ALGURES
por Jean-Luc Godard


(Une vie). 1958. Agnès Delahaie Production Cinématographique/Cino Del Duca/Produzioni Cinematografiche Europee/Nepi Film (86 minutos). Produção: Agnès Delahaie. Adaptação e roteiro: Roland Laudenbach e Alexandre Astruc, baseado na novela de Guy de Maupassant. Diálogos: Roland Laudenbach. Fotografia: Claude Renoir (Eastmancolor). Cenografia: Paul Bertrand. Montagem: Claudine Bouché. Música: Roman Vlad. Elenco: Maria Schell (Jeanne Dandieu), Christian Marquand (Julien de Lamare), Pascale Petit (Rosalie), Louis Arbessier (M. Dandieu), Marie-Hélène Dasté (Mme. Dandieu), Antonella Lualdi (Gilberte de Fourcheville), Ivan Desny (de Fourcheville), Gérard Darrieu (pescador), Michel de Slubicki (Paul de Lamare), Andrée Tainsy (Ludivine).

O carrossel decorado por Walt Disney, o almoço na relva com imitação plastificada de toalhas de mesa, o verde chicle de um novelo de lã: pouco importa. Todas as faltas de gosto acumuladas por Astruc, Claude Renoir e Mayo: pouco importa. O saxofone de Roman Vlad também. Não é de todo mal, aliás. Mas de toda forma, a verdadeira beleza de Une vie está algures.

Está no vestido amarelo de Pascale Petit, que treme nas dunas cinza-Velasquez da Normandia. Isso é falso! Não é cinza-Velasquez! E nem mesmo cinza-Delacroix, protestam os “especialistas”.

Em vão. Christian Marquand já se inclina à beira do dique e estende a mão para Maria Schell. Os “especialistas” são desnorteados por um filme que passa tão rápido que paira. Sabemos que os carros de corrida mais rápidos são aqueles que freiam melhor: Une vie é como eles. Acreditávamos conhecer Astruc; elaborávamos teorias, sem perceber que a seqüência havia acabado e que o filme já havia reiniciado em outra direção estética ou moral. Falávamos de Velasquez sem perceber que o vestido de Pascale Petit era amarelo-Baudelaire e os olhos de Maria Schell azul-Ramuz. Por que Ramuz? Porque por trás dos fantoches de Maupassant, por trás de Jeanne e Julien, é o rosto de “Aline” ou de “Jean-Luc perseguido” que filma Astruc. Por que se surpreender? Sabe-se já há algum tempo da admiração que tem pelo autor de Les signes parmi nous. E antes por que o autor de L’albatros? Porque o plano de abertura de Une vie assombra todo o filme com a sua efígie baudelairiana. Porque Maria Schell corre a toda velocidade em direção ao mar e o vestido de Pascale ilustra como um eco o mais famoso verso daquele que disse a Manet: “Você é o primeiro na decadência da nossa arte”. Poderíamos falar de Thomas Hardy, de Faulkner também e da Charlotte Rittenmayer de Wild Palms, transposta aqui no personagem encarnado por Marquand: mas o próprio Astruc já falou tanto que os admiradores de Rideau procuraram hoje do meio-dia às quatorze horas, espantando-se de nada encontrar. Tudo isso prova o quê? Que se falava de pintura sem ver que Une vie é um filme de romancista. E de gosto sem ver que é um filme de bárbaro.

Defendê-lo contra aqueles que o admiram mal, eis algo doravante feito. Contra os outros, a tarefa é mais fácil, pois Une vie é quase o contrário de um filme astruciano, uma vez que tínhamos confinado Astruc ao interior de um sistema estético pré-fabricado do qual hoje ele escapa.

Não importa que a versão atualmente projetada nas salas não corresponda mais àquela que a decupagem previa. Não importa que cada cena seja sistematicamente interrompida com a montagem em pleno andamento. É necessário admirar Une vie como é. E, como é, Une vie se apresenta como o oposto de um filme inspirado. A loucura por trás do realismo, dizia Astruc numa entrevista. Mas ele foi mal interpretado. A loucura de Julien é de ter se casado com Jeanne, e a de Jeanne de ter se casado com Julien. E isso é tudo. Não se trata de filmar La folie du docteur Tube, mas de mostrar que um lenhador e uma dona de casa que se amam, é loucura. Na verdade, Une vie desconcerta os mais ardentes defensores de Astruc, como Le plaisir havia desconcertado aqueles que acreditavam conhecer Maupassant. De fato, enquanto esperávamos o Astruc lírico, foi o Astruc arquiteto que sobreveio.

Une vie é um filme prodigiosamente construído. Empreguemos, portanto, imagens emprestadas da geometria clássica para ilustrar nossa proposta. Um filme pode ser comparado a um lugar geométrico, isto é, a um conjunto de pontos que gozam de uma mesma propriedade em relação a um elemento fixo. Este conjunto de pontos, se assim preferirem, é a mise en scène: e essa mesma propriedade comum a cada instante da mise en scène será, por conseqüência, o roteiro ou, se assim preferirem, o argumento dramático. Permanece então o elemento fixo, ou até mesmo eventualmente móvel, e que nada mais é que o assunto. Ora, acontece o seguinte. Na maior parte dos cineastas, o lugar geométrico do assunto que pretendem tratar não excede jamais os locais de filmagem. Quero dizer que, uma vez que a ação dos seus filmes pode se desenrolar ao longo de vastas áreas, a maioria dos cineastas não pensam suas mise en scène para além da extensão dos seus plateaux. Astruc, por sua vez, dá a impressão de que pensou seu filme sobre todo o perímetro exigido pelo roteiro, nem mais nem menos. Vemos em Une vie não mais que três ou quatro paisagens da Normandia. E o filme, no entanto, dá a fantástica impressão de ter sido meditado na escala real da Normandia, como Tabu tinha sido na do Pacífico ou Que Viva México na do México. As referências talvez sejam exageradas. Mas elas estão lá. O fato é demasiadamente notável para nos omitirmos de assinalá-lo. Ainda mais porque Astruc e Laudenbach deliberadamente aceitaram a dificuldade ao não mostrar mais que, como já dissemos, três ou quatro aspectos da paisagem normanda. Pois não é mostrar a floresta que é difícil, é mostrar uma sala de visitas da qual se sabe que a floresta está a dez passos. Não é mostrar o mar que seria ainda mais difícil, mas um quarto do qual se sabe que o mar está a setecentos metros. A maioria dos filmes são construídos sobre os poucos metros quadrados de cenário visível na lente. Une vie foi concebido, escrito e dirigido sobre vinte mil quilômetros quadrados.

Sobre esse imenso espaço invisível, Astruc instalou suas coordenadas dramáticas e visuais. Entre a abscissa e a ordenada, nenhuma curva é inscrita que corresponderia a um movimento secreto do filme. A única curva é ou a abscissa ou a ordenada, o que conseqüentemente corresponde a dois tipos de movimento, um horizontal, o outro vertical. Toda a mise en scène de Une vie é fundada sobre esse princípio elementar. Horizontal é o percurso de Maria Schell e Pascale Petit rumo à praia. Vertical, a inflexão de Marquand quando acolhe sua companheira no quebra-mar do porto. Horizontal, a saída dos recém-casados após o jantar de casamento. Vertical, a facada que desengancha o corpete. Horizontal, novamente, o movimento de Jeanne e Julien percorrendo o trigal. Vertical, novamente, o da mão de Marquand apanhando o punho de Antonella Lualdi etc. Para Astruc, dirigir Une vie consiste simplesmente em valorizar um desses dois movimentos, horizontal ou vertical, em cada cena ou cada plano que possui sua própria unidade dramática, e de valorizá-la bruscamente, deixando nas sombras antes ou após dele tudo o que não faz parte desse movimento brusco.

Esse tipo de efeito, essa violência meditada, Astruc, em Les mauvaises rencontres, ainda a utilizava como Bardem: numa mudança de plano, numa porta que se abre, um vidro que se quebra, um rosto que se afasta. Em Une vie, ao contrário, ele a utiliza no decorrer do plano, extrapolando de tal forma a lição de um Brooks e sobretudo de um Nicholas Ray que o efeito torna-se quase na causa. Não é Marquand arrastando Maria Schell para fora do castelo que é belo, é a subitaneidade com que o faz. E essa subitaneidade dos gestos que desencadeia o suspense a cada três minutos, essa descontinuidade latente na continuidade, nós a identificamos como o coração revelador de Une vie por mostrar nitidamente o parentesco deste filme falsamente frio com o verdadeiro mestre do mistério, Edgar Poe, o autor mais abstrato do mundo.

Assim como Amargo Triunfo, Une vie é um filme formidavelmente simples. E simplificar não significa estilizar. Astruc se opõe aqui a Visconti a quem seria idiota compará-lo. Em Um Rosto na Noite, Maria Schell certamente foi mais eficientemente utilizada. Mas em Une vie, ela o é de forma mais justa e profunda. Em seu tempo, Maupassant foi sem dúvida um autor moderno. Paradoxalmente, portanto, a melhor maneira de encontrar o verdadeiro tom do século XIX era dar ao caso um tom francamente 1958. Astruc e Laudenbach triunfaram magnificamente. Basta tomar como prova a admirável réplica do admirável Christian Marquand: “Por sua causa, arruinei a minha vida”. Outro exemplo ainda: enquanto Jean-Claude Pascal carregando Anouk Aimée nos seus braços parecia antiquado, a mesma atitude com Marquand e Maria Schell parece moderna.

Mesmo após termos dito tudo de melhor sobre Pascale Petit (com quem Astruc refez o fenomenal trabalho de Renoir com a Françoise Arnoul de French Cancan), que corre pela mata tão bem quanto Orvet e se esconde debaixo de lençóis melhor que as moças de Vadim, ainda não teremos dito tudo. No limiar do desconhecido, este poderia ser o título de Une vie mais que de um filme de ficção-científica. Pois Une vie força o cinema a portar seus olhares algures.

(Cahiers du Cinéma nº 89, novembro 1958, pp. 50-53. Traduzido por Bruno Andrade)

 

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