O CORAÇÃO REVELADOR
por Frédéric Majour


(La proie pour l’ombre). 1961. Les Films Marceau/Cocinor (95 minutos). Produção: Edmond Ténoudji (não creditado). Roteiro: Alexandre Astruc. Diálogos: Alexandre Astruc, Claude Brulé. Fotografia: Marcel Grignon (Dyaliscope, P/B). Música: Richard Cornu. Cenografia: Jacques Saulnier. Montagem: Denise de Casabianca. Elenco: Annie Girardot (Anna Kraemmer), Daniel Gélin (Eric Kraemmer), Christian Marquand (Bruno), Anne Caprile (Luce), Christiane Barry (senhora Interlenghi), Michel Chastenet, Michèle Gerbier (Claudine), Corrado Guarducci (Edoardo Interlenghi), Michèle Girardon (Anita).

La proie pour l’ombre é de antemão um filme tátil. Os corpos se esfregam, se tocam, as carícias abundam... Tátil e têxtil. O gesto também é palavra. Em Buñuel, permite-se ao ator não pensar tanto no seu personagem; em Klossowski (via Zucca), trai-se aquilo que o personagem pensa, até que se exprima o contrário do que é dito; em Astruc é ainda diferente: o gesto exprime o sentimento: desejo, inveja..., ele diz o que sente o personagem, conforme o instante, mas não diz a verdade. De fato, para que uma verdade seja dita, muitas vezes não é necessário qualquer gesto, qualquer palavra. Assim o final, magnífico, sirkiano, no aeroporto de Bourget onde se opõem o silêncio de mármore de Gélin (afastando-se definitivamente, nos braços de sua amante, daquela que ele não soube amar) e as palavras pouco audíveis, posto que cobertas pelo barulho das turbinas, de Girardot (mulher enfim livre, mas terrivelmente sozinha, gritando ao seu marido que ela não o ama mais). O que se diz lá, com força, não tem nada de uma revelação. O filme nos faz entender desde o começo: uma mulher moderna, emancipada, porém materialmente dependente de seu marido, encontra outro homem, idealista, que ela ama tanto com paixão como com agonia, pois está consciente dos perigos que lhe representa o amor-paixão. Uma contradição que só a mise en scène está à altura de traduzir. Em La proie pour l’ombre, isto começa pela escolha do Cinemascope, que permite a Astruc integrar plenamente os atores no décor, sejam eles exteriores, essencialmente urbanos (Paris e os grandes conjuntos - Gélin constrói imóveis), ou interiores, particularmente modernos (da galeria de arte à vila burguesa passando pelo estúdio de gravação), que sobretudo lhe permite deslocar sua câmera (ex stylo) - segundo um movimento que qualificamos com prazer de premingeriano -, sem precisar optar, ao usar o enquadramento enlarguecido, entre o ator e seu ambiente, achando assim o equilíbrio que faltava até aqui aos seus filmes, por demais literários. Equilíbrio muito necessário pois trata-se aqui de filmar momentos de crise e não o que se passa ao largo delas - o tempo entre-crise -, como por exemplo em Antonioni. Podemos ver então La proie pour l’ombre como um filme-tensão, entre o classicismo americano e a modernidade européia, entre Preminger e Antonioni, cuja questão seria: como filmar um personagem antonioniano (Girardot) à maneira de Preminger.

Sabe-se que no início Astruc começara a escrever o filme com Françoise Sagan (ecos de Bom Dia, Tristeza de Preminger?) - o filme se chamava La plaie et le couteau, título baudelairiano tirado de L’héautontimorouménosJe suis la plaie et le couteau!/Je suis le soufflet et la joue!... ») -, uma colaboração da qual não resta mais grande coisa, exceto a alta sociedade na qual a heroína evolui (sem esquecer seu carro esportivo!), Astruc e Brûlé, o novo roteirista, que trabalhava com Vadim, utilizando as indicações de alienação feminina, com a heroína, ainda que socialmente emancipada, sendo prisioneira de suas contradições internas, visão esta que alguns não deixarão de considerar misógina. Se fosse para reter um único momento do filme, que desse testemunho do equilíbrio encontrado pelo cineasta para dar conta desses estados de crise que os personagens atravessam, tal como do olhar que ele guarda sobre a mulher, este seria sem contestação o plano-seqüência dentro do estúdio de gravação onde Girardot, seguida por Gélin, encontra Marquand (o amante) durante uma pausa - gravava-se a célebre cantata 51 de Bach. Plano-seqüência de sete minutos, talvez o mais belo de toda a obra de Astruc: elegância dos movimentos de câmera, evoluindo ao ritmo das diferentes reações (atenção, surpresa, inquietude, agitação...) manifestadas pela heroína, ela mesma organizando o espaço com seus deslocamentos, sob o olhar de dois homens; força do enquadramento, aproximando-se mais perto dos personagens quando eles se preenchem de emoção, como no segundo movimento (o recitativo) da cantata de Bach, que a orquestra gravara logo antes de começar a seqüência e que os personagens, a convite de Marquand, se põem a escutar religiosamente. Ao fim, retoma-se o diálogo do começo (o magnetofone continua a rodar após a gravação do recitativo), quando Girardot diz a Gélin, agora que estão a sós, que tudo está acabado entre eles. Furioso por essa pequena conversa ser assim exposta, ele lança ao senhor do lugar: « Bravo, foi muito bem sucedida a sua mise en scène ». Não saberíamos dizer melhor...

(Traduzido por Matheus Cartaxo)

 

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