadas por uma tela completamente negra, com números que tomam a forma de, por exemplo, IV/3, 4, 5. Quando comecei a identificá-los como números de atos e cenas (e de fato se referem à peça que serve de base para o filme), eles passaram a produzir um efeito sombrio, um tanto misterioso, uma metalinguagem expansiva, não tão diferente de efeitos similares em outros de seus filmes, como a alternância do material em 16 mm. do teatro e o drama em 35 mm. no absolutamente poderoso Amor louco (L’amour fou, 1967-1969). Para qualquer um que conheça os filmes de Rivette, minha interpretação desses números deve parecer plausível mesmo sem que se tenha visto Noroeste, já que Rivette frequentemente acompanha seus dramas com efeitos que parecem invocar uma consciência, ou espaços, fora dos seus momentos imediatos. Ainda assim, minha descrição omitiu três aspectos importantes desses números. Primeiro, eu não descrevi a fonte utilizada. Na realidade, é uma fonte simples. Mas suponha que os números aparecessem em uma fonte ornada, gótica, ou uma fonte infantil, desengonçada e espirituosa (inclusive, há uma fonte chamada “kids”). O efeito desses números seria neste caso completamente diferente. Segundo, eu não descrevi sua posição na tela, que é o canto superior esquerdo. Se colocadas no centro, elas teriam uma função completamente diferente, provavelmente menos expansiva, parecendo nomear as imagens que se seguem ao invés de se referir a elas. Também não descrevi sua cor, que é branco. Considerando um contra-exemplo improvável, poderiam ser rosa com um padrão pontilhado. Rivette teria feito um filme alterando um ou todos esses elementos, e poderia ter sido um filme tão interessante quanto o que fez, mas seus sentidos teriam sido diferentes. Apenas este exemplo basta para demonstrar que não se pode tirar conclusões da descrição física dos elementos de um filme, que mesmo uma mudança aparentemente pequena pode ter um caráter transformador. Isto pode ser provado com o exemplo aparentemente simples dos números em uma tela que antes estava vazia; meu argumento seria ainda mais persuasivo no caso de um filme com canções, danças e múltiplas personagens com composições repletas de detalhes que são alterados com a montagem. Tudo que um crítico que utiliza o método descritivo pode fazer é tentar guiar o espectador pela sua experiência (a do crítico) com o trabalho, oferecendo a ele uma reação e uma abordagem.

Espero ter demonstrado, ou mesmo provado, um teorema: nenhuma descrição verbal de um momento cinematográfico, independente de quão detalhada, pode dizer com certeza que leva a uma interpretação do que se segue. Ou, numa formulação concisamente equivalente: para cada descrição de um filme completo, ou de um momento num filme, seguida por uma interpretação, um filme alternativo pode ser construído que se enquadra perfeitamente na descrição mas possui um efeito ou sentido completamente diferente, ou mesmo oposto àquele oferecido na interpretação. Eu gostaria de acreditar na existência, ainda que não possa citar exemplos, de um melodrama completamente escapista e com um estilo aparentemente “invisível” que tenha muitos dos efeitos de um filme de vanguarda. Eu não posso citar este exemplo porque eu não acredito que o estilo de Douglas Sirk seja “invisível”, mas para aqueles que acreditam nisso, eu poderia sugerir seus filmes, ou pelo menos momentos-chave neles, como um passo em direção à vanguarda.

Se aprendemos alguma coisa com a arte do último século, de LeWitt e Martin e tantos outros, é que não há regras, que tudo pode ser excelente, e que uma descrição de uma obra de arte nos diz pouco sobre seus efeitos, ethos, ou sentido. Mas alguns ainda persistem na suposição de que todos os filmes que compartilham determinadas características – feitos para lucro comercial, com atores pagos falando em sincronia labial, e imagens que contam uma história – terão efeitos semelhantes, e podem ser comentados como um grupo, com a maior parte desse grupo permanecendo não-vista. Para começar a entender qualquer filme, deve-se primeiro vê-lo, e também vê-lo como novo, não com o conhecimento do cinema passado ou da cultura na qual filmes frequentemente se baseiam, mas sem suposições em relação ao que o filme em si vai se tornar, como irá funcionar, o que irá significar.

De maneira semelhante, nossa percepção subjetiva de cada momento de um filme depende de todos os outros momentos daquele filme, um efeito que se fortalece numa revisão e nas revisões seguintes; espero que o leitor concorde que não se pode dizer que se entende um filme vendo-o apenas uma vez. Há casos famosos de como a reação de todos a uma narrativa muda com a revisão, como em Um corpo que cai e Psicose (Psycho, Alfred Hitchcock, 1960). Certamente é impossível ver o Lola Montes (Lola Montès, 1955) de Ophüls uma segunda vez sem a memória do travelling devastador com o qual se conclui. Assista, alguma hora, ao muito desprezado mas bastante maravilhoso Clara (Clara’s Heart, Robert Mulligan, 1986-1988). E depois veja-o novamente, e espero que perceba como o olhar no plano final ecoa a imagem de abertura, dois olhares através do espaço que englobam o crescimento e a mudança do protagonista e a conexão profunda que ele estabeleceu com outra pessoa bem diferente, de um modo que é muito distinto do padrão como os closes de um rosto nos aproximam de suas emoções. A memória da conexão entre os dois olhares que emolduram o filme inteiro irá colorir as suas revisões seguintes, irá inclusive ajudar a reagir a momentos semelhantes no filme de maneira mais profunda. Há também, é claro, muitos efeitos sutis possíveis, closes que ecoam outros closes, closes que tanto ecoam como contrastam com planos gerais, interdependências interpretativas que podem ser encontradas em praticamente todo filme, compostas com um cuidado que considera como e onde cada imagem pertence.

A subjetividade do espectador individual também tem um papel na determinação das reações. Um espectador é diferente do outro; um espectador também pode ser diferente de um dia para outro. Um espectador muda conforme vê mais filmes, e mais filmes de um mesmo diretor. As condições nas quais vê os filmes também podem ter um papel neste processo. Um filme visto no celular; ou numa TV com amigos barulhentos que falam e riem do filme; uma comédia vista com um público gargalhando; a mesma comédia vista sem um público; um filme visto numa cópia desbotada ou gasta ou numa cópia ruim em vídeo; um filme de vanguarda visto com o realizador apresentando-o, no qual a reação será matizada por essa introdução; um filme visto sozinho numa cópia imaculada em 35 mm. numa projeção particular – todas essas condições têm um papel na reação ao filme. A equação na qual a narrativa anticomercial reside, de que os elementos particulares do estilo determinam uma reação particular, é falsa por mais de uma razão: não se pode nunca enumerar os elementos de um estilo adequadamente com palavras; espectadores são diferentes uns dos outros; espectadores mudam; as condições de visionamento mudam.

Se não pode haver conexão formulaica entre qualquer aspecto de uma obra de arte visual e seu efeito ou sentido, então o caso do vanguardista contra o cinema de narrativa clássica deve ser jogado no lixo. Um filme em que a câmera parece seguir servilmente a ação também pode ser poético, e pode mesmo expressar um sentido oposto ao do que é sugerido pela ação. Por outro lado, existem filmes com desfoques, arranhões e pinturas na película, montagem radicalmente dissociativa, e imagens constantemente desorientadoras que parecem ser totalmente derivativos de obras anteriores, oferecendo nada mais que a narrativa ilusionista mais escapista.

Outro aspecto negativo de nossa cultura fílmica e que é relevante aqui é a predominância das listas de “melhores filmes”. Eu mesmo contribuí com algumas, mais recentemente com a votação de 2012 da Sight & Sound. Primeiro eu construo minha lista atual de melhores diretores, e então tento escolher os “melhores” filmes de cada um. Como essas listas recebem atenção, a possibilidade de advogar a favor de filmes pouco apreciados e que eu considero sublimes é atraente demais para deixar passar. O problema com tais abordagens é a ênfase em filmes individuais, transferida da cultura de massa dos filmes populares. Essa ênfase se encaixa muito bem no consumismo desenfreado de nossa época: melhores restaurantes, melhores hotéis, melhores dentistas, melhores filmes. Mas os maiores filmes são muitas vezes difíceis de se apreciar sem um conhecimento do conjunto da obra do cineasta. O espectador que deseja “experimentar” Brakhage e que escolhe o meu “preferido”, Egyptian Series (1980-1983), pode ficar um tanto desconcertado. O espectador que nunca viu um filme de John Ford e que decide começar com o meu preferido, O sol brilha na imensidão (The Sun Shines Bright, 1953), pode não saber muito bem o que fazer com ele; este é um dos filmes mais comprimidos, até mesmo um dos mais herméticos, e logo dos menos acessíveis de Ford, sendo assim melhor visto por alguém já familiarizado com seus tropos. O ponto central é que cada grande cineasta reinventa o cinema, e estabelece, no decorrer de uma carreira, uma linguagem cinematográfica única, através de imagens, montagem, ritmo, e elementos como as histórias que seleciona, e as atuações, no caso de um cineasta narrativo, de modo a estabelecer uma visão única. O espectador que viu um certo número de filmes de um cineasta que possua uma sensibilidade no seu uso de espaço visual aprenderá a linguagem única pela qual os filmes se comunicam, e estará portanto mais apto a entendê-los, entrando, com a obra dos melhores cineastas, em uma reimaginação do mundo que é quase magicamente extática, uma visão nunca antes vista. Esta descrição é tão verdadeira para os melhores cineastas narrativos quanto para os maiores vanguardistas. O espectador sério de cinema deve se afastar da ideia de que ver filmes consiste no consumo de filmes particulares, e deve seguir em direção à ideia do cinema como a entrada e a exploração de mundos alternativos, sejam eles os de Stan Brakhage ou de John Ford. Um imperativo ditado por essa ideia é que deve-se ver tudo o que se pode ver da obra de um cineasta, ver vários filmes múltiplas vezes, nas melhores versões possíveis. E essas não são sempre em celuloide, infelizmente; cada cópia em película de O sol brilha na imensidão que vi nos Estados Unidos está com nove minutos a menos, retirados do corte de Ford, mas que foram restaurados para o lançamento em Blu-ray.

Considere a imagem inicial de Anatomia de um crime (Anatomy of a Murder, Otto Preminger, 1959). Ela mostra um elemento que abre vários filmes: um carro sendo dirigido. A câmera observa uma estrada, um pouco acima do nível do carro, e faz uma panorâmica com ele conforme ele vem em nossa direção. Na medida em que o carro se move para encarar a câmera diretamente, a câmera o segue pela estrada na mesma velocidade, mas então, após alguns instantes, o carro começa a se mover para fora do enquadramento, e a câmera faz uma panorâmica à esquerda para segui-lo enquanto ele se afasta. Qualquer uma dessas três partes isoladas poderia parecer banal, os tipos de imagens vistas em milhares de filmes, mas a mudança entre elas altera o espaço, e nossas expectativas para os planos, duas vezes; o carro movendo-se em nossa direção e afastando-se de nós cria um efeito de “esticamento” da parte central, um efeito expansivo característico de Preminger, ainda que ele o crie de diferentes maneiras. O espaço é representado aqui como maleável, aberto, vasto, e propenso ao que eu gosto de imaginar como as transformações laterais de Preminger, ainda que transformações diagonais também as descrevam adequadamente.

Eu não percebi nada especial neste plano quando vi o filme pela primeira vez, décadas atrás, ainda que eu já tivesse visto e apreciado outros filmes de Preminger na época. Hoje, me parece um resumo de seu estilo. Movimentos diretos de aproximação e afastamento ou perseguições frontais são relativamente raros, utilizados apenas em momentos especiais, e o espaço está sempre sendo modificado por efeitos mais ambíguos e expansivos. Observe o longo plano de abertura da obra-prima A primeira vitória (In Harm’s Way, 1965), de cinco anos mais tarde, para um dos muitos exemplos. Também na montagem, Preminger frequentemente surpreende com cortes para diferentes locais, diferentes aspectos de uma história. Esses procedimentos são os paralelos visuais da famosa ambiguidade de seus dramas, muito comentada pelos analistas de seus filmes. Preminger na maioria das vezes evita escolher um lado, e mostra que não há simples certos e errados, fazendo com que a instável balança ética de um filme seja alterada de maneiras surpreendentes. Anatomia de um crime é de fato um grande exemplo. Mas “entender” Preminger visualmente pode tomar algum tempo, como no caso dos grandes autores; vários filmes vistos várias vezes, atentando para seus elementos visuais. Imagens justapostas no tempo em um filme narrativo podem certamente contar uma história, mas elas também podem, nos melhores filmes, construir um espaço, ou seja, podem se combinar para criar um mundo visual diferente de nosso mundo cotidiano ou do tedioso e incoerente fluxo de imagens dos filmes narrativos convencionais; podem ter sua própria noção de textura, seus próprios tipos de linhas e curvas, seus próprios ângulos, e sua própria sensibilidade para a qualidade do espaço que separa e unifica os objetos. Existe, então, um elemento “abstrato” presente na obra de muitos dos melhores cineastas de Hollywood, algo que não depende da narrativa, mesmo que seja rigorosamente conectado à história.


3.


O mito que eu gostaria de derrubar é que o cinema de vanguarda – que, no seu melhor, expressa de fato maneiras de ver e pensar não expressas antes, mudando portanto a consciência do espectador – é o único que atinge esse nível mais alto. O outro mito que gostaria de derrubar, e que é ainda mais presente, é de que o cinema é uma arte híbrida, e que um grande filme narrativo depende de um bom roteiro, boas atuações, boa direção de arte e assim por diante: o modelo “menu de restaurante” dos filmes. Se o cinema deve ser, como Strand desejou para a fotografia, uma arte à altura das outras, então deve usar essa qualidade que é única ao cinema: a habilidade de envolver o espectador em padrões de luz que ocupam um espaço plano predeterminado e controlado precisamente no tempo. Isso pode soar como uma descrição de um filme completamente abstrato, do qual existem inúmeros grandes exemplos, mas também pode descrever um filme de Otto Preminger, e filmes de muitos outros autores narrativos, ainda que deixe de mencionar elementos que também podem ser importantes, como as bandas sonoras. Compreender os usos de espaço no decorrer dos muitos filmes de Preminger exige tanto quanto compreender as melhores obras de vanguarda, e produz um pensamento e uma visão ativas que abrem novas possibilidades para o pensamento sobre o espaço de fato, e as relações sobre diferentes partes de nosso mundo.

Um filme narrativo pode ter três aspectos cruciais em relação ao seu estilo. O primeiro é o aspecto funcional, que todo filme narrativo que eu conheço demonstra. A câmera mostra a ação. Mesmo nos filmes comerciais mais incompetentemente dirigidos, as personagens principais são visíveis na tela na maior parte do tempo, e a câmera enquadra as imagens para mostrar o que acontece. A câmera e a montagem acompanham os movimentos das personagens. De fato, a maior parte das escolhas de composição, movimento, iluminação e edição podem ser explicadas pela necessidade de mostrar o que está acontecendo. Não há nada inerentemente artístico nisso tudo, mas o erro daqueles que criticam todo o cinema hollywoodiano é supor que um movimento de câmera que acompanha uma personagem não pode estar fazendo outras coisas ao mesmo tempo, como tentei mostrar em relação à abertura de Anatomia de um crime.

O segundo é o que pode ser chamado de aspecto expressivo. Muitos filmes bem feitos o possuem, ao menos no período clássico de Hollywood. Aqui, as técnicas cinematográficas elevam ou acrescentam ao sentido da narrativa. Temos o ângulo alto de Nicholas Ray, ou o maravilhoso raccord de Fritz Lang em M, o vampiro de Düsseldorf (M, 1931), ligando os movimentos do braço de um chefe do crime e de um chefe da polícia, ou o momento próximo ao final de O último hurrah (The Last Hurrah, John Ford, 1958) quando um cardeal que foi visitar o prefeito moribundo para no vão da porta para fazer o sinal da cruz, e Ford permanece em plano aberto ao invés de escolher o corte mais óbvio para um close. Aqui, como no decorrer de sua obra, Ford usa o plano aberto para evocar a noção de que um indivíduo existe como parte de uma comunidade, e em relação ao cumprimento das tradições, e o efeito aqui também depende da expectativa do close, estabelecida por outros filmes. A visão de Ford então é enriquecida com um close do repentinamente auto-assertivo prefeito moribundo, ainda mais perto da conclusão do filme.

Esses momentos são mais perceptíveis quando a câmera desvia da maneira mais óbvia de mostrar a ação, como na recusa do close por Ford. Em A sombra de uma dúvida (Shadow of a Doubt, Alfred Hitchcock, 1943), logo após a jovem Charlie descobrir uma terrível verdade na biblioteca, a câmera é elevada com uma grua até o teto enquanto ela sai, criando uma ideia de peso opressivo. Aqui não há razão “funcional” para que a câmera faça isso; poderíamos vê-la sair e perceberíamos melhor sua presença numa panorâmica à altura dos olhos.

Há também alguns momentos maravilhosos nesta categoria que utilizam técnicas geralmente mais ligadas ao cinema de vanguarda. Próximo do fim de Curva do destino (Detour, Edgar G. Ulmer, 1945), Al Roberts, esgotado e em choque, narra seu dilema enquanto a câmera se move de um objeto a outro em um quarto, com os objetos entrando e saindo de foco, evocando a desconexão de Roberts do mundo que habita. Próximo do fim de O poder da fé (The First Legion, Douglas Sirk, 1950-1951), um milagre é precedido por dois aterrorizantes planos desfocados de um altar de igreja, novamente usando a saída de foco para evocar a irracionalidade, ou a hiper-racionalidade. Mas claro, o desfoque pode também ser utilizado para suavizar, ou tornar algo mais delicado, como nos flashbacks nostálgicos. Qualquer um que pense que os cartoons clássicos de Hollywood são tão pouco artísticos quanto seus filmes deve atentar para a sublime desconstrução de Chuck Jones em Duck Amuck (1953), e então perceber como suas desorientações são ecoadas de maneira mais sutil em alguns dos melhores cartoons de Jones, como Ratos demolidores (Mouse Wreckers, 1948).

O terceiro aspecto, presente nos melhores filmes, pode ser chamado de “estilo profundo”, e é geralmente caracterizado por uma noção geral e única do espaço. Os filmes de Preminger já forneceram um exemplo. Howard Hawks criou um cinema baseado em personagens no qual seu uso sutil de perspectiva ao nível do olho e montagem quase invisível – uma sutileza que depende parcialmente do que ele não faz, como os artifícios expressivos que ele evita – criam uma aura misteriosa ao redor da fisicalidade de seus atores conforme eles parecem se misturar aos objetos no cenário e à luz em toda a composição. Quando Dude derrama o licor de volta à garrafa em Onde começa o Inferno (Rio Bravo, 1959), o movimento de sua mão parece dar uma nova vida a todas as partes da composição, e a cada movimento anterior e posterior. O cinema de Nicholas Ray é caracterizado por uma instabilidade ligada ao estado emocional das personagens. Há um exemplo extremamente óbvio no giro extremo da câmera utilizado para representar a desorientação de Jim em Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955), mas formas mais sutis de desorientação caracterizam os melhores filmes de Ray. As composições, entrecortadas com frequência, não fluem suavemente umas nas outras, e os cortes revelam pequenas disparidades ou desconexões que produzem um efeito cumulativo no curso de um filme.

Pode também haver uma maneira na qual os efeitos do segundo aspecto são combinados para produzir o terceiro, uma ideia única do espaço. Os filmes de Hitchcock são particularmente densos em momentos expressivos. O movimento da câmera para o alto em A sombra de uma dúvida já foi mencionado. Mais significativamente, esse movimento surpreendente para o alto é espelhado pelo movimento da câmera em direção ao rosto do tio Charlie enquanto ele faz um discurso justificando os seus assassinatos; aqui, a câmera permanece se movendo mesmo quando esperaríamos que ela parasse, preenchendo o enquadramento com sua face maligna tanto quanto o quadro havia sido “preenchido” mais cedo com o espaço da biblioteca escura e vazia. Mais cedo no filme, planos do tio Charlie deitado numa cama são ecoados tanto num plano similar quanto em um plano de reflexo no espelho da jovem Charlie, um padrão percebido décadas atrás por um jovem François Truffaut. O longo movimento através de um cômodo e em direção a um anel, uma prova-chave, ecoa de maneira semelhante o movimento em direção ao rosto do tio Charlie. Fusões ocorrem para planos cada vez mais altos enquanto a jovem Charlie telefona inutilmente em busca de ajuda, ecoando o movimento ascendente anterior. Muitos apontaram os padrões de duplas no decorrer do filme, ecoando os dois Charlies. Tudo isso é combinado com as composições de Hitchcock, caracteristicamente compactas, quase sufocantes, e os movimentos precisamente coreografados – perceba como a câmera se afasta enquanto a jovem Charlie cai na escada – para criar a noção de um mundo fílmico como uma armadilha metálica ameaçando capturar suas vítimas. Essas ligações podem ser percebidas por espectadores inconscientemente numa primeira visão, mas mesmo espectadores atentos precisarão ver o filme muitas vezes, e no contexto de muitos outros filmes de Hitchcock, para apreender toda a sua ressonância.

Eu desenvolvi as ideias mencionadas acima no início da minha carreira de espectador, no final dos anos 1960, ainda que não tivesse sempre as palavras para expressá-las. Naquela época, um cineasta veterano de Hollywood, King Vidor, fez seu próprio filme de vanguarda, Truth and Illusion: An Introduction to Metaphysics (1964). Entrei em contato com Vidor em 1970 ou 1971, e aluguei uma cópia 16 mm. do filme para um cineclube que eu estava organizando. Nós apresentamos o filme e eu o revi várias vezes. Ainda que as opiniões de outros nas décadas seguintes não estivessem à altura do meu julgamento, considerei este seu melhor filme. (Tenho tido certa relutância em poluir a memória das cores frescas do Kodachrome da cópia em película com versões online.) Ele também confirmou minha tese de que há uma expressividade visual complexa no núcleo do melhor cinema feito em Hollywood. Os primeiros filmes de Vidor são caracterizados por instabilidades visuais sutis, de alguma forma diferentes das de Ray no sentido de que são – se ousarmos dizer – epistemológicas ao invés de psicológicas. As personagens podem parecer curiosamente isoladas umas das outras, como se estivessem presas em seus próprios mundos. Ou então, quando elas se unem, como na montagem final em O pão nosso (Our Daily Bread, 1934), parecem se unir ao grupo ao invés de ao indivíduo, formando um mundo subjetivo, criando um efeito oposto ao da montagem mais objetiva de Dziga Vertov.

Eu poderia citar pequenos exemplos de um Vidor mais antigo e reconhecidamente menor, The Sky Pilot (1921). No início do filme, uma personagem conduz um pastor ao ar livre, convencendo-o de que ele irá ajudá-lo enquanto planeja um ataque, insinuando isto com uma piscadela para uma multidão enquanto se afastam. Este procedimento narrativo comum, uma personagem sabendo algo que a pessoa ao seu lado não sabe, é ecoado pela disposição física da composição e a piscadela ao olhar para trás. Mais à frente no filme, dois closes são bastante marcantes na maneira como, em vez de se integrarem à noção de espaço visual do filme – como passa a ocorrer em Griffith, por exemplo, num corte de um plano médio para um close dentro da mesma composição –, eles surgem abruptamente e enquadrados de maneira estranha. Num deles, o ministro está sentado desconsolado em frente a um rio, numa composição um tanto “deslocada” que não se conecta suavemente aos planos ao redor, refletindo o modo como ele se tornou isolado da comunidade que buscou servir. Efeitos como este são levados ao extremo em Truth and Illusion, com um tema de “subjetividade que leva ao solipsismo” anunciado pela narração, e com composições suntuosamente coloridas que frequentemente parecem disjuntas de maneira radical, visualmente e espacialmente, umas das outras. A maioria das imagens ilustra diretamente as palavras da narração, o que pode levar a alguém que desgosta deste filme a compará-lo aos filmes educacionais feitos anonimamente no período; e meu argumento sobre isso, sem retornar ao filme para exemplos específicos (que, de acordo com meu postulado, não provariam meu ponto de qualquer forma), é que a maneira particular pela qual as imagens são combinadas no espaço e no tempo lembram as instabilidades mais suaves dos longas de Vidor, oferecendo uma visão profundamente expressiva de um mundo no qual objetos e ideias existem em isolamento magnífico e mesmo assustador.

Por volta de 1971, Nicholas Ray começou a trabalhar em We Can’t Go Home Again (1971-1976), um filme que combina imagens em múltiplos suportes (bobinas 35 mm. e menores) através de impressão ótica. Foi exibido inicialmente em várias formas incompletas. Eu compareci a uma projeção em Nova York, em meados dos anos 1970. Ray estava presente, assim como seus amigos dos velhos tempos, John Houseman e Elia Kazan. O evento foi um tanto bagunçado; o filme atrasou por uma hora ou mais, e então houveram as interrupções. Mas foi maravilhoso. As imagens-dentro-das-imagens e as outras técnicas produziram deslocamentos mais radicais do que os encontrados em seus longas comerciais; mas assim como no caso de Vidor, o filme parecia me oferecer outra versão, desconectada da narrativa convencional, do tipo de espaço que caracteriza obras-primas como Juventude transviada e Delírio de loucura (Bigger Than Life, 1956). Ambos os filmes me convenceram ainda mais de que o que eu mais amo em filmes de Hollywood não depende de suas narrativas, ou mesmo do fato de que são filmes narrativos.

Na edição de novembro de 1973 da revista Artforum, foi publicada a primeira parte de um ensaio de John W. Locke, “Michael Snow’s La Région Centrale: How You Should Watch the Best Film I Ever Saw”. Locke compara os movimentos de câmera monumentais da obra-prima paisagística de três horas de Snow, desprovida de figuras humanas, com o que ele chamou de “panorâmicas espaciais”, movimentos de câmera que não acompanham “o movimento de uma pessoa ou de uma coisa”, em filmes de Orson Welles e Raoul Walsh. Parte do argumento de Locke é que ver um filme pode elevar a apreciação de outros filmes, e que particularmente o gigantesco estudo de movimentos de câmera de Snow pode nos fazer perceber e apreciar as panorâmicas espaciais de Hollywood que normalmente passariam despercebidas.

Eu gostaria de pensar que há ainda outra razão pela qual Locke escolheu Welles e Walsh. Mais do que a maior parte dos cineastas, eles são verdadeiros poetas do espaço. Welles tem sido discutido de muitas formas, mas raramente eu o vi sendo mencionado pelo modo como suas imagens – especialmente em filmes que não aqueles que considero o seu mais fraco (Cidadão Kane [Citizen Kane, 1941]) e o seu mais forte (Verdades e mentiras [F for Fake, 1972-1973]) – parecem quase escavar os cômodos e exteriores que retratam. Seja por movimentos de câmera ou por longos planos em profundidade, o olho é conduzido por superfícies, do primeiro ao segundo plano ao plano de fundo e de volta novamente, tornando visível a tactilidade das superfícies, até que o espaço parece ser exaurido por sua apresentação.

Raoul Walsh, um cineasta do primeiro período “clássico” de Hollywood, é consideravelmente menos apreciado que Welles. Um ator em O nascimento de uma nação (The Birth of a Nation, D. W. Griffith, 1915), ele iniciou sua carreira como um diretor no cinema mudo e a terminou com sua obra-prima, Um clarim ao longe (A Distant Trumpet), em 1964. Uma leitura da sua autobiografia sugere que ele esteve longe de ser um artista consciente, como atesta o público constrangido pelas piadas sem graça que ele contou quando de sua aparição no Museum of Modern Art (Nova York), ao apresentar sua retrospectiva em 1974. Mas ainda assim, pelo menos em seus filmes sonoros, e desde o maravilhosamente estranho e magnífico A grande jornada (The Big Trail, 1930), até seus últimos filmes, suas melhores obras criam um sentimento estranho e assombroso de peso em suspensão, de uma neutralidade ímpar tanto do espaço como da matéria, conforme eles se tornam de uma só vez físicos e imateriais. Diferente da maioria dos diretores de Hollywood, há poucas conexões entre o seu estilo mais profundo e a narrativa. Mesmo que as histórias de alguns de seus filmes, como a de Nas garras da ambição (The Tall Men, 1955), parecem inteiramente apropriadas ao seu estilo, outras, como a de A descarada (The Revolt of Mamie Stover, 1956), não parecem. E ainda assim, apesar de tudo, há um espaço peculiar em Walsh, suspenso entre uma imensa massa e o vazio, frequentemente mais explicitamente visível em suas panorâmicas que passam por coisas sólidas do que em outros lugares. É a vibração paradoxal entre massa e vazio que forma a essência de sua arte.

Eu precisei ver seis filmes até “entender” Walsh. Eu não gostei dos primeiros cinco, ainda que continuasse tentando. O fato de ter demorado seis filmes me levou à minha “regra dos seis”: não se pode descartar um diretor até que se tenha visto pelo menos essa quantidade, assim como aprender um novo idioma leva algum tempo. Posso não querer me dedicar a ver seis filmes de vários cineastas cujo trabalho eu não gostei, mas este é um problema diferente, e se permaneço fiel à minha regra não irei escrever artigos condenando-os. Quando assisti meu sexto, Um clarim ao longe, numa projeção em 35 mm., estava de tal modo familiarizado com seus filmes que percebi imediatamente que gostava; e também, percebendo semelhanças com os cinco filmes que não havia gostado, percebi que provavelmente gostaria deles em revisões. Foi o que ocorreu. O tipo de misticismo (talvez alguns chamem assim) que estou defendendo aqui poderá sem dúvida ser ridicularizado. Certamente vai contra a tendência dos estudos acadêmicos, que se pretendem verificáveis. Mas é com este tipo de declaração que eu espero poder conduzir outros ao que eu vi em Walsh, e em boa parte do cinema, pela sugestão de abordagens dos filmes que não deem exemplos e não façam análises (como eu geralmente faço) que pretendem apresentar uma defesa lógica para conclusões que na verdade são apenas metáforas para a experiência de ver o filme. Minhas declarações sobre Walsh tentam chegar à seriedade definitiva da melhor arte: a que oferece uma visão única que, no fim das contas, não pode ser traduzida ou demonstrada. De certa forma, esta última declaração deveria ser tautológica. Qual seria o ponto de uma arte visual cuja experiência pudesse ser totalmente, ou mesmo parcialmente, capturada em palavras?

Não quero deixar o leitor com a sugestão de que um filme de vanguarda é supérfluo porque tudo está contido no melhor cinema de Hollywood. Não está. Cada filme, e cada tipo de cinema, oferece experiências únicas e perspectivas únicas sobre a existência. É difícil imaginar um filme de Hollywood que seja paralelo às investigações sui generis de Ernie Gehr sobre as formas pelas quais o processo da visão afeta toda a psicologia do espectador, distanciando-se dos efeitos emocionais ou mesmo estéticos de uma arte visual para dar ao espectador a impressão de que um ponto de luz, ou um corte, ativa todas as suas sinapses, tornando-o mais consciente do que é estar vivo. É difícil imaginar uma animação de Hollywood que seja paralela aos efeitos de êxtase dos últimos filmes de Robert Breer, em que imagens fotográficas, imagens de rotoscopia a partir delas e abstrações coloridas se combinam em frequências próximas da frequência da projeção, tanto para colocar o espectador em um estado de êxtase de momento a momento, como para ao mesmo tempo reviver sua visão do mundo, agora reimaginado em termos de cores e linhas e formas, assim como objetos sólidos. É difícil imaginar uma narrativa comercial de qualquer tipo que daria sequer uma pista das investigações de luz, ritmo, e todas as formas de visão que Stan Brakhage conduziu através de seus 51 anos como cineasta, produzindo um cinema que coloca o espectador no limiar perceptivo, com surpresas contínuas, oferecendo uma combinação paradoxal de conhecimento e desconhecimento. E, para retornar ao meu exemplo de um crítico da “LUA de alguma nova atração de seis rolos”, Dziga Vertov, não conheço outro filme, salvo o seu próprio, que combine de maneira tão magistral imagens diversas e desprovidas da conexão emocional com o artista numa tentativa de compreender o mundo. Há uma razão pela qual os melhores cineastas de vanguarda começaram fazendo os filmes que fizeram. Também há uma razão pela qual John Ford fez os filmes que fez, aprendendo tanto com Griffith, e então descobrindo gradualmente, e articulando, a sua própria visão.


(Traduzido por Lucas Baptista)

 

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