LE RIDEAU CRAMOISI
por João Bénard da Costa


(Le rideau cramoisi). 1952. Argos Films/Como Film (44 minutos). Produção: Sacha Kamenka. Roteiro: Alexandre Astruc, baseado na novela de Jules-Amédée Barbey d’Aurevilly. Fotografia: Eugen Schüfftan (P/B). Música: Jean-Jacques Grünenwald. Cenografia: Mayo. Montagem: Jean Mitry. Elenco: Anouk Aimée (Albertine), Marguerite Garcya (a mãe de Albertine), Jim Gérald (o pai de Albertine), Jean Claude Pascal (o oficial), Yves Furet (o narrador).

Em 1952, pouco antes da estréia em Cannes de Le rideau cramoisi, seu primeiro filme, Astruc publicou nos Cahiers du Cinéma um importante artigo sobre o chamado expressionismo alemão e sobre Murnau intitulado “Le Feu et la Glace”.

Nesse artigo, Astruc “relê” o movimento cinematográfico dos anos 20 na Alemanha à luz do romantismo, aproximando sob um mesmo denominador comum - a que chama “lyrisme d’idées” - esses dois períodos da história da arte. Em ambos uma contenção formal - o gelo - serviria, não para reprimir, mas para plenamente manifestar o fogo que anima as obras dos grandes românticos e dos grandes expressionistas.

Ao propor essa associação entre dois termos antagônicos, Astruc não era, certamente, inocente. Saberia que o “diabolismo” que penetrara a vertente romântica do neo-catolicismo francês do Século XIX (Huysmans, Barbey, Villiers de l’Isle Adam) tinha autorizado a dupla imagem como metáfora ao inferno (fogo de que o gelo seria a essência) e saberia das conotações eróticas dessa mesma metáfora.

A prová-lo está a escolha para início da sua obra cinematográfica de uma novela de um dos vultos dominantes dessa corrente: Barbey d’Aurevilly (1808-1889). Novela que é a primeira da famosa coletânea Les diaboliques, publicada em 1874.

E que esta novela tenha sido - como foi - a segunda escolha nada prova em contrário, pois que a primeira fora uma obra de um autor que, como Barbey, embora num contexto muito diferente, prolongara o satanismo de certa aufklärung: Edgar Poe e o conto O Poço e o Pêndulo que, aliás, Astruc levaria treze anos mais tarde ao cinema.

Assim, foi nessas paragens, de fogo e gelo, que Astruc buscou a inspiração para o início da carreira. Teriam sido as suas intenções as mesmas de Barbey, católico e conservador, que acreditava servir mais à moral e ao catolicismo escrevendo Les diaboliques que os seus detratores (os positivistas e naturalistas) a que chamou “diables de la vertu”?

Acreditaria, como Barbey, que “les peintres puissants peuvent tout peindre et que leurs peinture est toujours assez morale quand elle est tragique et qu'elle donne l'horreur des choses qu'elle retrace”? Se Astruc assumia a herança desse demonismo, sabia já da ambigüidade de tais declarações, e daí que pudesse juntar, como epigrafistas do filme, Barbey e Sade, o católico romântico e o ateu libertino. Ambos podiam ter dito - daí a ambigüidade - tout le mal est dans l’âme. O tema de um e de outro era o erotismo, na acepção que ao termo deu Bataille e que Astruc bem compreendeu alguns anos antes da obra e das reflexões deste “entrarem na moda”.

Para essa “descida aos infernos”, para esta incursão num domínio sagrado, para esta exploração nos territórios do fogo e do gelo, Astruc partiu com a lição cinematográfica de Murnau e dos “expressionistas”. À luz de quanto precede não há que admirar se a combinou com a lição do mais “anti-expressionista” dos cinemas franceses, Robert Bresson, cuja obra não estará isenta desse mesmo demonismo.

A contrapartida do fogo que devora Albertine é, uma vez mais, o gelo bressoniano da composição do personagem magistralmente interpretado por Anouk Aimée. Gelo que se comunica a todos os elementos significativos do filme: o décor, a luz, o cromatismo, a mise en scène, o silêncio, o comentário (do qual Astruc, embora seguindo fielmente Barbey, eliminou todas as expressões mais vigorosas, todos os adjetivos mais redundantes, as repetições ou a retórica, que não estavam ausentes da novela e do estilo do escritor).

Ficou só esse universo de escadas, espelhos, cristais e tabuleiros de jogo; essa luz filtrada de candelabros e lareiras; essa variação de brancos e pretos (sapatos de Anouk Aimée, botas de J. C. Pascal); essa precisão “matemática” dos gestos e das deslocações (seqüência em que Albertine pousa a mão em cima da do oficial); essa ausência de som in (apenas interrompida pelos sons dos pais, pelo barulho dos corpos, dos talheres); esse francês admirável dum classicismo perfeito. Tudo servindo simultaneamente de moldura e cache para a história de “aprovação da vida até na morte” que é a contada. Ficou só, como bem notou Fernando de Azevedo, essa combinação de Ingres e Corot, pintores que, em conseqüência com o universo recriado, presidem ao espaço e à composição desta obra insólita.

Le rideau cramoisi não é um filme de amor. Por várias vezes o protagonista se interroga sobre o nome a dar àquele sentimento e recusa sempre o termo. Ele sabe que é a vítima (embora julgando-se carrasco) de algo de inominável, que é a profunda desordem introduzida pelo personagem de Anouk Aimée. Para que essa desordem, ou essa vertigem, funcionasse plenamente era necessário que as ordens - do filme e no filme - fossem perfeitas e que sobre elas imperasse esse formalismo glacial onde reside tanto do fascínio criado por esta obra.

Obra que muitos classificaram como “exercício de estilo” e que o próprio autor, hoje, parece renegar vendo nela, sobretudo, uma ilustração de um texto literário. Só que o exercício e a ilustração podem ser vistos, à luz de quanto foi dito, como o equivalente - em aplicação e neutralidade - do frio que à época Astruc invocou. Só que o visível traçado da obra, o seu “formalismo” surgem singularmente adequados ao espaço dentro do qual se não pode penetrar.

Em tais territórios - aqueles que cada movimento, cada gesto de Anouk Aimée insinua - talvez se não possa ir além do jogo formal, da ilustração, do exercício. Tudo o que fosse a mais seria trazer à superfície o que tem que jazer oculto. Ou seja, era necessário que a escrita prevalecesse para que o texto se manifestasse.

 

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