AS SOMBRAS
(Les ombres). 1982. Institut National de l’Audiovisuel (63 minutos). Produção: Vincent Clave, Michèle Boig. Roteiro: Jean-Claude Brisseau. Fotografia: Georgy Fodor (cor). Som: Jean-Pierre Laforce. Mixagem: Jean-Pierre Laforce. Montagem: Lucette Lhure. Elenco: Jacques Serres (Pierre), Dominique Verde (Christine), Nathalie Brévet (Nathalie), Lucien Plazanet (Lucien), Éric Lecomte (Franck), Madeleine Lemistre (a mãe de Christine), Laurence Boisloret (a esposa), Philippe Caroit (o marido), Guy Mousset (o amigo de classe).
Les ombres começa com a recitação da Apparition de Vitor Hugo, mais uma vez, o tal poema que fala de “anjos brancos”, “vôos luminosos”, “mares ruidosos” e “lugares tenebrosos”; mais uma vez, o tal poema que parece assombrar e velar por toda a obra de Jean-Claude Brisseau. É Nathalie (também a atriz se chama Nathalie, Nathalie Brévet) quem o vai a ler pelas ruas e pela entrada do prédio até chegar a casa. É este ser radiante, esta “sacré personnage”, como lhe chamou Skorecki, que embora apresentada como aparentemente imersa num mundo de fantasia, revela-se o mais sóbrio e realista dos membros dessa família que vive e trabalha para sustentar um “apartamento burguês” e as aspirações perfeitamente insensatas de Christine (Dominique Verde), mãe de três filhos e mulher de Pierre (Jacques Serres). Brisseau insistiu várias vezes em entrevistas que estas aspirações, estas cismas e ilusões nossas de que o mundo nos deve alguma coisa, são um grande mal. São também terreno fértil para a ficção, e o cinema já nos deu incontáveis exemplos, do Lírio Partido (Broken Blossoms, 1919) de Griffith ao Era Uma Vez em Nova York (The Immigrant, 2013) de James Gray, passando pelo Cielo negro (1951), do injustamente esquecido Manuel Mur Oti. Confrontos terríveis e insuportáveis com a realidade, e em que o embate com ela é a força viva não só do que se conta mas, sobretudo, do como se conta. Como é que “anjos brancos” acabam “flores partidas”? Como é que um grande plano ou uma simples porta aberta que dá para uma varanda se transformam em coisas belas? Lição de todos (para me cingir aos quatro: Brisseau, Gray, Griffith, Mur Oti), e depois de vislumbres horríveis de sonhos a afundarem-se em abismos, de travessias que podiam acabar em teses sociais definitivas nas mãos de cineastas de algibeira (com que os críticos de algibeira deliram e se deliciam por terem o trabalho todo feito por eles, “entretém-te meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti”), parece ser a certeza de que o sol se levanta todos os dias e com o mesmo brilho para as almas penadas e para as almas afortunadas. Redenção que nasce das distâncias (quão perto? quão longe?) e do domínio das formas, o processo que nos revela a luz incandescente que existe dentro de todos os homens. A chama que nunca apaga.
“Tout est grâce... Qu’est-ce que ça veut dire, tout est grâce”? As perguntas difíceis da pequena Nathalie ao pai depois da mãe desligar a televisão quando estavam a ver Meu Ódio Será Sua Herança (The Wild Bunch, Sam Peckinpah, 1969), desculpando-se com um ríspido “ça m’ennui” e desaparecer. Espíritos, assombrações, Deus e a Morte. E para as perguntas não tem ele resposta. Ao fundo, no quarto, que depois desta cena se transforma em fronteira intransponível, em verdadeira frente de batalha, a mãe canta “j’ai mal d’imaginer le pire, j’ai peur de l’avenir”. O quarto é no fundo dum corredor abismal, enquadrado sempre da mesma maneira, quase como a beira de um precipício. Parece tomar essa forma, mas pela câmera de Brisseau é possível fazer uma planta mental do apartamento, ou mesmo uma planta se se pegar num papel e numa caneta. Parece ridículo mas não se pode dizer isto de todos os filmes. E não há uma panorâmica que nos descreva o espaço, é tudo feito quase só com planos fixos. Metade da casa para os ensaios da mãe e outra metade para o resto da família. Frank, o filho do meio, ou entra ou está para sair e quem se dá são pai e filha, suportando tudo e todos. Às vezes junta-se a eles Lucien (Lucien Plazanet, que vemos em mais 5 filmes de Brisseau), colega de trabalho de Pierre. Também ele lhe fala de espíritos e assombrações certa tarde, acabando em pranto. Voltam as perguntas, “pourquoi est-ce qu’on souffre tellement pour les gens quand elles ne sont plus là, ou quand nos rêves sont insatisfés?” Depois de uma conversa sobre mães adotivas e mães verdadeiras, das respostas estóicas de Pierre, lavam todos a roupa que amontoou por dias e dias enquanto Frank e Christine chegam e saem de casa, como sempre com pouquíssimas palavras.
E há a insuportável conversa em território inimigo. Pierre vai falar em segredo com o professor de Christine para o tentar convencer a fazer a mulher desistir das aulas de canto. Por serem caras e ele as não conseguir pagar. Ela chega a casa nessa noite e vai direto para o quarto por esse corredor sem fundo. Pierre vai tentar consolá-la, tinha esperado por ela a noite inteira. Caem os insultos, as feridas, os remorsos e o passado todos em cima dele. Sem aviso e sem piedade. É aí que Christine lhe fala de olhar para a varanda com os filhos nas mãos, para acabar com tudo. Dormem e tudo parece melhorar, já se fala em ir ao cinema em família. Até dum só golpe lhe irem a mulher e o emprego e também a varanda lhe não parecer a ele má ideia. A Nathalie dos mil ouvidos e dos mil olhos consegue cheirar a morte e tenta fechar a porta que dá para a varanda. Não consegue. E não consigo descrever com justiça o que se segue nem essa conversa final, esse impossível salto de Nathalie no plano (que por milagroso, desafia raccords e eixos, num filme que até aí os respeitava e, portanto, não me parece salto inocente) para salvar o pai. Vêm para dentro e têm a conversa que tudo conjuga e a todas as perguntas parece responder, respostas vindas da menina que agora é uma mulher e conta ao pai o sonho que teve dum vagabundo que gritava às pessoas que o mundo era belo mas ninguém o queria ouvir, passando por ele com pressa demais para ver o sol, que também está sempre lá mas ninguém quer ver. E volta lá fora para ver o astro-rei, transformando a varanda da perdição em varanda da salvação.
Amém, Nathalie. Amém, Sr. Brisseau.
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2014/2015 – Foco |