OUSE!
“O ponto de partida era equivalente ao de Psicose (...) Tive a vontade de fazer a mesma coisa com o sexo. Quis mostrar duas moças que não tivessem o sexo estampado no rosto, mas de quem soubéssemos que são capazes, não importa onde e não importa quando, de alcançar o êxtase. De repente, nas situações mais cotidianas, em um restaurante, em um escritório, à luz do dia, sabemos que tudo pode acontecer. O espectador vê o filme na expectativa de que algo dessa ordem aconteça. Toda e qualquer situação da vida cotidiana é assim erotizada. Eu gostaria que o filme criasse, dessa forma, um verdadeiro suspense sexual.”
Jean-Claude Brisseau
“É esse o gênio de Brisseau. Um grande cineasta é antes de tudo um grande espectador. O espectador Brisseau viu, com os seus próprios olhos viu, as questões sexuais do suspense hitchcockiano. Ele o viu, ele o reproduziu. É Coisas Secretas.”
Louis Skorecki
Entre Psicose (em francês Psychose) e Coisas Secretas (Choses secrètes) há “Chose” (coisa). Psy-Chose. A “coisa” enquanto objeto originário do desejo, objeto que não cessamos de querer reencontrar, não por ter sido perdido (mito freudiano), mas, pelo contrário, porque nunca foi possuído (“realidade” lacaniana). E em “Chose”, há “Ose!” (ouse). Ou seja, a injunção que enuncia Nathalie (Coralie Revel) a Sandrine (Sabrina Seyvecou) no início de filme: ousar todas as possibilidades que o sexo oferece (sedução, manipulação, traição...) para ascender na escala social. Mas também, e sobretudo, a injunção que Brisseau se coloca: ousar todas as possibilidades que a narrativa oferece para alcançar esse verdadeiro suspense sexual com o qual sonha. Poder-se ia ver aqui uma aporia. Como exaltar ao mesmo tempo a audácia, que consiste em recorrer a todos os meios de que se dispõe para atingir os seus fins, e o suspense, que ao contrário supõe uma certa retenção: retardar ao máximo os momentos em que a audácia se manifesta? Mas isso é apenas aparência. Se o suspense é sexual não é somente porque Brisseau recorre ao sexo, como Hitchcock recorria outrora ao medo, mas sobretudo porque há no suspense uma dimensão erótica que, de qualquer maneira, toca menos a coisa sexual que aquilo que lhe é subjacente: o gozo. O que faz com que o suspense se situe em dois níveis: um nível clássico, temporal, no qual nos perguntamos em que momento o gozo - ponto culminante na mecânica do desejo, da qual o sexo é apenas uma engrenagem - irá sobrevir; e um nível mais profundo, misterioso, quando de repente, no momento justamente em que o gozo aflora, perguntamo-nos se ele de fato é real.
É o filme todo que funciona assim, movido por essa dupla interrogação. A abertura é, nesse sentido, esclarecedora. Encontram-se condensadas, em quatro minutos, todas as questões do filme. E até mesmo, poder-se-ia dizer, todo o cinema de Brisseau. Abertura na qual o realizador, fortalecido pela sua crença nos poderes do cinema, recusa ao espectador de se instalar confortavelmente no filme, levando-o desde o primeiro plano a se interrogar sobre aquilo que vê. E o quê ele vê? Primeiramente uma tela: uma mulher nua deitada em uma cama, evocando alguma Odalisca da pintura clássica, mas também La femme nue couchée (t.l. : “A Mulher Nua Deitada”) de Courbet (a mesma cortina roxa), um pequeno toque de realismo, sugerido pelas pernas entreabertas da mulher, exceto que estas são vistas através de um véu, véu transparente atrás do qual percebemos também, em um jogo de sombras, um personagem com um pássaro, figura alegórica (o falcão símbolo do poder, quando não da caça) tanto quanto fantástica (a composição do conjunto evoca uma colagem à Max Ernst). “Coisas secretas”, perturbadoras, cujo sentido escapa em um primeiro momento. O suspense está lá, reforçado pelo tic-tac de um pêndulo. “Tic-tac, tic-tac, tic-tac...” Onde estamos? O que irá acontecer? Mudança de eixo, como se o véu tivesse sido afastado, revelando ainda mais o corpo lânguido da mulher, revelando sobretudo, salientando, um tipo de proscênio. Exit a tela: trata-se, na realidade, de uma representação. Mas de quê, exatamente? À luz alaranjada, caravagesca, da imagem, acrescentam-se as primeiras notas da Paixão Segundo São João de Bach - o primeiro coro, Herr, unser Herrscher (“Senhor, nosso soberano”) -, conferindo à cena uma dimensão sagrada, ou melhor: mística, a qual sabemos a importância que tem em Brisseau. A garota agita-se, levanta-se, coloca seus sapatos e, uma vez de pé, segue em direção à cena onde ela se põe a dançar, entrando em um tipo de transe érotico-extático (ela se acaricia freneticamente), até o momento em que ressoam os coros de Bach (o gozo teria algo a ver com o divino?) e no qual descobrimos, na distinção de um movimento de câmera, o público a assistir ao espetáculo. Exit a cena, no sentido teatral, nós estamos na realidade numa boate. A câmera segue numa panorâmica, enquanto Bach se apaga, deixando lugar a uma música techno, depois se encerra na garota que cuida do bar e que nos diz em voz off: “Ora, aí está. Eu sou Sandrine. Sou a novata. Como vêem, trabalho no bar, e às vezes tomo conta do vestiário. Mas não gosto muito disso. Mas bem, é preciso viver... Para esquecer eu observo o espetáculo, as garotas. Mas a única que realmente me fascina é Nathalie. É o meu modelo secreto. Ela é bela. Ela sabe como pôr todos a seus pés. A verdade é que, mesmo que eu não ouse confessá-lo, eu adoraria saber fazer o mesmo, pô-los todos a salivar, e ter o mundo todo a meus pés...” Ou seja: o programa que o filme se encarregará de aplicar após as duas garotas serem demitidas por terem recusado o mercado sexual que o patrão quis lhes impor e que, a partir de então, reunirá as condições que passam a fazer de cada espaço do filme - que seja íntimo, privado ou público - um espaço tão fortemente erotizado que um simples olhar, uma simples entonação de voz, um simples gesto da parte das duas garotas será como uma carga de deleite, prestes a explodir, quaisquer que sejam as circunstâncias.
Em Coisas Secretas duas regras presidem o êxito da empreitada: saber simular, e não apenas o prazer; não ceder ao sentimento amoroso, por mais ligeiro que seja. Basta manter-se firme para escalar os diferentes níveis da ascensão social, a qual mescla luta de classes e guerra dos sexos. Mas resta o último escalão, o mais duro, encarnado pelo filho do diretor executivo da grande firma na qual as garotas foram contratadas, personagem libertino tanto quanto sadeano, em quem o gozo não é da mesma ordem. Sabe-se que para o divino marquês deleitar-se através do corpo do Outro ressaltava um direito natural, o direito do deleite, exigível por todos os homens porquê fundado sobre a lei universal que é a da natureza: “Tenho o direito de me deleitar do seu corpo, poder-me-ia dizer qualquer pessoa, e esse direito eu o exercerei, sem que nenhum limite me detenha no capricho das exações que tenho o gosto de satisfazer.” Esta é a máxima sadeana (reformulada por Lacan). Se o plano elaborado pelas duas mulheres mina a lei social, ele só pode se romper diante daquilo que surge, com o personagem do libertino, como o simulacro desta mesma lei. A injunção do início - “Ouse!” -, que as duas garotas haviam prometido seguir à letra e até o fim, acaba aniquilado pela injunção à qual obedece sem jovem mestre: seu direito de gozar sem limites. E para o Outro resta uma angústia cada vez mais forte, que toma precedência sobre o gozo e faz o filme desviar para um outro tipo de suspense. Mais perverso que sexual. Nathalie, a jovem que se autodenomina especialista na arte de manipular os homens, acaba caindo na armadilha: ela cai pelo homem libertino, uma paixão que irá consumi-la, especialmente à medida em que ela sofre de volta as piores humilhações. O fim do filme alcança o lirismo dos grandes melodramas. Se a outra garota (Sandrine, a narradora) acaba se casando com o mestre (última etapa de seu êxito social), ela acaba se vendo rapidamente rejeitada por ele por não ter voluntariamente se submetido aos seus fantasmas sexuais, durante uma noite de orgia no castelo (que lembra De Olhos Bem Fechados [Eyes Wide Shut, 1999] de Kubrick), assistindo ainda por cima às relações incestuosas que, como um faraó, ele mantém com sua irmã, antes de ser estuprada por um grupo de homens, algo de que Nathalie havia inicialmente escapado durante o seu número de striptease. O que se fazia tão presente no prólogo, mas de maneira enigmática, reencontra-se em todas as etapas do filme. Até o desfecho. Quando se verifica que é finalmente a morte que rondava desde o início, através do personagem com o pássaro e o barulho de tic-tac que escutávamos. Morte em suspensão (o tempo da narrativa), o que corresponde também a uma forma de suspense, mais metafísico que o outro, e que reaparece no final com o desaparecimento do personagem sadeano (ele praticamente induz Nathalie a matá-lo), personagem aparentado ao diabo, ou mais exatamente a um tipo de Deus invertido - “o ser supremo em maldade” -, do qual se deve “arrancar o coração” para que cesse de existir, como sugere a imagem da ave de rapina (a mesma do início) atacando o seu corpo. Quanto às duas garotas, se elas sobreviveram ao teste, elas não saem ilesas dele. Assim, o epílogo em que as vemos se reencontrar por acaso alguns anos mais tarde: Nathalie como uma anônima mãe de família, após ser liberada da prisão; Sandrine como jovem viúva riquíssima desde que ela herdou. Duas mulheres com destinos opostos mas oferecendo o mesmo semblante, que as faz se assemelhar a dois fantasmas, duas figuras tristes, como que ausentes do mundo, porque sofrem do mesmo mal: o gozo doravante impossível.
(Traduzido por Bruno Andrade) |
2014/2015 – Foco |