UM COMETA DE INTENSIDADE
por Toni D’Angela
(Pola X). 1999. Arena Films/Pola Productions/Théo Films/Pandora Filmproduktion/Euro Space/Vega Space (134 minutos). Produção: Bruno Pesery. Produção executiva: Albert Prevost, Raimond Goebel. Produtores associados: Karl Baumgartner, Kenzo Horikoshi, Ruth Waldburger. Direção de produção: Sylvie Barthet, Dschingis Bowakow. Roteiro: Leos Carax, Lauren Sedofsky, Jean-Pol Fargeau, baseado na novela Pierre, or, the Ambiguities, de Herman Melville. Fotografia: Éric Gautier (Eastmancolor). Música: Scott Walker. Cenografia: Laurent Allaire. Montagem: Nelly Quettier. Elenco: Guillaume Depardieu (Pierre), Katerina Golubeva (Isabelle), Catherine Deneuve (Marie), Delphine Chuillot (Lucie), Laurent Lucas (Thibault), Patachou (Marguerite), Petruta Catana (Razerka), Mihaela Silaghi (a pequena), Sharunas Bartas (o chefe), Samuel Dupuy (Fred), Mathias Mlekuz (apresentador de TV), Dine Souli (motorista de táxi), Miguel Yeko (Augusto), Khireddine Medjoubi (filha do dono do Café), Mark Zak (amigo romeno), Anne Richter (mulher do chefe), Myriam Defremont (policial), Michel B. Dupérial (policial), Pascal Parmentier (policial), Jean-Jacques Colin (policial), Bill ‘Smog’ Callahan (músico), Mario Gremlich (músico), Bobo (músico), Kerstin Fischer (músico), Tom Ivison (músico), Tom Liwa (músico), Thomas Klein (músico), Peter Sarach (músico), Fritz Wittek (músico), Till Lindemann (músico), Steve Donnelly (músico), Christoph Schneider (músico), Stefan Claudius (músico), Stuart Grimshaw (músico), Roland Höppnet (músico), Markus Kirschbaum (músico), Axel Neumann (músico), Martin Siry (músico), Julia Zanke (músico), Kersten Ginsberg (músico).
Somente a intensidade importa.
Georges Bataille
Emocionante, ilimitado, excessivo, absolutamente moderno, como um trabalho irrepreensível, uma vocação vertiginosa, nada reconfortante. Atrás do grande projeto armado e pacificado, busca absoluta do objeto perdido, corrida ao desejo impossível e inalcançável por (in)definição: Je suis un autre! Consumo de energia, in loco, na hora, no fogo do instante: nenhuma hipoteca pesada da eternidade que vigia e censura. Uma corrente, uma brisa, uma chama, não o discurso terrorista do Genitor incestuoso ou do Guardião interessado: é Pola X.
Leos Carax é filho do modernismo, um modernista tardio, Pola X, seu último longa-metragem, é uma amostra de seu talento visionário e de sua imaginação, uma alegoria passional, mas também uma rejeição atrevida à parafernália européia. Carax escolhe uma “língua menor”, experimental, um estilo que não é majoritário, um ataque extremo e violento à defesa da identidade: a identidade do escritor “sujo” de roupa limpa, pura e cândida somente porque predestinado ao sucesso, e da Europa grandiosamente corrupta e doente. Pola X é um filme de negações, destroços, ruínas, resíduos, fragmentos, que evoca a heterogeneidade caótica de Os Amantes de Pont-Neuf. Figuras da estranheza, da alteridade negada, assaltada e atacada para que não possa se misturar no sangue barulhento e confuso do mestiço, para que o belo jovem empertigado não descubra a horrível verdade tornando-se assim um vagabundo defeituoso e tolo. Excluídos, jovens rejeitados à mercê de insultos dos adultos, jovens artistas forjados pelos ultrapassados parasitas da cultura. Pola X é uma retomada de material que salva estes avanços da História, arqueologia industrial que no desequilíbrio faz (dis)senso, música que reconquista elementos metalúrgicos atribuindo-lhes novo significado (o rock experimental de Scott Walker), configurando um inédito território desocupado, uma comunidade diferenciada, uma ilha, uma heterotopia como a ponte em reforma de Os Amantes de Pont-Neuf, mas ainda ambígua: quase um bunker contra o mundo com monitor, cães, armas.
Pola X é uma obra exposta, exibida, ousada, toda exteriorizada como a alma de um cão, claramente, perigosamente, insolentemente abundante. Vômito raivoso contra a lógica serena e transparente da redução de complexidade que passa de um lança-chamas a outro e exige a correspondência entre aspiração e decisão. O desmascaramento brutal do mundo retrô da mentira confortante, a aparição escandalosa e revoltante da pré-história do privilégio. Mundo turbulento e febril que se rebela, acorrentado atrás dos muros nos quais foi confinado, para que sobressaia somente a beleza ordenada e arrumada da grande casa bem feita, castelo imaginário guardado pelos verdes prados e pelas mentiras cobertas de sangue. Como a merda explosiva que aflora dos esgotos cavernosos da Tóquio tecnológica em Merde, subterrâneos de uma história submersa da qual emerge uma criatura um tanto travessa e um tanto Mr. Hyde que sacode uma cidade presa e encantada na sua hipnose high tech. Asilo de um mensageiro de verdade extravagante, vingativo, irreverente, cruel e comovente na postura gestual acrobática e poética de Denis Lavant.
Cuspido poeticamente, Pola X incendeia o jardim enfeitado, virando a capa espetacular, tornando-a página em branco manchada e deformada, como os destroços dos Titãs: fragmentos, restos, ruínas. É a marca de Leos Carax: somente os aleijados, os excluídos, os destruídos, corpos suados, exibidos com o peito nu, com a barriga endurecida, feridos na mão ou no olho, como os personagens de Sangue Ruim. Somente os miseráveis, escreveu Georges Bataille, podem operar a ruptura, os ricos têm muito senso, são enfadonhos, se interpõem entre nós e o ignorado, entre nós e o Atlântico. Os seres quebrados, despedaçados de Carax possuem a virtude de não aceitarem isso que é, querem se libertar do fundo, gemer, sofrer, por não suportarem nem mesmo a fácil e bela harmonia e o conforto.
O cinema de Carax é esta corrida insana sobre a ponte parisiense, flecha que acaçapa até mesmo os fogos de artifício institucionais da grandeur francesa e que sela o antagonismo entre o mundo real dos amantes e a sociedade ordinária, fundo opaco e inerte, a despeito da singularidade da relação carnal e visceral entre Denis Lavant e Juliette Binoche (Pont-Neuf). Embora também eles, tão singulares e excedentes, devam finalmente acabar com a simulação, dissolver todos os vínculos no mergulho catártico e palingenético, na água que limpa e renova dando uma nova graça e leveza aos corpos, agora lançados no horizonte do amanhã, sobre a barcaça sonhadora de L’Atalante. Uma dança nas águas do êxtase, golpeada, naufragada, imersão no túmulo, à beira da morte, que faz de dois fragmentos, de dois restos, chama centrífuga já projetada na aceleração de Binoche no final de Sangue Ruim: tentativa de separar o vôo do sentido. Queda cheia de glória. O modern love de Carax, de resto, é sempre amour fou, caos que se aquieta apenas no seio da morte, romanticamente. Amor e morte são irmãos como em Boy Meets Girl, de um nasce o bem maior, a outra anula o mal maior. Paz e velhice, mortalmente misturados num frívolo e entediante funeral afterhour de cera, zombam ou ignoram os jovens enamorados e desesperados, cansados e lânguidos, as mocinhas aflitas e os jovens suburbanos inconseqüentes que anseiam, apenas a morte os envolve e consola, fechando os olhos tristes de Mireille Perrier e colorindo de sangue inocente a pureza branca das vestes virginais. Alex (Denis Lavant) e Mireille são as crianças do mundo do qual cantava Giacomo Leopardi.
Pola X é outro ódio gritado contra a vulgaridade do mundo, a sua vergonha, o mundo armado contra os jovens. É outra vontade de não ter limites, outro tumulto acéfalo que rejeita a simulação de uma vida ordenada e coesa, outra queda vertiginosa. Uma viagem intensa que vai ao fundo do abismo da violência histórica, a mais inexprimível, debaixo da noite da Europa, no pesadelo de treva da guerra que violentou e desmembrou a ex-Iugoslávia, fantasma da Europa e da sua história e das suas divisões. Como o pai de Pierre (um diplomata) é responsável pela filha ilegítima, assim a Europa é a causa do incestuoso suicídio iugoslavo.
A verdade é um longo e atormentado plano-seqüência na noite selvagem, sem capacete nem luz, a rejeição extrema da mãe que mostra o seio, o corte do cordão umbilical, a ferida e a doença e o crash que reúnem a narrativa e enfatizam a dialética. É o ingresso no túnel obscuro da história que promete somente viagens progressistas (a catástrofe do progresso), a qualquer custo, deixando atrás de si escombros e destroços: um parricídio e, junto, uma irmandade com o outro que o Pai sempre acusou e excluiu.
Pola X é um cometa excedente que se ama ou se odeia, uma separação radical do universo ordenado, nem líquido nem sólido, talvez nem mesmo um corpo: no filme os corpos nascem debaixo dos nossos olhos, esfolados, esculpidos, compostos na obscuridade, fachos de luz entrelaçados a massas de carne, entre o underground americano e Philippe Grandrieux. Uma perigosa e mortal evasão. Talvez um romantismo ingênuo, logo, inocente e absoluto, intolerável por todos os policiais do sistema que reclamam clareza e distinção: identidade.
A verdade da paz é a guerra da mentira, como as paradas militares que acompanham, de modo sinistro, o 14 de julho e a corrida desesperada de Juliette Binoche em Os Amantes de Pont-Neuf. Por enquanto a hipocrisia da crise é a crise da hipocrisia.
(Traduzido por Wellington Cavalcante)
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