ABAIXO DO VULCÃO
por Alexandre Astruc
O mistério do ser humano, que não é outro senão o mistério da graça acordada ou recusada à criatura, é tão essencialmente o tema fundamental do cinema anglo-saxão que acabou por incendiar ou devorar, ainda mais que as chamas e os afluxos de lava desse vulcão presente como um presságio esquecido no fundo do quadro, o Stromboli do italiano Rossellini. Esse filme fulgurante é minado por uma força que os prestígios de uma estética suntuosa não conseguem conter. O pequeno rosto misterioso de Ingrid Bergman fica tão pouco à vontade nesses fundos gloriosos que tentam lhe roubar o destaque que o filme, por sua vez, sente o contragolpe dessas contradições internas e vaga ao acaso, deslocado, para vir enfim se encalhar na areia como um navio mal equilibrado.
As leis do cinema são aquelas da alma. A impostura a corrói. Bergman, em Stromboli, é a história de um exílio. Realizando Festim Diabólico, Hitchcock fracassaria apesar de uma técnica estonteante: a alma anglo-saxônica tem tão pouco o senso do teatro quanto a alma latina o do romance... Em Sob o Signo de Capricórnio, almas aprisionadas, às quais três séculos ensinaram a impostura do diálogo e a recusa altiva da confissão e da absolvição, se encontram face a face no silêncio que a todo tempo será seu elemento natural.
A câmera é a testemunha. O percurso fascinante de uma criatura num beco sem saída, do abandono à afirmação de si, é vigiado ao longo desse filme surpreendente para um diretor que sabe em definitivo que o mistério do ator e da sua irradiação sobre a tela é exatamente da mesma natureza que o da alma torturada da qual se propôs a narrar o lento avanço. Ele está além do bem e do mal, do bom e do mau, da técnica e do exercício espiritual, de modo que tão impotente em organizar o jogo de seus atores quanto um guia espiritual em dispor daquilo que não pertence em última instância a Deus ou a si mesmo, ele só poderá os auxiliar a encontrar suas verdades de expressão como esse irlandês que ajuda Bergman a passar da abjeção à paz da alma, mas deverá também renunciar a obter o benefício assim como a lhe dar uma orientação definitiva.
Todo o resto, fotografia, decupagem, etc., pertence à mise en scène, isto é, à organização da mentira. Essa parte em Sob o Signo de Capricórnio é reduzida a tão pouco, após os brilhantes exercícios de estilo de Interlúdio e Festim Diabólico, que é quase como se o filme fosse feito do lento fluxo de um plano único, dilatado e reabsorvido de acordo com as pulsações internas de um mesmo coração.
... E que seria aqui o responsável pela criação obstinada de um mundo premeditado e voluntário, em torno desse drama do abandono e da reconquista de si em que apenas a existência de uma graça além de todos os cálculos será o signo fulgurante de uma transcendência que a reveste inteiramente. O inferno de Sob o Signo de Capricórnio é o inferno de Milton: o vazio desolado de um coração em que a promessa da redenção lentamente se desvaneceu. Os seres decadentes que contemplam seus rostos de pálpebras pesadas só podem se dirigir a si mesmos, interrogando nos espelhos seus olhares consumidos, onde tremem ao ver se levantar a imagem do irremediável. O universo em que brota a graça é um universo de solitários e um universo de semblantes. Ela marca sua passagem ou sua ausência nos olhares alternadamente ardentes ou apaziguados.
Mas qualquer outra escritura, meio de expressão, mise en scène de cenários ou de iluminações, que constrói com as linhas do enquadramento um universo cuja arquitetura triunfante dá a ilusão de se elevar com a sua própria gravidade, desafia a graça. Para se exprimir ela não dispõe de nenhum signo porque ela não possui intermediário. Ela se pressente na expectativa ou não se revela.
A arte da tela será nessas perspectivas a arte fundamental da ambigüidade e do equívoco. O teatro latino, o romance francês foram técnicas de opressão, baseadas numa certa idéia da maleabilidade das almas; as Ligações Perigosas e Corneille possuem em comum essa mesma indiferença altiva no que diz respeito à angústia das almas, essa mesma crença na existência de um sistema de regras que devem permitir dirigir seus cursos, assentando armadilhas lá onde o romance protestante assenta questões. Daí a desconfiança sempre manifestada pelo catolicismo no que concerne às artes do tempo, e em particular ao romance, que não está longe de ser a arte do diabo, porque de todas é a que mais se funda sobre a noção de liberdade. Com os pintores a igreja sempre colaborou, com os romancistas jamais. E, em contrapartida, veja como todo o teatro jesuíta, francês ou espanhol, e a pintura barroca italiana cujo rigor protestante se desviará como se estivesse diante de imagens de um baile de máscaras, é uma técnica de propaganda em que os prestígios de uma arte da arquitetura construídos sobre uma substância gloriosa e encarnada são subvertidos a serviço de uma causa ainda mais política que moral... Mas que finalmente ameaçará, sobretudo, a ordem divina da arte da liberdade e da dialética da graça tal como ela se exprime no romance e no cinema anglo-saxônicos, ou a da mise en scène arquitetônica na qual a pintura é subvertida de forma a beneficiar do drama e o drama de forma a beneficiar a idéia?
Sendo a técnica o modo de organizar o drama, faz-se necessário compreender que ela operará diferentemente de acordo com a idéia profunda que será feita em definitivo do homem. Essa arte da espera e da revelação, que é a de Sob o Signo de Capricórnio, repousa inteiramente sobre o ator interpretado como uma pessoa, assim como a do romance repousa inteiramente sobre o personagem. Essas consciências ao mesmo tempo livres e acorrentadas, nunca abandonadas pois foram compradas, nunca livres porque angustiadas, só revelarão os seus segredos no decorrer da espera, face à câmera onde o nascimento de um reflexo de felicidade ou de tristeza desequilibra imediatamente a significação do drama como os gestos misteriosos dos heróis de Meredith ou de Henry James, surgidos com o virar de uma página na afirmação gloriosa de suas existências únicas, colocando imediatamente em questão as próprias possibilidades concedidas ao homem. A Rossellini será necessário importunar um vulcão e encenar o mar eterno para reencontrar a grande tradição da parábola judeu-cristã tal como ela se desenvolveu principalmente na hagiografia católica. O cinema terá permitido à ópera italiana recuar aos seus limites. Mas veja como mar, vulcão, florestas, nuvens vêm por sua vez desempenhar os seus papéis, armadilhas sorrateiras, personagens, décors, limites, chorrilhos de lava onde - como na pintura barroca - a organização metódica e racional das maravilhas do mundo fará da natureza um vasto cavalete de inquisição, em que as manivelas são substituídas pelos grupos de homens do mar golpeando os atuns, cujos últimos sobressaltos sobre esse convés de madeira dura serão para a nossa pecadora a imagem inocente dos perigos que a espreitam. O inferno de Sob o Signo de Capricórnio é um olhar, o de Stromboli um derrame de lava flamejante, mas sem dúvida só mesmo os italianos para crer que o que se exprime pela boca das crateras seja a voz de Deus. Como Maurice Schérer, ao todo de Stromboli prefiro esse plano de Sob o Signo de Capricórnio em que o rosto de uma mulher é de repente mais vasto que o mar.
Quando Bergman grita a plenos pulmões, batendo-se incansavelmente contra esses muros de pedra que a encarceram no seio de uma criação que lhe oferece apenas a expressão do exílio, envolta pelo mar nessa praia vaporosa de uma leve bruma, como não pensar apesar de si nessa outra criação dramática em que uma técnica de duelos e de cavalheirismos terá sido imediatamente posta em causa pelo nascimento misterioso de uma alma excluída, como não pensar nesse mar banhado pela bruma da manhã onde Fedra incansavelmente pensa nos seus amores malditos? O Mediterrâneo jamais terá completamente uma expressão de cólera, ela é muito cheia de cumplicidade, repleta até o focinho de signos e de promessa. A Odisséia não é Moby Dick e Ájax não é Macbeth. Se Sob o Signo de Capricórnio, para além de uma anedota familiar, possui o aspecto fascinante desses livros misteriosos em que as criaturas dedicadas ao mal escutam bater os movimentos mais secretos de um coração desarmado, enquanto Deus morre lentamente nesse terraço do Ocidente, onde tantas vezes, de Macbeth a Ivan Karamazov, as potências obstinadas do orgulho colocaram seus rostos e seus lábios mortificados na afirmação apaixonada de uma revolta em nome do crime, em nome do orgulho, em nomes dos olhares intoxicados, em nome do medo conjurado e da maldição assumida, Stromboli tem, nesses derrames de lava, os vapores leves desse mar violeta onde o homem ainda não acredita no sangue derramado. Quando os vapores do vulcão se dissipam completamente abaixo dessa planície ressecada onde Bergman agoniza longe dos seus apocalipses familiares, e sem dúvida é esta a idéia verdadeiramente genial de toda essa história, de tê-la feito vir para morrer desta forma, em um desses locais onde a natureza é muito pouco presente para existir de fato, exorcizada pelas duplas janelas e pela higiene das maquiagens, é uma estrangeira em definitivo que terá desaparecido, duplamente exilada, duplamente abandonada à beira dessa cratera sagrada diante da qual ela terá em vão buscado sob as suas lágrimas as palavras de uma oração de exorcismo. Essa boca que expele a lava quente do mundo, que sentido profundo ela terá podido dar ao seu delírio senão o de uma insensatez cujo horror terá sido sem limite. Que voz, que deus cruel de tempos arcaicos todo untado de cinzas quentes e de embarcações marítimas terá acordado nessa noite no fundo do inferno? Mas lá embaixo, na beira das ondas, ao pé desse deus fulminante, esse povo moreno e crespo prossegue interminavelmente com os misteriosos ritos que após séculos o protege contra o céu negro, e caminha em círculos, para deter a descida furiosa dessas lavas flamejantes, essas pequenas estátuas de pedra branca em meio às quais um rosto de mulher lhe assegura que é da mesma natureza que esse basalto movente, e que nada de mal, portanto, pode ser esperado dessa substância gloriosa, uma vez quem elevada num firmamento à Bernini, por pura força de sua graça reinará à direita de Deus pela infinidade dos séculos...
(Cahiers du Cinéma nº 1, abril 1951, pp. 29-33. Traduzido por Bruno Andrade)
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