ESPELHO DO INTELIGÍVEL
por Pedro Faissol


“(...) E eu via, na sombra onde brilhavam
suas pupilas, / as estrelas em meio
às plumas de suas asas.”

Apparition, Victor Hugo

A pequena Nathalie caminha de volta para casa enquanto lê um poema de Victor Hugo (acima citado). Assim começa Les ombres (1982), filme para TV do início da carreira de Jean-Claude Brisseau. Com uma mão Nathalie segura o livro, com a outra segura um pão. A caminhada é longa, pois a padaria decerto não fica próxima de sua residência - como em todos os primeiros filmes de Brisseau, a história se passa em um desses complexos habitacionais afastados de tudo (por não haver um projeto urbanístico que promova um espaço de encontro entre os moradores, talvez por isso, o índice de violência e suicídio nesses lugares é altíssimo). Após a chegada de Nathalie à sua casa, todo o restante do filme se dará em seu pequeno apartamento. Não bastasse a clausura do próprio espaço que serve de locação ao filme, todas as cenas exteriores ao apartamento são elipsadas por uma mise en scène interessada em oferecer ao espectador a experiência do confinamento - razão pela qual não seria difícil imaginar Les ombres sendo adaptado aos palcos teatrais. De dentro do apartamento, ouvem-se a todo instante as reclamações dos vizinhos. Estes, embora quase não apareçam, estão muito presentes na banda sonora do filme. Entre os quartos do apartamento, o trânsito de ruídos é também constante - motivo de desespero da mãe de Nathalie, Christine, que não consegue trabalhar com barulho. O seu sonho de um dia se tornar vedette passa necessariamente pela experiência glamourosa e transcendental do isolamento. Nathalie, por outro lado, não tem esse mesmo privilégio. O seu quarto não possui portas, apenas uma cortina o separa da sala de estar, onde se travam inúmeras brigas e disputas territoriais. Nathalie cresceu ali e já se acostumou à confusão do apartamento. Sempre com um livro na mão, segue com suas reflexões em meio ao caos familiar. O privilégio do isolamento também não é concedido ao pai de Nathalie, Pierre. Além de trabalhar pesado em uma usina metalúrgica, ocupa o lado mais frágil de uma relação de poder que o obriga a migrar para a sala sempre que briga com sua esposa. Enquanto a tirana Christine não chegar em casa, a TV da sala está liberada para Nathalie compartilhar com seu pai o gosto pelos filmes de ação em volume alto. A relação entre os dois, aliás, é comovente. Nathalie sempre protege seu pai contra a dominação de sua esposa. O próprio tipo físico de Nathalie, em comparação com a magreza lúgubre de sua mãe, já a recoloca mais próxima de seu pai operário.

Tal como no poema supracitado de Victor Hugo, a salvação em Les ombres não se dá na cisão com o mundo material. As estrelas de Hugo não são uma visão provocada por uma experiência descolada da vida concreta, mas a expressão de uma tomada de consciência devidamente ancorada a um suporte material (as plumas das asas de um anjo, que seja!) que dá visibilidade ao mundo imaginativo. Assim, igualmente, é no seio de experiências mundanas que Nathalie deverá buscar a resolução de seus impasses. “O que isso quer dizer: Tudo é graça?”, pergunta-se em seu caderno de anotações - referência a “Diário de um Pároco de Aldeia”, novela de Georges Bernanos. Todo o percurso de Nathalie sugere uma busca por algo que a reconcilie com uma ordem imanente ao mundo vivido (semelhante comentário poderia ser feito a um filme aleatório de Eric Rohmer - que, por sinal, dirigiu em 1966 um documentário sobre o Les contemplations, livro de Victor Hugo que contém o referido poema, Apparition).

Les ombres é provavelmente o filme mais pobre de Jean-Claude Brisseau, embora seu último filme, A Garota de Lugar Nenhum (2012), lamentavelmente também dispute esse posto. Tamanha escassez, contudo, não o impede de conduzir seu espectador a alçar vôos altos. Isso porque a sua encenação não depende de um estilo. Não há, por exemplo, qualquer manifestação do mundo imaginativo ganhando uma forma própria (Les ombres é inclusive o único longa-metragem de Brisseau que não possui nenhum daqueles travellings, tão marcantes, que por vezes denotam o mundo subjetivo de algum personagem). A abstração é fruto de um trabalho que consiste, paradoxalmente, em recolocar o espectador diante da concretude do mundo na cena.

“Nós nunca prestamos atenção ao sol. No entanto, ele está sempre lá. É bonito”, diz Nathalie ao seu pai. Brisseau, contudo, não poderia aderir plenamente ao seu comentário. Um plano do sol trairia o espírito do filme. Seguindo a lição do grande cineasta da concisão (Robert Bresson), e assumindo o gosto pela metafísica neoplatônica, Jean-Claude Brisseau se atém às aparências (as sombras) para posteriormente fazer revelar a beleza de um magnífico reflexo - espelho do Inteligível. Após nos oferecer uma encenação forçosamente teatral, o mundo encerrado no interior de uma caixa cênica (com abundante predomínio do plano-conjunto), toda a espessura desse mundo é finalmente liberada no final do filme, com a aparição em contracampo do anjo protetor. “Se você pular, terá que me levar junto com você”, diz Nathalie a seu pai. Após ter sido abandonado por sua esposa, Pierre se posiciona diante de uma janela que possui, em sua própria imagem, a significação Morte. A janela escancarada é um convite ao pulo. Nathalie resgata seu pai como um anjo diante do abismo. “Antes você amava alguém imaginário. Agora que sabe a verdade, você está mais livre”. É a verdade que conduz à liberdade. Nathalie segue então até a varanda do apartamento e observa calmamente a vista da cidade através da janela - esta finalmente libertada da conotação de morte estabelecida após a entrada da “Grande Missa em Dó Menor”, de Mozart, em referência explícita a Um Condenado à Morte Escapou (Un condamné à mort s’est échappé (ou Le vent souffle où il veut), Robert Bresson, 1956). Mas ao contrário do desfecho no filme de Bresson, aqui a salvação se encontra na reconciliação com o mundo ao redor.

 

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