Uma Aventura na Hermenêutica
... E o segredo do aço sempre carregou consigo um mistério. Deve aprendê-lo, jovem Conan. Deve aprender a sua disciplina.
O que seria a disciplina de um mistério?
O que seria a disciplina de um segredo?
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A partir de algumas notas tomadas entre agosto de 2008 e agosto de 2013, sem ordem:
Uma grande obra é, primeiramente, uma obra capaz de suscitar uma riqueza
de retratos que, apesar de diferentes, completam-se por outras vias e
não traem o seu objeto.
Lendo os textos desta edição, dou-me conta de que Toni D’Angela acredita
na redenção em Milius, enquanto Felipe Medeiros não; Toni e Francis
Vogner acreditam nos mitos (ainda que para relativizá-los), eu e Felipe
não; Tag Gallagher acha os protagonistas asquerosos, Matheus Cartaxo e
José Oliveira não; Milius é um autor seguro para Marlon Krüger, para
Jesús Cortés e Miguel Marías não.
Isto acontece porque uma grande obra compõe-se organicamente. Ou seja, é
dada a desvios de rumo, desembaraçando-se a cada novo caminho do que
lhe é postiço, seus propósitos tornando-se cada vez mais claros na
medida em que absorve as complexidades com que se depara. Em
conseqüência disso, os ângulos da realidade que ela toma como ponto de
partida ampliam-se, revelando por completo aquela que é a sua origem, ou
mais simplesmente a sua verdadeira face - um homem, sua
inteligência e as idéias que desta florescem. Conduz-se, na medida em
que avança, a paradoxos que, longe de a tornarem mais confusa ou
simplesmente a anularem (como no infeliz caso recente de Scorsese),
esclarecem-na e a elevam à expressão mais violenta, mais completa do
universo a que se refere, expressão cuja peça titular é, na obra de
Milius, Bravos Guerreiros.
Uma grande obra é, por definição, generosa. E é isso o que a de John Milius também é.
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“Esclarecimento (...) significa a saída do homem de sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável. A minoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro.”
Talvez este trecho de Kant sirva ainda mais como epígrafe de Conan, o Bárbaro
que a célebre frase de Nietzsche, “O que não nos mata nos fortalece”,
com a qual o filme se inicia. Pode-se, porém, tranqüilamente se
considerar a proposição kantiana como o corolário lógico do aforismo nietzscheano, e isto a partir do que Milius dá a representar em Conan:
uma força bruta e desmedida que se conduz ao apaziguamento e ao
equilíbrio. E é certamente nessa perspectiva - a da passagem de um
aforismo para uma proposição, das possibilidades da intransigência de
uma certeza abrir-se a concessões de ordem contemplativa - que toda a obra de Milius deve ser, ainda que tão raramente seja, entendida e considerada.
Um caminho que leva da convicção (“inimigo mais perigoso da verdade que a
própria mentira”, ainda Nietzsche) à reflexão, da obstinação à
meditação.
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“Através dos séculos existiram homens que deram os primeiros passos, por
novas estradas, armados com nada além de sua própria visão.” (Ayn Rand)
Alguns desses homens, por John Milius: Theodore Roosevelt; Learoyd; Matt
Johnson, Jack Barlow e Leroy Smith; Jed Eckert; Conan e Thulsa Doom;
Mulai Ahmed er Raisuli; Jake ‘Cool Hand’ Grafton e Virgil ‘Tiger’ Cole; a
infantaria dos Rough Riders.
O que esses homens têm em comum? Para eles, a razão é uma longa
paciência. Uma conquista. Vitória ou derrota, respirando o ar rarefeito
dos cumes (como o jovem Conan enquanto é instruído pelo pai, como a
aventura dos Rough Riders que se encerra no alto de uma colina) ou
sentindo na pele o vento seco das planícies (O Vento e o Leão, Dillinger),
é a consciência - com tudo o que ela traz de dor, aceitação,
arrependimentos e renovação de forças -, é ela a qual se conquista ao
término da aventura, nos instantes finais da jornada (“Não há nada na
sua vida pelo qual tenha valido a pena perder tudo?”, diz Raisuli).
Enfim, um cinema espetacular que tem por objeto o menos espetacular dos
temas: o amadurecimento. Perigosa aventura, estranha maturidade a deste
cinema: estruturando suas narrativas a partir do mito, das tramas que
compõem todo o legado de nossas amarras, Milius conclui que a
civilização nada mais é que o processo de libertar o homem dos outros
homens, e para tanto se faz necessário romper com todas as superstições
que sustentam os mitos conservados por anos e anos de civilização. Não é
outra batalha a que travam Conan (a quem vemos primeiramente como
criança e mais tarde como jovem adulto) e Thulsa Doom (que, segundo
rumores, tem 1.000 anos de idade). Eis a origem de toda a dor que
perpassa o filme, a verdadeira história de Conan: Doom, homem
completamente vil, que assassinou os pais do pequeno Conan, que cultua
deuses pagãos, amparado por todo tipo de feitiçaria e magia abjeta, esse
homem não mente em nenhum momento do filme. É isto o que importa
a Milius: ser aquilo que se é, contrariando o mundo de mentiras em que
nascemos, passando pela prova das verdades incômodas, terminando por
desprezar as chagas de tudo o que se sedimenta pela superstição,
repudiando o mito corroborado pela truculência das falsas verdades.
Nenhum espaço para qualquer outra coisa que não seja a verdade incandescente
do ser. Disto sucede que, ao contrário das paquidérmicas queixas de
interlocutores medíocres (pois essa verdade queima; é necessário força
para suportá-la), Conan permaneça um dos mais sóbrios, mais sintéticos, mais belos filmes da história do cinema.
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“Os heróis se dedicam à sua missão, à ação. Refleti-la, isto virá em
outro momento, em outro cinema”. Jacques Aumont o escreveu, certamente
sem ter o cinema de Milius em mente. Entretanto, essas frases nos
permitem afirmar que não há nada, rigorosamente nada de anacrônico ou de
regressista na obra de Milius. Seu classicismo busca o tempo e o espaço
da recordação, e para tanto acessa o passado pela combustão instantânea
do presente. É, portanto, testemunho implicado diretamente no presente
(de onde sempre se parte para se recordar...), eis o que choca e
incomoda seus detratores (principalmente os de um filme como Amanhecer Violento), e é unicamente por esse diapasão que seus filmes respiram e pelo qual podemos entendê-los. Os fades
curtíssimos, choques de planos que dinamizam do interior a violência do
relato; os ângulos baixos que enfatizam a altura (a altivez) de seus
heróis; as seqüências estruturadas da forma mais fragmentária e
elíptica, como que entrecortadas por estilhaços de metralhadoras... Tudo
isso reforça a impressão de um mundo tomado ao acaso. Ele é narrado no
intervalo abrupto de um presente impiedoso por uma câmera que permanece
sempre no encalço das trajetórias das personagens, as quais uma
indiferença abrangente e de força telúrica conduz aos dois únicos
destinos possíveis: o extermínio ou a liberdade.
No começo de Amargo Reencontro jovens amigos, surfistas intrépidos e destemidos, são recebidos por um paraíso perfeitamente acessível. A câmera os acolhe num contre-plongée
generoso; o espaço se compõe, majestosamente, em um lance de degraus
que ascende a um templo cujo valor de espaço sagrado os rapazes ainda
sequer são capazes de compreender. Vivem amores, uns vão à guerra,
outros morrem, outros ainda brigam; separações, decepções, rompimentos,
amarguras, solidões... Mais tarde, muitos anos mais tarde, os amigos,
agora homens, surfam pela última vez (eles sabem, nós também). O
filme se encerra no mesmo local que víramos no início, com a mesma
tomada de câmera; mas agora o que vemos não é mais um templo, e sim as
ruínas de um tempo que já passou, consumido na chama da experiência
vivida. Restam as cinzas agora: o mesmo ângulo, a mesma posição de
câmera, e desta vez quando vemos os amigos subindo os degraus e
chegando ao topo, cuja entrada é agora interditada por tábuas que
parecem ter sido arrancadas ou quebradas por surfistas e repostas
inúmeras vezes, nesse momento o ângulo baixo parece expulsá-los
do paraíso perdido. Nessas imagens arrebatadoras de simplicidade vemos
uma raça, nobre e bela, extinguir-se. É o que Milius nos dá a
testemunhar na maior parte de seus filmes.
É a aventura da reflexão proposta por Aumont que os heróis de Milius
vivem, e é a reflexão dessa aventura - o seu crepúsculo - que Milius
filma obstinadamente.
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Podemos, agora, reformular as duas perguntas com as quais iniciamos este texto: o que exatamente decorre da disciplina de um mistério? O que decorreria da disciplina de um segredo?
A suprema conquista de si mesmo.
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