OS AMANTES DE PONT-NEUF
por Bruno Andrade


(Les amants du Pont-Neuf). 1991. Les Films Christian Fechner/Films A2/Canal+ (125 minutos). Produção: Christian Fechner. Produtor delegado: Bernard Artigues. Produção executiva: Herve Truffaut, Albert Prevost. Produtor associado: Alain Dahan. Roteiro: Leos Carax. Fotografia: Jean-Yves Escoffier (Fujicolor). Cenografia: Michel Vandestien. Montagem: Nelly Quettier. Elenco: Juliette Binoche (Michèle Stalens), Denis Lavant (Alex), Klaus-Michael Grüber (Hans), Daniel Buain (o amigo vagabundo), Marion Stalens (Marion), Chrichan Larson (Julien), Paulette Berthonnier (a barqueira), Roger Berthonnier (o barqueiro), Edith Scob (a mulher no carro), Georges Apperighis (o homem no carro), Michel Vandestien (bombeiro), Georges Castorp (adormecido), Alain Dahan (adormecido), Pierre Pessemesse (adormecido), Maître Bitoun (adormecido), Johnny Aldama (adormecido), Jean-Louis Airola (o colador de cartazes), Albert Prevost (o comissário), Marc Maurette (o juíz), Marie Trintignant (voz off).

Método, Método, que queres de mim? Bem sabes que comi do fruto do inconsciente.

Jules Laforgue

A visão recente em 35 mm. da versão integral de O Portal do Paraíso dissipou alguns dos mal-entendidos que ainda hoje pairam sobre os trabalhos de cineastas como Cimino e Carax. As marcas de fábrica de ambos seriam, a princípio: a desmesura; o recurso excessivo e anacrônico (afronta das afrontas...) às convenções de outrora; a ausência de concessões a outras convenções ainda aceitas - e, por que não dizer?, requisitadas - pelo público de suas épocas. No entanto, o fundamental na visão de seus trabalhos é que eles revelam menos as extravagâncias de um estilo ocupado em alardear vitoriosa e vaidosamente seus próprios feitos que a própria condição da criação no campo da arte, cujo movimento determinante é esse em que o artista aceita os assaltos do desequilíbrio e dos próprios revezes da criação no exato momento em que sua busca pela forma quintessenciada é finalmente justificada pela captura daquilo que em épocas mais afortunadas, mais fecundas também, era chamado, entendido, comumente reconhecido e até mesmo aceito como “beleza”.

Tal atitude diante da criação artística, que fatalmente conduz a um estilo único e intransferível (em uma palavra: extraordinário, e pior: pessoal), deve permanecer inaceitável aos que têm o paladar saciado pela sopa insossa e sem substância das trivialidades audiovisuais temperadas de novidade (“agenciamento de formas” - pouco importa se afásicas ou inertes; “estética da confissão afetiva em cine-diário” - ainda que composto por imagens com a densidade de uma bolha de sabão; “fluxo aprazível ou avassalador de imagens” - tanto faz se na forma de derrame cerebral, hemorragia ou diarréia). Pois como podem duas obras modernas, em clara ruptura com as épocas em que foram feitas, atreverem-se ao pecado, caírem na impostura que constitui, no campo da produção artística dos últimos 40 anos, qualquer tipo de inscrição a tradições seculares? (da novela; da poesia; da narrativa aristotélica; das figurações de universos ficcionais firmemente calcados em convenções das artes plásticas; do teatro; da representação do tempo pela construção literária; e, mais simplesmente, do mais tocante e vibrante tipo de relato das atividades humanas que deixam sobre esta terra o legado de nossas lutas, nossas alegrias, nossos sofrimentos, em forma de vida, isto quer dizer de arte.)

Falamos, um pouco contra a nossa própria vontade, de “quintessência”. O que a recente exibição do filme de Cimino revelou foi que a busca desmedida de um grande artista pela forma mais elevada, freqüentemente recompensada pelo desprezo de um público muito mais auto-complacente que os autores a que acusam com tal pecha, relaciona-se muito mais, e muito mais satisfatoriamente, ao que até aqui entendemos por despojamento. Da idéia inicial à realização cinematográfica e desta à forma fílmica definitiva, o trabalho do cineasta - em Portal... e Pont-Neuf como em Alemanha, Ano Zero e O Atalante - consiste unicamente em coincidir seus meios, por mais exorbitantes ou reduzidos que sejam (e tanto uma escolha como a outra corresponde nas grandes obras a uma mesma demanda de precisão), na expressão mais nua, mais intacta da sua visão original. É no apuro com que se firma o ajuste entre os meios utilizados e a idéia - “portanto, um olhar”, como bem definiu Astruc - que reside a integridade, a grandeza de uma obra, quer esta se chame Pont-Neuf ou Napoleão, Dois Seres ou A Voz Humana. Eis o mal-entendido que a recente exibição em cinema de Portal... varreu do mapa de forma avassaladora: trata-se, em todos os casos, de uma mesma necessidade de se acompanhar minuciosamente os percursos de alguns seres perdidos na meia hora, na hora e meia ou nas três horas de projeção dos eventos selecionados e organizados de acordo com a necessidade de concisão de cada projeto (e a concisão, bem sabemos, corresponde a uma técnica em que a elucidação e o laconismo não se opõem mas se completam). Impossível, portanto, aceitar que filmes como os de Cimino e os de Carax sejam caracterizados, mesmo que com a melhor das boas intenções, por uma suposta desproporção inerente aos seus projetos, o que os tornariam menos propensos ao equilíbrio ou, pior, à perfeição. Independente de ser um close do rosto de Isabelle Huppert ou de Juliette Binoche, um plano aberto com 300 figurantes em quadro dançando ao som de Danúbio Azul num ritmo impecável ou uma grua que se levanta para acompanhar o trajeto dos dois amantes abraçados na proa de uma barcaça e que termina por se elevar sobre o Sena e, finalmente, por sobre toda Paris, o que impressiona, o que importa, é a forma como jamais se perde de vista o que torna grandioso um rosto, uma ponte, uma arquitetura vitoriana ou um gesto que nasce e se realiza entre a sujeira e o sublime. Algo ainda mais importante que o equilíbrio é assim alcançado, que talvez devêssemos chamar de “absoluto”, e para que o cineasta não o perca de vista é necessário que aceite, por mais árduas que possam parecer, as circunstâncias pelas quais a representação encontra os meios suscetíveis à sua concretização.

Às vezes, porém, é necessário deixar que um coração fale. Para se filmar um coração, de que forma usar uma câmera? Intuição: ainda e sempre como instrumento óptico, mas que Carax aborda, aqui e mais tarde em Pola X, como um supersônico microscópio - como se, uma vez instalado num posto de observação lunar, fosse necessário explorar um corpo ou um gesto não mais como objetos que sua potência de visão registrará como minúsculas partículas num todo insondavelmente maior, mas sim um corpo, um gesto, um sorriso, um silêncio que nos serão revelados como se fossem seus próprios planetas, com suas próprias constelações e o seu próprio universo, o qual chamaremos, para os fins deste texto, de Pont-Neuf.

Pont-Neuf, enfim: um filme, sua história, o documento da obstinação de um homem, que por ser cineasta aceitou as circunstâncias de que falávamos acima, mas que como artista trouxe consigo seu punhado de exigências. Destas, o filme provavelmente não traz mais que um traço, ou melhor, a intersecção de vários traços que alongam-se para além dos papéis a que foram atribuídos, despontando num horizonte que sugere a existência dessa obra maior - aos filmes, aos cineastas, às expectativas destes sobre aqueles -, e que seria a imagem de todo o cinema de um autor: ao mesmo tempo o filme sonhado, o filme vivido e o filme realizado. Quando ao final de Pont-Neuf Carax nos instala nessa embarcação que parece como que imune às paixões, aos excessos, aos desvarios, a todos os movimentos desordenados e apaixonantes que por cento e quinze minutos nos assaltaram - e aos amantes -, deixando-nos a sós com Lavant e Binoche sentados na parte de trás do convés da chalana que passa sobre o Sena, partilhamos uma verdadeira sensação de alívio, que nada mais é que a serena face de uma beleza ainda intocada, não mais atormentada... Como se tivesse sido necessário vasculhar na extensão de toda uma cidade, entre toda sua sujeira, até chegar nas profundezas de um rio, por aquilo que une inexoravelmente uma alma a outra. Ao ritmo febril e torpe que foi o do filme até então sucede sem nenhum choque, num sentimento perfeito de consecução, essa união, finalmente possível, de Lavant e Binoche num silencioso sorriso cúmplice, as batidas do coração substituídas aqui pelo motor pulsante da barcaça...

Foram necessários 20 anos para que nós, e talvez Carax conosco, viéssemos a entender a música que emana desses corações. Holy motors...

 

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