PARA ACABAR DE VEZ COM A MISE EN SCÈNE, PARTE 2:
DE DWAN A DWOSKIN, OU O CINEMA NA ERA DO PRESENTE ABSOLUTO
por Bruno Andrade


Suplício de uma alma (Beyond a Reasonable Doubt, Fritz Lang, 1956) e, mais ainda, O tigre de Bengala e O sepulcro indiano (Der Tiger von Eschnapur e Das indische Grabmal, Fritz Lang, 1958-1959) marcam o limite para além do qual a mise en scène, por um procedimento comparável ao de Mallarmé, cairia na ausência de mise en scène. Uma maior dominação da matéria desembocaria em sua supressão e ultrapassaria o papel mediador da arte. [...] O que há de mais profundo nos filmes de Lang é uma certa maneira de olhar de muito longe, como que do fundo da morte, os homens, as mulheres, o assassinato, a fatalidade. Nos seus últimos quatro ou cinco filmes, só se distingue isso. Se não se capta esse tom de eternidade, não se capta nada. O silêncio e o vazio.

— Michel Mourlet,
“Trajetória de Fritz Lang”[1] e “Fritz Lang, mode d’emploi”[2]

Mas como responder sobre as minhas influências: Jean Vigo e não Joseph Losey? Ingmar Bergman e não Michael Snow? O cinema é como o ar, ele está lá e pronto! Eu me sinto solidário a todos os cineastas, os bons, os maus e os feios, porque estamos todos no mesmo barco, tentando fazer um bom plano nas condições mais asquerosas. [...] “Você não pode fazer filmes como os filmes que fizeram você querer fazer filmes”, disse Godard quando a maioria desses filmes foi feita e me inspirou a tentar – mas por que parar em dez? Acrescente TODOS os outros filmes dos diretores acima à lista, além de TODOS os filmes de Godard, Hawks, Hitchcock, Bertolucci, Scorsese, Michael Snow, Rossellini, os outros filmes desses acima e Nicholas Ray, Miloš Forman, Joseph Losey, Buster Keaton, Sam Fuller, Stan Brakhage, Woody Allen, Robert Bresson, Sam Peckinpah, David Lynch e, e, e...

— Abel Ferrara,
“Cinco perguntas feitas por Martin Scorsese”[3]
e comentário à lista dos dez melhores filmes de todos os tempos publicada na edição de setembro de 2012 da revista Sight & Sound

Nós entendemos mal [os Lumière]. Eles diziam: “[Uma invenção] sem futuro”, ou seja, uma arte no presente, uma arte que dá e que recebe antes de dar. Digamos, a infância da arte.

— Jean-Luc Godard

Se há alguém cujo trabalho, e não o gosto ou as opiniões, permite-nos entender como o cinema de Sergio Leone remonta muito mais ao de Sergei M. Eisenstein que ao de Anthony Mann, como o de Monte Hellman está no limite mais próximo do de Andy Warhol que do de Budd Boetticher, como o de Chantal Akerman possui tantos vínculos com a obra de Michael Snow como com os filmes de Carl Theodor Dreyer, como o de Hans-Jürgen Syberberg faz a vigília do espírito de Georges Méliès através das invenções de Jean Cocteau e o de Jerzy Skolimowski a vigília do espírito de Jean Cocteau através das invenções de Kenji Mizoguchi, este foi o autor de “Defesa e ilustração da decupagem clássica”, “Le cinéma et son double”[4] e Acossado (À bout de souffle, 1959-1960), aquele que filmou Belmondo emulando Bogart pelas ruas de Paris (e na fachada do Mac-Mahon) com o despojamento com que Jean Rouch filmara os imigrantes nigerianos em busca de trabalho nos arredores de Treichville; aquele que registrou os destroços do colapso da civilização ocidental (e as suas nascentes, os classicismos grego e hollywoodiano) com a mesma densidade material com que Alain Resnais o fez com as cercas de arames farpados que delimitavam os campos de Majdanek e Auschwitz e Jean-Daniel Pollet com o Mediterrâneo e a menina deitada na mesa de operação; aquele que em 1957 escreveu, a propósito de O homem errado (The Wrong Man, Alfred Hitchcock, 1956), que “[Estamos] no drama mais rocambolesco porque estamos no documentário mais perfeito, mais exemplar” com a mesma perspicácia com que em 1993 declarou “[Eu] admirava Astruc e Rohmer, que haviam escrito livros, mas o cinema permite o romanesco do mundo, o que o romance não permite; o cinema permite receber, ao passo que no romance é preciso oferecer...” Do mesmo modo que vemos em Richard Fleischer o elo possível entre cineastas, de fato entre cinemas, e mais especificamente entre cinematografias tão distintas como as de Mizoguchi e De Palma, devemos ver na obra cinematográfica – crítica e artística – de Jean-Luc Godard o elo decisivo entre as obras de Fritz Lang e Luc Moullet, Roberto Rossellini e Bernardo Bertolucci, Douglas Sirk e Rainer Werner Fassbinder, Ida Lupino e Rob Tregenza.

Após encontrar em um close de Anna Karina um reflexo do martírio de Maria Falconetti em A paixão de Joana d’Arc (La passion de Jeanne d’Arc, Carl Theodor Dreyer, 1928), após encerrar toda a cultura clássica no circuito fechado de uma vila magnífica situada sobre o velho Mediterrâneo, Godard ultrapassa o limite para além do qual a mise en scène cairia na ausência de mise en scène. O ano é 1968 e as filmagens de A gaia ciência (Le gai savoir) se dão antes dos eventos de maio; o filme é lançado em 1969 no Festival de Berlim após ser rejeitado pela televisão estatal francesa, que o produziu. É a partir de então que Godard inicia um processo que podemos chamar de liquidação simbólica da ficção. Todo o filme se passa em uma espécie de antecena na qual um ator e uma atriz discutem uma série de informações que são por vezes entrecortadas por enxertos (um breve plano exterior, um recorte de revista, uma entrevista com uma criança ou um ancião). Não há cenário algum, vemos apenas os atores contra um fundo escuro e não sabemos se esse novo espaço é o vácuo de uma ficção que jamais terá início, a noite do cinema ficcional que Godard havia praticado até então ou o lugar algum de um filme que não foi capaz de conseguir, ao seu término, “explicar o cinema nem constituir seu objeto”. Esse trabalho, a bem-dizer, Godard já havia feito no intervalo da sua obra que vai de Acossado a Weekend à francesa (Week End, 1967). Se, como Jacques Lourcelles[5], considerarmos o conjunto do cinema de ficção como um único filme que vai de A saída dos operários das usinas Lumière (La sortie de l’usine Lumière à Lyon, Louis Lumière, 1895) aos últimos filmes de Fritz Lang (Os mil olhos do Dr. Mabuse [Die 1000 Augen des Dr. Mabuse, Fritz Lang, 1960]), podemos entender o período 1960-1967 como aquele em que Godard tenta abarcar todo o edifício desse cinema no corpo da sua obra, fazendo assim com que este passasse do período da sua tomada de consciência (o de Lang, Rossellini, Sirk e Lupino) para o da sua autoconsciência (a de Moullet, Bertolucci, Fassbinder e Tregenza). Após explicar o cinema e constituir seu objeto, após incorporar ao seu cinema o presente eterno do classicismo ao mesmo tempo em que rompia com a unidade clássica, o foco de Godard se desloca para um processo que engendra ora a erosão, ora a saturação do “papel mediador da arte”, com o fim expresso de lançar o cinema à era do seu presente absoluto. A profecia de Mourlet encontra, finalmente, um receptor, e não é sem alguma ironia dialética que este é menos o autor de Vive-se uma só vez (You Only Live Once, 1936-1937) que o de O demônio das onze horas (Pierrot le fou, 1965).

Outros cineastas o seguirão.


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Nos anos 1970, a obra de um cineasta americano radicado na Inglaterra prolonga a parte do ímpeto godardiano que consistiu em depositar todas as ficções, todas as narrativas, todas as vidas virtuais e pregressas, todas as figuras e as fantasias do cinema do passado em uma grande casa construída à imagem de um templo. A fórmula é um tanto injusta, porém, uma vez que todas essas raridades não são mais assentadas em uma casamata futurista nas costas do Mediterrâneo ou em um Ford Galaxie 500 Sunliner, mas em um pequeno apartamento quarto-cozinha, como aquele em que Belmondo visita uma ex-namorada para aplicar-lhe um golpe ainda no início de Acossado, ou em um ateliê-estúdio, à semelhança da Factory de Andy Warhol. A ambição monstruosa da arquitetura godardiana dá lugar, nos filmes de Stephen Dwoskin, a um cinema de câmara no qual se descobre, entre quatro paredes, em pequenos aposentos, os gestos dos homens e das mulheres com uma nudez, uma intensidade à flor da pele, um ineditismo que apenas o cinema clássico obteve quando descobriu os gestos de Virginia Cherrill em Luzes da cidade (City Lights, Charles Chaplin, 1929-1931), Henrietta Crosman em Peregrinação (Pilgrimage, John Ford, 1933), Beulah Bondi e Victor Moore em A cruz dos anos (Make Way for Tomorrow, Leo McCarey, 1937).

Se após a entrada na era do presente absoluto o cinema de Godard passou a incitar e a comportar a contaminação da imagem pelos ruídos do mundo (contaminação, isto quer dizer o oposto de uma simples rendição: jamais sabemos se as telas pretas em A gaia ciência, O vento do Leste [Le vent d’est, Jean-Luc Godard/Jean-Pierre Gorin/Gérard Martin, 1969-1970] e As lutas ideológicas na Itália [Lotte in Italia, Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, 1970-1971] equivalem à imagem de cinema, aos ruídos do mundo em marcha ou a uma síntese provisória e por isso mesmo furtiva entre os dois), a casa-cinema de Dwoskin nos dá a ver a beleza do gesto humano com uma emoção análoga à do cinema que a descobriu, mas de outra forma. Em Hindered (1973-1974) Dwoskin refilma Solidão (Lonesome, Pál Fejös, 1928), O pão nosso de cada dia (City Girl, F. W. Murnau, 1929-1930), Meu único amor (The Man I Love, Raoul Walsh, 1946) e os filmes de Ida Lupino a partir de gestos cuja medida e velocidade escapam ao alcance físico e imediato da câmera, captando frêmitos nos rostos e nos corpos dos atores que em outros filmes permanecem inescrutáveis ao campo focal da objetiva, reinventando completamente o ritmo e o papel da câmera pelo alvoroço ou pela introversão do evento pró-fílmico, substituindo a composição fatídica do drama pela circulação livre de energias e a continuidade narrativa e emocional pela percussão sensória. Hindered propõe uma narrativa semelhante àquelas do cinema clássico numa forma que já não tem nenhuma relação com o neoclassicismo de Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, nem com o classicismo voluntário de Michael Cimino e John Milius, nem com o pós-classicismo de Joseph Losey e Nicholas Ray, nem com a inclinação clássica de Richard Fleischer e Robert Mulligan, nem com o classicismo meditativo de Joseph L. Mankiewicz e Otto Preminger.

Em Central Bazaar (1975-1976), uma série de momentos de extrema intimidade afetiva e sexual, compartilhada entre duas pessoas ou em um pequeno grupo, seguem se encadeando uns aos outros com praticamente nenhuma das habituais mediações estruturais de um filme. Temos a sensação de acompanhar uma série de narrativas que passam ininterruptamente diante dos nossos olhos, as quais levam seus participantes à aflição ou à fragilidade mais reveladoras. Os cabarés sufocantemente eróticos dos filmes de Josef von Sternberg, as iluminuras libidinosas de Cecil B. DeMille e o universo lascivo dos pepla são de alguma forma liberados dos seus envoltórios nesse ateliê-estúdio que Dwoskin converte em bazar recôndito, cuja união entre doçura e volúpia, entre ritualismo e incompletude nos remete tanto à leitura das Mil e uma noites quanto ao olhar lúbrico de Jack Smith, Carmelo Bene e Kenneth Anger. O trabalho de Dwoskin, finalmente, não é o de uma simples reproposição ou reelaboração do classicismo ou do erotismo; seu cinema não é, como o de Godard também não era, de fatura clássica. Entretanto, trata-se de um dos poucos cineastas que conseguiu, após a passagem do cinema à era da sua hiperconsciência, vincular o gesto de pioneiros como os Lumière, D. W. Griffith e Allan Dwan às proposições formais concebidas por Jonas Mekas, Andy Warhol, Shirley Clarke e Peter Emmanuel Goldman a partir dos anos 1960.

No presente absoluto do cinema, os filmes tendem a demonstrar sua dimensão material menos em termos de representação que a partir de uma irrupção da matéria na superfície visível da película, a qual podemos chamar, justamente, de presentificação. No caso de Dwoskin, uma recusa deliberada da mise en scène leva à adoção de outros dispositivos de composição com o som e as imagens. Recordemo-nos deste momento do início de Central Bazaar: em um plano longuíssimo, uma das participantes do filme conta a história do Lobo Mau e dos Três Porquinhos enquanto a câmera descreve uma série de movimentos pelo seu rosto e pelo espaço em torno dele com uma enorme desenvoltura em relação à concepção convencional de um enquadramento de um rosto em um espaço, como se o dispositivo óptico buscasse estabelecer as relações de volume e profundidade, de distância e altura não pelo conteúdo hipotético de uma cena, mas pelas coordenadas concretas do ponto de encontro entre espaço, luz e células fotoelétricas no momento da filmagem. Dwoskin busca capturar a energia que surge do atrito entre alguns corpos, suas transformações, seus descaminhos, e para isso estimula a intensificação atômica e anatômica das correntes que se formam entre esses corpos até o momento em que se concentram, se projetam e se depositam no suporte pelicular.


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A presentificação é a condição sine qua non do cinema que se constitui a partir do presente absoluto. Entretanto, há em filmes como Othon (Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer, ou Peut-être qu’un jour Rome se permettra de choisir à son tour, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, 1969-1970), Sem essa, Aranha (Rogério Sganzerla, 1970), Não me toque (Out 1, noli me tangere, Jacques Rivette e Suzanne Schiffman, 1970-1971), A mãe e a puta (La maman et la putain, Jean Eustache, 1972-1973), Espantalho (Scarecrow, Jerry Schatzberg, 1973), No decurso do tempo (Im Lauf der Zeit, Wim Wenders, 1975-1976), Dhrupad (Mani Kaul, 1983), The Brown Bunny (Vincent Gallo, 2003) e Mal dos trópicos (Sud pralad, Apichatpong Weerasethakul, 2004) um esforço de convergência entre as convenções da mise en scène e a presentificação como investida do presente absoluto na própria materialidade do filme. Em Talking to Strangers (1988) e Inside/Out (1997), o americano Rob Tregenza trabalha tanto com as convenções da dramaturgia cênica como com as do filme estrutural: ao não se satisfazer com uma simples imersão no fluido amniótico da experiência[6], o realizador pratica, com uma desenvoltura que à época impressionou Godard (produtor de Inside/Out), a fusão entre o determinismo ficcional e a apoteose da presentificação, investigando “as estruturas elementares de parentesco entre ficção e realidade”, “como o horror da ficção que se inventa é redimido pela graça de uma realidade que se oferece”[7]. Mais do que isso, Tregenza propõe um mergulho tão profundo na experiência (Inside) que acabamos atingindo a aniquilação da experiência pura (Out), o ponto que Sergei Paradjanov, Stan Brakhage, Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, Kenji Mizoguchi em A rua da vergonha (Akasen chitai, 1956) e mais recentemente Pedro Costa atingiram nos seus filmes, o ponto sem o qual qualquer tentativa de presentificação no cinema não passa de uma vã adulação da sensibilidade do espectador “cultivado”, o ponto em que o que conseguimos investir do nosso olhar no filme corresponde ao que absorvemos do olhar do filme na nossa visão.


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Há um momento em La vallée close (Jean-Claude Rousseau, 1986-1998), perto do final, em que vemos um homem sentado na ponta de uma cama. Metade da parede ao fundo é tomada por uma sombra densa, enquanto a outra metade é inundada por uma luz cuja intensidade é reduzida pelo recorte da armação de uma janela. O homem se posiciona exatamente no ponto em que luz e sombra se encontram: de um lado a escuridão total, a não-imagem; do outro a luz, as várias linhas que a recortam, a imagem que ela forma, o desenho de linhas sombreadas que ela deposita na superfície de uma porta fechada. O homem olha para a direção da câmera e, apesar de algumas linhas sombreadas que incidem sobre os seus olhos, conseguimos ver o contorno do seu rosto. Ele vira de costas para a câmera e é como se corresse o risco de ser tragado pela sombra que sua face projeta na parede. A luz que ilumina apenas parte do cômodo em que este homem se encontra começa a cair; ele se levanta, abre a porta e dirige-se a outro cômodo. O plano (a cena?) acaba pouco tempo depois.

“Nossa única esperança reside na imagem.”[8] Um homem passa mais de dez anos filmando, montando e finalmente organizando “um universo de objetos radiantes, injuriantes ou benéficos”[9] a partir de uma série de fragmentos, de um conjunto de partículas de filme, de métricas de imagens, de saltos de um trecho de película filmada para outro, encontrando a junção, o acordo produtivo entre som e imagem, aquele que poderá desencadear um sentido que nem a imagem nem o som podem produzir sozinhos. Ele se defronta com esse material recolhido ao longo dos anos e com ele – isso quer dizer com todas as suas lacunas, irregularidades e saliências – compõe e inventa “uma saturação de signos magníficos banhados na luz da sua ausência de explicação”[10], transformando o salto em nexo, o fragmento em absoluto, a lacuna – entre o som e a imagem, a palavra e o sentido, a fabricação e o signo – em composição.

Se fizéssemos uma dialética do cinema a partir da questão da mise en scène, alguém como Andy Warhol provavelmente representaria a sua antítese (é preciso lembrar que por muitos anos, e mesmo hoje, suas realizações foram consideradas como “antifilmes”). Quanto à síntese, a resposta dada por parte dos teóricos acadêmicos e dos críticos historiográficos habitualmente a situa entre o final dos anos 1990 e início dos 2000, com aquela fração do cinema capitaneada pelos filmes da “estética do fluxo”, cujo horizonte contemplaria algo como um “vir-a-ser-filme”, um filme que se descobre enquanto filme, enquanto produção de sentido e organização de formas, à medida que articula e desfruta de uma imantação de registros de intensidade distintos que reivindicam a sua heterogeneidade em uma estrutura, geralmente narrativa, que acolhe esses registros em um todo homogêneo. Mas se houve um cinema que conseguiu fundir o princípio ativo da “cena” (uma figura entrando em um cômodo-um corpo introduzido em um enquadramento) à exploração de uma presença que nasce do encontro entre o dispositivo e a realidade, e que estabeleceu a partir desse acordo a composição dos seus efeitos, este pouco teve a ver com o que se convencionou chamar de “estética do fluxo”, assumindo muito mais a forma de uma das notas de Robert Bresson: “Pensar no fim, pensar antes de tudo no fim. O fim é a tela que não passa de uma superfície.” Não é outra coisa o que diz Michel Mourlet no ano de 1959, ao definir o princípio da mise en scène da seguinte forma: “A energia misteriosa que suporta com glórias diversas a enxurrada de sombra e de claridade e sua espuma de ruídos se chama mise en scène. É sobre ela que repousa nossa atenção, ela que organiza um universo, que cobre uma tela; ela, e nenhuma outra.” (A palavra “tela” é ainda utilizada 11 vezes no texto.) A síntese, que na realidade nada mais é que uma nova dialética, deu-se em alguns filmes que tensionaram e conjugaram figuras que a estrutura romanesca e o dispositivo de presentificação podiam compartilhar, filmes como os de Dwoskin e Tregenza (e os de Straub-Huillet, Sganzerla, Rivette, Eustache etc.). Contudo, a obra que realmente se situou no feixe que perdura entre a realidade e a superfície da tela, que perseguiu a presença espectral do espírito das formas sem recorrer à romantização do seu próprio dispositivo, pertence ao realizador que em novembro de 2015 programou, na Cinemateca Portuguesa, filmes de Andy Warhol e de Fritz Lang, de Michael Snow e de Leo McCarey, e que em setembro de 2019 disse: “A realidade é a relação que existe entre as linhas nesta superfície plana. Essa é a realidade. E se há relações justas, então podemos dizer que existe uma imagem. Ela não se sustenta pelo que mostra, que é sempre uma re-apresentação, mas pela relação justa das linhas. A presença é então verdadeira e a profundidade é real”.


* * *


“Uma maior dominação da matéria desembocaria em sua supressão e ultrapassaria o papel mediador da arte.” Se nos fiarmos à teoria estética mac-mahoniana, com o seu cinema eminentemente narrativo, dramatúrgico e cartesiano representado principalmente pela obra de Fritz Lang, os filmes de Jean-Luc Godard, Stephen Dwoskin e Rob Tregenza não conseguem sequer cumprir os fundamentos mínimos da dominação da matéria por um cineasta. Quanto ao cinema de Jean-Claude Rousseau, este teria ultrapassado, ou permanecido aquém, do papel mediador da arte. E, no entanto, esses filmes e esse cinema apontam para um paradoxo que apenas recentemente pudemos perceber em toda a sua extensão, em toda a sua complexidade. Após passar por aquilo que foi, em um determinado momento, chamado de realismo (“[u]niverso e olhar, um e outro uma única e mesma realidade [...] com as duas faces confundidas e fundidas na obra criada”[11]), após abandonar as formas tradicionais de construção e dramatização por uma busca pela “grande forma” análoga à da arte moderna (as grandes incursões de Alain Resnais, Michelangelo Antonioni, Yoshishige Yoshida nos anos 1960-1970, que parecem se estender até as últimas realizações de Glauber Rocha), a “cena da ação narrativa” dá lugar a produções em que a articulação espacial, o que Annette Michelson chamou de “espaço pintado do movimento”[12], cria a ação ao invés de se subordinar a esta.

Fascinação, hipnose, vertigens e cintilações: se até os anos 1950 elas foram experimentadas em filmes que propunham a realidade como a fusão entre o universo e o olhar sobre esse universo (“as duas faces confundidas e fundidas na obra criada”), se entre os anos 1960 e 1980 elas despontaram em filmes que cindiam essa fusão para observar, contemplativa ou analiticamente, as metamorfoses subsequentes dessa cisão, mais recentemente elas se manifestaram em um filme como La vallée close, no qual “[a] realidade é a relação que existe entre as linhas nesta superfície plana”, um filme que nos fascina quando a “relação justa” dessas linhas revela essa presença verdadeira, de uma profundidade real, que é a do presente absoluto. Nós a vimos também em Time and Tide (Peter Hutton, 2000), Juventude em marcha (Pedro Costa, 2002-2006), As quatro voltas (Le quattro volte, Michelangelo Frammartino, 2010), Wolfram, a saliva do lobo (Joana Torgal e Rodolfo Pimenta, 2008-2010) e Já visto jamais visto (Andrea Tonacci, 2013). Não há o que estranhar: pois depois de Weekend à francesa, A gaia ciência e Um filme como os outros (Un film comme les autres, Jean-Luc Godard, 1968) todo o cinema, de Pat Garrett & Billy the Kid (Sam Peckinpah, 1973) a Enigma do poder (New Rose Hotel, Abel Ferrara, 1998), constitui-se da aglomeração de pedaços de filmes abandonados em ferros-velhos, da dispersão de filmes à deriva no cosmos – fragmentos de filmes, mais ou menos soltos, na maior parte das vezes ininteligíveis, por vezes sublimes. Um punhado de belos planos “feitos nas condições mais asquerosas”, capazes em alguns raros momentos de interceptar esse tom de eternidade sem o qual “não se capta nada”. Mas sempre, inexoravelmente, no presente absoluto.




Notas:


[1] Cahiers du cinéma n.º 99, setembro de 1959, pp. 19-24.

[2] L’avant-scène cinéma n.º 339, abril de 1985, pp. 5-8.

[3] Cahiers du cinéma n.º 500, março de 1996, pp. 69-72.

[4] Cahiers du cinéma n.º 72, junho de 1957, pp. 35-42.

[5] “Le dernier film de Sacha Guitry”, Trafic n.º 58, verão de 2006, pp. 119-127.

[6] Nosso desinteresse por filmes como Síndromes e um século (Sang sattawat, Apichatpong Weerasethakul, 2006), Elefante (Elephant, Gus Van Sant, 2003) e Liverpool (Lisandro Alonso, 2008) passa pelo reconhecimento de que o pressuposto extremamente romântico de suas estéticas (“filmar como se fosse a primeira vez”, “o deslizamento instintivo de registros de intensidade em oposição à construção de uma retórica”) não é propriamente questionado, abalado ou dialetizado pelas estruturas de composição adotadas por cada realizador, estruturas estas (o conceito, a contemplação, o distanciamento) que se chocam com a sensação de ineditismo almejada pelas formas dos filmes.

[7] “Jean-Luc Godard on Rob Tregenza’s Talking to Strangers”, Toronto International Film Festival, setembro de 1996.

[8] Our Only Hope Lies in the Image: A Conversation with Jean-Claude Rousseau”, por Salvador Amores, Mubi, 23 de setembro de 2019.

[9] Michel Mourlet, “Sur un art ignoré”, Cahiers du cinéma n.º 98, agosto de 1959, pp. 23-37.

[10] Godard et Oliveira sortent ensemble”, conversa de Jean-Luc Godard com Manoel de Oliveira organizada por Gérard Lefort, Libération, 4-5 de setembro de 1993.

[11] Jacques Rivette, “Nous ne sommes plus innocents”, Bulletin intérieur du Ciné-club du Quartier Latin, janeiro de 1950.

[12] Scène de l’action, espace du mouvement: la crise de la représentation cinématographique”, em Une histoire du cinéma. Peter Kubelka (org.). Paris: Centre national d’art et de culture Georges Pompidou, 1976, pp. 38-44.

 

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