PIERRE OU LES AMBIGUÏTÉS
por José Oliveira


In tremendous extremities human souls are like drowning men; well enough they know they are in peril; well enough they know the causes of that peril; nevertheless, the sea is the sea, and these drowning men do drown.

Herman Melville, no livro sobre o qual Carax se inspirou para o seu filme

I


No princípio foi Boy Meets Girl, programa e ato tão antigo e tão novo. Muita escuridão, muitas sombras, pretos carregados e brancos igualmente espessos, uma espécie de fulminação da luz sobre a matéria para assim lhe revelar esconderijos e destruir aparências místicas, seculares. Uma crueza nunca banalizada por qualquer suposto realismo mas antes inundada de reflexos e de fantasmagoria, de silhuetas incrustadas e de brilhos impronunciáveis, de luzes deste e de além-mundo. As trevas e os medos, essa manifestação arrebatadora do visível e uma vontade absolutamente louca de libertação e conhecimento, de limites e de abismos, inundam o cinema de Leos Carax. O seu êxtase lírico. Que também ele as soube ver, às trevas e aos abismos, não só nos extremos onde todas as outras cores habitam, sim utilizando toda a gama existente e desconhecida. Crianças temerárias e espasmos de solidão. Depois surgiram os metrôs, os campos abertos, as pontes e os museus, os rios e os magníficos fogos de artifício, as florestas e as estradas muito escuras ou mesmo sem luz alguma. As bombas sobre as cidades e nos repousos dos mortos. Amarelos estarrecedores. Vermelhos incendiários. Azuis apaziguadores. Verdes... Depois, os monstros. Todos os filmes de Carax são espetáculos de monstros e feiras incendiárias. Monstruosa humanidade, entenda-se. De seres que nem sequer tentam ir contra normas e leis mas antes possuem uma inocência e uma fome de tudo, de absolutamente tudo, carregando assim um aspecto e um vigor que assusta e que viola. Livres, muito livres. Desejosos, muito desejosos. São eles a atravessar o mundo e todo o resto a ficar fora de campo ou em “banda à parte”. Deve-se escolher com o coração, eles sabem-no, eles nunca duvidaram. Rapazes atrás de raparigas ou de almas gêmeas, raparigas atrás de almas gêmeas ou de rapazes, impossibilidade de fixação e ânsia de ver onde normalmente nem se pensar quer. Todas as relações possíveis sem prejuízo moral e muito menos físico. Uma ânsia carnívora e feroz. Uma ânsia selvagem e animalesca. Primitiva. Original. Eles não querem passar sozinhos. Não podem estar sozinhos. Todos os filmes de Carax são filmes de viagens e descobertas. De limites e de precipícios. De vórtices e de ziguezagues. Seres que não podem deixar de ver, de sentir, de transpor. Seres para os quais a morte surge como passo natural para mais uma infinitude de descobertas e jamais como fim de qualquer coisa. Ignorada deste modo, entendida desta forma, todo o porvir é uma experiência do absoluto. Daí ao desencanto e à profundíssima gravidade estampada nos rostos e nos corpos desses seres, temos talvez a constatação de que não receando qualquer das possibilidades, tudo poderá ser passível de desilusão. De não preenchimento. De não saceamento. Carax não é apenas o artista que vai ilustrar tudo isto, o homem detentor do segredo e da solução. Simplesmente não possui qualquer chave da verdade. Carax confunde-se com os mundos, pulsões e carne que explode, e se contêm na tela. Mistura-se. Metamorfoseia-se. Por isso não adota qualquer tipo de juízo nem de interpretação para com as suas personagens que não seja o de os amar. De os dar à vida. A sua câmera e o seu olhar fazem parte de um todo orgânico que transita entre a cena e a máquina e a máquina e a cena. E mais além, num além de que não disponho enunciação. São longos delírios impressionistas. Sentimentos dolorosamente concretos. Pinceladas bruscas e abstratas. Convicções indestrutíveis e dúvidas irrevogáveis. Epifanias soturnas. Vigílias demenciais. Sono atormentado. Peles arrepiadas. Cabelos ao vento. Erotismo desviante e cristalino. Nem maniqueísmo, nem lógica binária, antes uma perdição. Perdição como único e último sentido para habitar a incerteza da vida e do cosmos. O que Carax dispõe é uma abertura totalizante e sensível do homem perante a bruteza e os enigmas, mesmo que à custa de uma solidão medonha, de uma individualidade assustadora. “Escondidos para vivermos felizes” também poderiam ser os títulos dos seus contos. O primado do “outro” e da diferença. Uma autenticidade. Uma ontologia transcendida pela memória e pelo humano, de uma vez perfeitamente libertária e consciente. A candura das primeiras vezes - essa atitude quimérica, inevitavelmente romântica... - e esse fogo único da memória que jamais se poderá abandonar.

II


As obras de arte são de uma solidão infinita: nada pior do que a crítica para as abordar. Apenas o amor pode captá-las, conservá-las, ser justo em relação a elas.

Rainer Maria Rilke


Com Pola X, o título e versão que saiu para as salas em 1999 e que tanta tinta fez novamente correr, outra vez os comentadores detendo-se mais no seu cineasta, na sua personalidade, nos seus métodos e no inenarrável epíteto “megalômano” que lamentavelmente se lhe colou, ou seja, tudo coisas extra filme que nada deveriam importar - à semelhança do que aconteceu com Os Amantes de Pont-Neuf, outra obra que ninguém quis ver na sua imensa corporalidade e que fez definitivamente a sua fama - ou Pierre ou les ambiguïtés que saiu posteriormente para o canal francês Arte e que permanece praticamente invisível, sendo, do meu ponto de vista, o cúmulo da sua obra e o filme mais ousado do cinema contemporâneo desde essa data?

... são quase três horas em que Carax torna a versão de Pola X mais encorpada, romanesca, bruta, irracional, sexuada e assexuada, fodida, disforme, incendiária, terrível, terrorista, porca, terna, feérica, suicida, sublime... começa no mundo dos mortos com nevoeiros densíssimos e pedras deformadas já depois de tudo, passa por casas afundadas tais aquários com bonecas a nadar sobre orbes que não podem deixar de evocar a poesia dionisíaca de Lautréamont ou de Georges Franju - arcas de Noé justiceiras e lanternas mágicas fundidas de pérfida... peixes gigantes em poços pequenos que devoram quem lá ousar mexer... regressa aos mortos e... impossível descrever... apenas que a pulsão, o crescendo, os mistérios e fantasmas que se adensam e que tudo comem até a explosão final, tem a voragem kamikaze das grandes fatalidades e a ameaça é implacável como os mares e os respectivos cachalotes de Melville... Pola estica mais os abalos no estômago e o terror... vai mais longe na fantasmagoria... literalmente entra na tal mansão dos mortos doutras vidas conhecida. Uma longa doença, uma longa convalescença ou uma peste medonha sem volta a dar que alastra por toda a película e a corrói do primeiro ao último flash. Concertação entre ciência, a tal da arte e todo o demonismo ancestral e não delimitável; inevitavelmente o humano e a sua condição.

Idílico inicial minado... tranqüilidade atroz / cancro da floresta negra que advém do verde pérola do plano inicial.

Sem saída.

Pola é construído sobre um terrorífico e ascendente (ou muito, muito descendente até ao afogamento) movimento paroxístico que não dando a menor trégua quanto à iminência da catástrofe, pode ser lido ou sentido de várias formas, tantas quanto a nossa vida, a nossa experiência e o nosso medo já tentou, nenhuma delas podendo suavizar o apocalipse e as pontadas que se pressentem desde o inicio - aquela sensação muito urgente, muito desconfortável e próxima do pânico quando sabemos que algo jamais, jamais poderá acabar bem - antes meter sombras desmultiplicantes por qualquer dos caminhos que se escolha - à semelhança do protagonista Pierre, que nota-se bem não ter certezas sobre o que está a seguir e o que lhe acontece - e assim toda a violência latente e que faz por vezes despegar são nada menos do que os ferimentos e os uivos de um perdido fora de controle que por uma luz nova vai até aos fins. A perdição.

Tu es du même sang que moi; crois-tu, dis, crois-tu?

Jean-Arthur Rimbaud


Por partes: Pierre é escritor e mora num belo castelo com Marie, a sua Mãe, sua irmã, sua amante, e com toda a proteção possível. Está prestes a casar-se e o seu livro de estréia prepara-o para a fama e para os títulos, para não falar de ainda mais dinheiro. Um mundo perto do maravilhamento onde a vida lhe corre bem e o futuro tudo de bom augura. Mas como em Thomas Mann - donde Carax apanha a mesma ânsia e febrilidade romanesca indescansável - aquelas montanhas, aqueles verdes úmidos, aveludados e todas as indizíveis cintilações não são tão mágicas como aparentam e por debaixo delas brotam os sonhos e pesadelos que o começam a apoquentar e a lhe revelar algo maquiavelicamente desejável e por isso de aproximação proibitiva - estoura-lhe olhos muito adentro a presença desses fantasmas entrevistos. Então manda a vida pacificada e segura e regrada às urtigas e segue uma escura silhueta negra muito negra, de cabelos espessos muito espessos e tão negros como, até a impensáveis confins. Impensáveis. Isabelle, nome que por ela dito ou simplesmente soprado faz gelar a alma. Por ela penetra sem receios pelas negras e amaldiçoadas florestas que aqui se associam a infernos ou a poços sem fundo. Renega o passado, os escritos, a vida como até aí. Para apesar de tudo sentir, sentir mais qualquer coisa que pode ser algo do que se costuma chamar absoluto, nu, ao osso. Entrega-se à carne que os fantasmas podem ter. Isabelle... é irmã... não é irmã... pode ser a mais bela das irmãs... pode ser terrível, pode ser um dilúvio... não é irmã, não pode ser irmã... que isso importa se um sangue puxa o outro - “Nous pouvons bien avoir la même âme, puisque nous avons le même sang” escreveu há muito tempo o mesmo Rimbaud... Obceca-se à maneira de Nietzsche em sofrer pelos males e patologias dos seus tempos, de cuspir altivamente na cara das fraudes uma verdade pensada superior e por isso mesmo abafada.

Muita gente quis ver na figura de Pierre uma pretensiosa e indulgente projeção de Leos Carax, cineasta apelidado de maldito, problemático e de poucas falas. Ao escritor que quer dizer a verdade sobre os homens com quem partilha o solo, muitos quiseram ver que era o cineasta em arrogante auto-exposição. Velho hábito estúpido de confundir o fundo e as personagens e suas motivações com as formas, tudo o que importa. Velho hábito estúpido e podre de associar imediata e concludentemente ideologias de personagens ou as chamadas temáticas à personalidade e crenças do seu autor. Ó envergonhado Carax que fazem disso o pior dos pecados... A não ser que também se considere, como eu precisamente, que Pola é tão distinto e aterrador em relação ao cinema dos seus contemporâneos e à arte em geral, que só pode ser um escarro sobre isso. Um escarro necessário. Escarro contra os egos que se apoderam do social e dos coitadinhos da vidinha para ganharem rótulo de “salvadores” ou de “atuais”. Escarro contra os artistas de “cinema moderno” e de t-shirt Godard. Escarro às performances, aos museus que anseiam matar o cinema, às putas das instalações e aos que não tem tomates e estavam bem era em casa no sofá. Escarros aos exóticos bilhetes-postais. Pola, oxigênio. Pola, um foda-se contemporaneidade. Pola, coisa sem tempo.

Como na lenda de Fausto, Pierre decidiu estabelecer pactos com qualquer coisa que igualmente pode estar próxima do diabo e do arrepio derradeiro - uma grande, inidentificável e perversa abstração que só pode estar do lado do mal, do pior dos males. Como então costuma acontecer em tais pactos demenciais, a entidade maior ou dominadora não concede ao seu dominado a eternidade e fica de olho bem aberto - conseqüência irresolúvel, Pierre não está preparado para a sua démarche crística e demolidora, não está à altura do que tal obra exige e, mais medonho, torna a vida na obra e claro a obra na morte, recebe a mais indesejada das pragas. Ao contrário de Rimbaud - e ao mesmo tempo não, fundamental contradição, pois todo o resto do filme e percurso do escritor é mais Rimbaud do que qualquer um dos seus outros filmes, tudo mandar à merda e ir em direção à crueza pura -, que pela sanidade (?) e singeleza mandou toda a contemporaneidade para o caralho, afastando-se para bem longe, Pierre enfrentou de frente e integrou-se em novas frentes - a ensurdecedora e macabra orquestra comandada e interpretada pelos mais disformes seres do planeta - deixou-se queimar pelas vogais e pelo resto das letras que em sofrimento ia produzindo e o tiro final em duplo cano são palavras-balas. Ou seja, não estar à altura da Obra ou do que tamanha decisão rompedora acarretou? Ou já não ser possível quando certos limites ou todos os limites são ultrapassados?

Pola e Pierre e obviamente Carax não praticam o niilismo, nem sobretudo o desespero ou o cultivo dos fins dos tempos, como tantas obras bem ou mal intencionadas e feitas visionárias... No limite podemos aproximar uma desilusão evidente pelas normas e um certo mundo à imensíssima desilusão do Bartleby de Melville, com a diferença que Pierre volve tristezas em raiva e tritura o que lhe aparece e tantas vezes ele próprio. Estamos, importa repetir alto, na obsessão que tudo devora, no suor, no respeito pela temperatura do sangue de cada homem que é outro. Nas tempestades a Céline que empurram para a frente. Pierre pode estar dependente de fantasmas infantis, familiares, uterinos ou incestuosos, mas ao mesmo tempo, e é daí que nascem forças e contradições e as suas vulcânicas passagens, com sede de rasgar futuros, eternidades, infinitos quaisquer. Viver revolucionariamente porque ele.

Não se se entrega à loucura e aos abismos em vão com a pretensão de se planar em cima da nuvem como Zaratustra e demais super-homens, para assim se ajustarem contas com pecados, tormentas, injustiças e massacres seculares. E o mínimo que se deve esperar é o efeito cogumelo arrasador e alastrador das bombas de atômica potência que tudo reduzem a pó pelo diâmetro das suas atuações. A imagem final é representativa e por isso bruta - Pierre em tons dourados agasalhado mas aparentemente derrotado (?) e carregando na sua pesada e agora estacionária órbita os cadáveres da sua utopia, ousadia e finalmente estagnação. Volto a falar em movimento e numa sinfonia também ela das trevas que é então o movimento de Pierre - notas, tempos e composições em permanente fio da navalha, fora do razoável e da sua ditadura.

Se falei em bombas logo abro para outros caminhos sinuosos e de torturadas leituras, paralelas, irmãs ou a mesma coisa, só inocentemente mais tétricas ou ainda mais fantasmáticas. Só por contínua e teimosa ignorância ou insensibilidade se pensará em Alexandre Dumas e em infantilidade ao mesmo tempo. Dumas violência das descobertas redescobertas, Dumas western, como alguém me disse certo dia. Percorrer uma personagem por anos, desdobramentos temporais precisos e completamente abstratos, mundos reconhecíveis e paralelos, tempos nossos e tempos outros... realismo e onirismo.

De Shakespeare a irromper e a orquestrar, dos altos... até as profundezas letárgicas de Melville. Dessa tosse podre que devolve Louis-Ferdinand Céline e que inaugura Pola em temperatura Mozartiana do Réquiem. Das transparências minadas ao medonho escuro. Ar... mar... destruição... apocalipse... retorno impossível. Pierre ou les ambiguïtés vai da morte à vida e da vida à morte em hiatos indizíveis e irracionais, mas nessa mesma linha ou num novelo qualquer, movimentos lógicos pela força da verdade e da dúvida, sua irmã. Começa pelos lados estilhaçados e catárticos de J’accuse! de Abel Gance, revolta dos mortos, ajuste de contas e regresso lá para baixo, vai recuando, recuando... recuando ainda mais até a danação de Murnau e deixa-se afogar por Melville.

Daí estarmos constantemente em terrenos e em corpos e almas de monstros, fantasmas, espectros, nessas vigílias e sonhos e pesadelos... e que todos pareçam ser amantes uns dos outros e fazer amor - amor de fogo como o rasgo que incendeia o corpo e depois o papel e o sexo de Isabelle quando esta vai ao quarto de Pierre tomar um banho e entre sonhos e curiosidades delirantes ele a vislumbra em espelho ondulante para desejar um carnal fantasma que nunca foi tanto como aí nesse quarto de medonhas penumbras... do plano Magritte que condenou os loiros ao espelho de casa de banho temos aqui um plano - quadro Munch de espelho já amaldiçoado que como nesse afligido “Cinzas” se torna visão proibida e consequente passaporte para a insânia e logo para o absoluto que só nesse estado se estabelece, plenitudes fora das estratosferas terrestres como a animação incontrolável com que Pierre vai abater as teclas da sua máquina de escrever e assim responder “amém” a Rilke e ao seu morres se não escreveres?... se nesse banho Isabelle já não o é novamente é porque a assunção definitiva de cadáver de túmulo bósnio se assumiu para o sempre... fogo sobre o sexo dela e o da “Origem do Mundo” de Gustave Courbet... amor de Pierre e Marie que se denuncia com dois cigarros de relaxamento, com um dar as mãos ultra erótico sobre o sol do jardim, a visão provocante dos libidinosos seios descobertos que emergem da água ensaboada... Pierre e o seu primo Thibault agachados sobre os esféricos do pinball e as desconcertantes festas na cabeça... o mesmo malquisto Thibault e Marie sua prima igualmente com os tacos de golfe, fêmea entre tantos machos como ela própria diz... Thibault que esconde Lucie e se calhar nunca escondeu fomes outras... Lucie beijada por Pierre como os amantes condenados e encapuçados de René Magritte no espaço concêntrico e capitular que ao fechamento de betão se opõe letargias e mortificações por vaporação... Lucie e os ciúmes do irmão... Pierre, Lucie, Thibault, os três inseparáveis melhores amigos nas suas infâncias. Sangues cruzados, sangues violados, sangues manchados, sangues misturados. Transfusões constantes e adulteradas. Relações que a força de inteireza destrói o ilícito. Leis estranhas e sentimentos de emancipação obscura longe destes nossos dias e das telas principalmente. Insista-se - monstruosa mutação, monstruoso humanismo.

Humanismo... humanismo que se vai enfiar e recatar naquele hotel putrefato iluminado à luz de velas. Humanismo nos belíssimos passeios-fuga e deambulações a três ou a mais por jardins zoológicos, feiras, qualquer ruela ou restaurante vermelho como a aflição e a liberdade também podem ser, onde até Pierre canta num dos mais tocantes e belos retratos da entrega total e do desamparo total, no mesmo tempo e no mesmo lugar. Humanismo no amor de Pierre pela menina ao ensiná-la que certos humanos cheiram mal como os mais mal cheirosos animais do zoológico... humanismo fatal, obviamente. Essa sociedade que já nem a verdade agüenta nem que pela inocência e donde o impulso é cortar pela raiz. Se em Pola X a morte da menina no quarto era um momento de falta de ar e de incredulidade estarrecedor aqui ela é estendida até as mais fundas caves desse desespero que só o fim provoca. Caves do eterno repouso novamente em formas de florestas onde a enterram, em brutais silhuetas sacholadas nos mínimos feixes de luz permissíveis. Morte calada como um afogamento num hotel que só se poderia apelidar de Ahab.

Este Pola redimensionado, nas suas assustadoras expansões, distensões, durações... sobreposições, sobre impressões, impressões... opacidades e luminâncias... elipses aniquiladoras e copulativas entre corpos e tripas, dias e noites, morte e vida... cortes de sangue e cortes de sexo como o braço ferido e a agulha do vestido de casamento subseqüente, cortes explosivos e cortes feitos dádivas, acentua a perdição e podridão e o cinzentismo até os limites físicos - sendo por isso ainda mais absolutamente exaustiva a visão deste todo assim feito - deste mundo, de certos espíritos e sentimentos, da matéria, das coisas. E depois... a crença e o amor na personagem de Pierre levadas até o fim da vida, mortífero acreditar. Mesmo que ainda mais dividido, quebrado como um espelho de arestas escarpadas nas suas falhas e certezas e perguntas e respostas. Mas segue-se o íntimo e vai-se até o fim do mundo... como o plano da moto que sobe a ponte rumo aos etéreos desejantes... esse desconhecido.

Até o fim do mundo que foi esse emaranhado escuro de ramos, animais noturnos, águas e sustos e... muda-se. Pierre andou tudo isso e não mais foi o mesmo. Às vezes algo nos bate e assombra e mudamos irremediavelmente. Do escritor meio infantil e puro dos inícios que brincava com o seu cavalo de álbum de cromos, de aliança no dedo e sociável até à medula... sucede-se um langor, uma melancolia... esses olhos belos e meigos que parecem adoecer e agudizar nessa dor e que mesmo assim se manterão tão belos mesmo que lacrimejantes e raiados de sangue. O corpo que parece curvar-se com essa hercúlea demanda ousada, um peso qualquer que jamais se desdobra em culpa. Pierre, corcunda. A perna que se irá arrastar. O aspecto perto do leproso ou do tísico. A face amordaçada e comida talvez por bichos - face de Castorp imaginada, face de Rimbaud dos daguerreótipos e dos ópios de Apollinaire. A tensão global que provoca a sofreguidão. O filme a partir de certo ponto muda ainda mais e parte-se ainda mais. Os céus mudam e o brilho também. A vida também. Os atores e a acima deles Pierre, tanto como. E é nessa transmutação de um ser, nessa consciência que provoca o turbilhão de querer fazer tudo antes que já não seja possível... a consciência da morte, que faz de Pierre também um pouco irmão do Hans Castorp de Mann - “a adaptação consiste precisamente em não se adaptar”. Ou ainda mais ambíguo e caminho feito para a desgraça - ambos a certo ponto do percurso e do tempo se convencerem que na doença se vive com mais intensidade, com mais fulgor e de acordo com uma plenitude qualquer. Sabendo isso, ir em frente.

O que nos remete para os inauditos atores carregados dessa presença abstrata que desprendem de si e simultaneamente absolutamente concreta, por vezes temerários mas tão cheios de humanidade e coragem e principalmente amor. Humanidade, coragem, amor. O peso, a presença de Guillaume e Katerina, a ferocidade deles, a pressão e as latências prestes a explodirem, um movimento concêntrico que parece abalar o espaço circundante e cósmico que na sua progressão eleva também o filme a um puro e comovente documentário sobre dois corpos e uma entrega sem fronteiras. Dois corpos já falecidos agora viventes em grão da luz revelado. O que tudo isto pode...

Pola X ou Pola abre com montagem fora do mundo, encontro terminal do modo Eisenstein e do modo Gance, duas fúrias incompatíveis e no entanto... Logo depois, uma calma ilusória. Do verde da relva molhada até a um quarto em penumbra com um corpo meio despido que se vislumbra por uma janela entreaberta que se quer fechar, um vertiginoso travelling que não se parece a absolutamente nada - elegante, demente e já enfermo. Em questão destes: os que acompanham os percursos de moto iniciais pelo rasgar da paisagem, uma nitidez e uma limpeza Rivettiana que adensam ainda mais as dúvidas; o da floresta negra que na versão extensa acompanha o par maldito junto a um rio e ela lhe faz sentir o peito seu bater; os caminhares e as cavalgadas pelas referidas montanhas mágicas e enfeitiçadas. Bem mais para a frente, já na antecâmara do inferno ou no inferno ele mesmo: Marie sentada ou não sentada numa moto que mais que rodar parece deslizar e planar, em rota diabólica lá para os Faustos de Murnau ou de Goethe... uma fada corrompida e velha em tez enganadora de criança bailarina, conto de morte e conto de fadas; a panorâmica sobre Pierre num inaudito vento e tempestade de areia e pedra escória que me convoca Friedrich; as panorâmicas coladas, pegajosas e em confronto com toda a massa que defronte lhe aparece nas imediações daquele estranhíssimo bunker, quando Lucie a noiva prometida agora maluca regressa, por exemplo.

E depois, não sei articular linguagem, nem língua, muito menos gramática em tantos e tantos momentos bombas: como definir a entrada no bunker em que a câmera sobe sem aviso, o som estoura normalizações, e a banda de proscritos e de restos é revelada? Os vários movimentos wellesianos das subidas e descidas cortantes de escadas e as rasantes aéreas sobre os quartos - panorâmicas? travellings? Ó sacrilégio sobre a poesia, não vencerás!

Porque nas suas asperezas, rugosidades, sinuosidades várias e fechos de luz, Pola é um filme sem truques, os truques de cinema evidentemente, que hoje tanta areia nos atiram para os olhos, como as colorações tão em voga que uniformizam o todo fílmico e no fundo o normalizam e tantas vezes o tornam inofensivo, inerte, informe, imaterial... um nada. Emancipado de arabescos rebuscados e artísticos. Tantos filmes iguais hoje em dia... Pola despreza igualmente retóricas visuais feitas coisa expressionistas de livros de história de arte ou claros-escuros decalcados desses mesmos compêndios. Despreza as retóricas e lógicas de montagem das escolas publicitárias ou cinema feito moderno que contaminaram definitivamente a arte chamada cinema, a arte livre dos grandes Lumières ou grande Murnau. Pola, filme livre e que acha a sua estética e poética nos caminhos que calca e desbrava e descobre. Sede de descoberta redescoberta. Camaleão das epidermes do mundo, das cores e ambiências, cheiros... Onde se nota a rodagem e as dificuldades, o que pesa uma panorâmica gizada a fogo ou a sangue. Se tudo tanto vibra e por vezes fere mesmo o olhar é porque o que está dentro das bordas dos enquadramentos está animado por cólera e vida ou degenerações sem margens de estagnação. Orgânicos e orgásticos abalos.

Com a decadência do cinema como arte poética e pictórica em que luzes e sombras eram vivas e vivificantes avant la lettre, transformadoras e modeláveis - decadência a par da civilizacional e das rupturas irrecuperáveis - e citando João Bénard da Costa a propósito de um dos maiores nestas coisas, Victor Sjöström: “Trouxe, antes, muito antes de Murnau ou de Lang, a evidência que a arte do cinema é a arte da luz e que o cinema está muito mais próximo da pintura e da música do que do teatro ou do romance”. Ora sem o dito pelo não dito e sem advogar que no mais absolutamente poético e livre sempre algo se contou, que me interessa isso... Carax encontra para a sua vontade convulsa de narrar à beira da exaustão, a luz a crença na luz como algo divino que importa descobrir e desvelar sempre, apreender para cada acontecimento único e irrepetível, tanto mais que em Pola o sentido de alcançar luzes outras e desconhecidas está em conformidade com os devires e as almas que de outros mundos parecem irromper tantas vezes. Michael Cimino foi eliminado do mapa pelos comerciantes, Werner Schroeter já não cá está entre nós para banhar e extrair corpos e belezas raras dessa tão preciosa fonte, Raul Ruiz a mesma coisa para sonhos tortos de crianças e de velhos, e entre um que outro homem esculpido da pedra por Pedro Costa, entre um milagre de Oliveira pelos céus de Dreyer, uns mares de Rivette assim como o aflito rosto do mesmo Guillaume, as modelações sobre os corpos nus e os mundos descarnados e ao mesmo tempo esotéricos de Jean-Claude Brisseau, umas ousadias e pinceladas de Aleksandr Sokurov e pouco ou nada mais... Leos Carax é um dos últimos a levar luz até às ultimas conseqüências e com ela o romanesco, a proximidade operática estilhaçada, tudo o que de vida insuflado estiver e assim passível de exceder. Exceder, transpor as barreiras da ilustração, da normalidade aceita ou das falsas liberdades que nos fazem querer tantos objetos indistinguíveis. Que luz é aquela que sempre, das florestas aos quartos, envolve Isabelle no mais incrustado, circundante e prisioneiro halo? Luz dos mortos e dos fantasmas que vem ter com os vivos (ou com outros mortos) para viverem coisas além concebíveis? Que luz violenta e mística aquela interior ao bunker que, numa cena inesperada e no entanto tão lógica, aproxima a mesa em que a banda de Bartas e os seus seguidores comem, a ressonâncias sagradas e bíblicas? Luzes dos mistérios como em todos os artistas de nome assim merecido. Das simplicidades complexas. Paletas incandescentes, paletas que queimam os dedos. Objetos de luz própria imanente não de luz pronta a servir. Para além das afecções artísticas e das cópias chapadas da realidade.

Essa massa da luz que só alguns poucos tem o dom de criar, moldar e fazer escorrer. Atingir ou ter esse quimérico e possível direito de a alcançar e de com ela embarcar em plenitudes. Esse creme que de todos os algures secretos das matérias e dos espíritos brota no mundo na cena do cinema e é recolhido e impresso pela câmera para a tão sensível película. Massa luz, creme luz. Só luz e mais nada a possibilidade do cinema como porventura da vida. Ilustrações interditas - tintas no plano pigmentadas a perfume de rosas mas também às massas de esperma; esperma que desce pelas imagens, umedecendo-as e emprenhando-as, perfumes que as enlevam em eternos etéreos. Regressos a Murnau e a todos os quantos que por fecharem a luz e escancararem as portas ao demo para dessa réstia ou ausência fazerem parte, deixaram de cumprir os mínimos aceitáveis e assim foram afastados do cinema e da terra ela mesma.

III


Permito-me, e espero que mo permitam, abrir por aqui um estranho parênteses. Estranho pois embora não pretenda neste meu singelo artigo abarcar tudo ou todos os aspectos sobre o que está em questão - e reconhecendo obviamente a infinita superioridade do filme em relação ao escriba - e mesmo não me importando de cair no prolixo e na falta de unidade e de concisão - como tantas vezes tantos ilustres críticos escrevem sobre ilustres ou não ilustres objetos de arte ou de crítica - muito menos não querendo ser rude ou mal educado, e sim, aqui queria chegar, pretendo é explanar sempre com amor e verdade, o meu amor e a minha verdade. Em frente para não cair no sentimental e no meloso, o principal deste por mim designado ousado e estranho parênteses tem como propósito tecer algumas considerações sobre os tempos e os lugares em que Pola se passa e sobre os quais Leos Carax trabalha. É bem certo que depois das vilipendiadas moradas dos mortos, cadáveres a segundo pó, passamos para um mundo burguês, bem instalado e erudito que não inserido na capital por onde depois o filme vai passando, se reconhece perfeitamente francês, talvez mais dos grandes romances de Victor Hugo ou de Dumas do que do cinema. É depois do túnel atravessado pelo par e pelos comboios que me interessa deter. Vamos para terrenos áridos, ermos ou limbos fugidios, frios e descoloridos. Que raiam o deprimente e o hostil. Norte da Europa parece-nos, até mesmo círculos escandinavos, quase polares... não queria exagerar. Por isso não terras de ninguém mas uma paisagem minimamente reconhecível pela pele de quem já espreitou algures. Mas estes paradoxos e obscurantismos em que não se nomeia e por onde se pressente - poderia ser de Paris ao centro alemão e ao mesmo tempo isso não nos faz sentido apesar da paisagem - apenas ou tanto revestem o espaço e as envolvências de uma importância fulcral porque animados de alma própria mesmo que morta e seca, interferindo assim em quem o atravessa e vive e sendo em última instância paisagem da loucura deles.

A isto atrelado... o tempo. Tempo que apesar das ligeiras referências ou apontamentos sutis - as cartas da editora, Lucie - é sempre o tempo que dura a entrega absoluta de Pierre para a perdição absoluta e não tempo cronologicamente bem definido. Carax narra obviamente sobre o tempo. Para o tornar difuso, aéreo, intemporal e no entanto... o elemento capital do amor e da desgraça. Como antes da vida e depois da morte não o sabemos explicar assim como ao espaço, no entanto é nesse etéreo temerário e suave como quando nos embriagamos ou nos entregamos sem rumo que tudo se urge e define. Pierre andou nestas terras por aí e o resultado pode ser o que só ousa quem todas as barreiras do espaço e do tempo ousa quebrar.

Por isso a dúvida em que o filme nos coloca em relação a tais primordiais elementos de recito é a imersão daqueles devires nessa mesmo grande incerteza. Implacavelmente.

IV


O romantismo não se encontra nem na escolha dos temas nem na sua verdade objetiva, mas no modo de sentir. Para mim, o romantismo é a expressão mais recente e atual da beleza. E quem fala de romantismo fala de arte moderna, quer dizer, intimidade, espiritualidade, cor e tendência ao infinito, expressos por todos os meios de que as artes dispõem.

Baudelaire


Falava em Friedrich, e tanto romantismo alemão me vem à memória e principalmente às sensações nas veias para assim me fazer ver tudo aquilo em estado de compressão. Um todo feito pincelada. Mas um romantismo possuído, alterado ou anabolizado por excrescências várias e desejos, uma visceralidade perto ou escatológica mesmo, em que todas essas massas e cheiros e atmosferas e pulsões são coisas pegajosas à frieza da máquina e das luzes e a corrompem e dela se apropriam.

Um romantismo como aquele que leva Pierre a subir e a subir escadas que o levam aos cimos dos cimos dos castelos, aos segredos proibidos guardados pelo pó e pelas teias, pelas trancas nas portas e pela podridão geral, bichos que já comem a madeira e luzes que estouram de velho porque manietadas por quaisquer esoterismos vingativos ou coisa que valha... subidas loucas e cheias de medo e de fé e de excitação inexplicável como as do sétimo céu de Borzage. Chega-se lá, parte-se tudo nada menos do que à machadada, fecham-se os olhos, enchem-se os pulmões de ar... abrem-se os olhos... encara-se... e... nada. O negro do nada. Ao espetáculo da revelação esperada e das expectativas... o nada. Tudo mais sombrio. Depois disso só acatando e detendo-se, aceitando ou... fazer ainda pior... ir em frente... mergulhar nos abismos sonhados. O negro e a luz que cega.

Tanta beleza tanta coragem... tanta dor... tanta solaridade e tanta merda. Os raios do mundo, a merda do mundo, a merda do homem. Indivisível como Monteiro, um certo Pasolini, um certo Marquês de Sade... serena e lúcida convalescença que permite tudo melhor apreciar.

D. Inês da Veiga principia a ser romântica, ou desgraçada, que é quase sempre o mesmo.

Camilo Castelo Branco, algures na sua Anátema


Falava em romantismo alemão e poderia falar em outras coisas que justificassem a epígrafe Camiliana. Rasgar para outras dádivas, outras vidas e proveniências espectrais. Essa estética que sempre conduz e contém dentro de si a tal da desgraça. Retenho-me nos planos iniciais do castelo de Pierre e sua família - ou nos posteriores, à noite quando ele telefona ou na madrugada da revelação de Isabelle - arrepiantemente e fantasticamente velado em algo que só pode estar à beira da maldição. Esses cinzentos da maldição. Penso nos céus revoltos e acossados e vivos de energias várias e de outras galáxias de Albert Bierstadt, as suas névoas cerradíssimas e ventos imparáveis que sopram de urgência e tudo isso que põe em fogo as árvores e as águas e tanto receio mete nos homens e mulheres que nessas imensas, paisagens e vertigos da natureza só ao seu espanto se podem render. Como se trouxesse para plano primeiro e arrebatador as fúrias dos infinitos de Rembrandt. Penso nos apocalípticos céus vermelhos e amarelos acesos de tanto fogo devorante das pinturas bíblicas de John Martin e em algo que escreveu Jorge Calado: “o céu que governa as tempestades e catástrofes”, não só nos sonhos mas sobretudo na atmosfera que aperta. Do mesmo Jorge Calado: “a água foi para os impressionistas o mesmo que o céu fora para os românticos”, impressionismo e romantismo, é Pierre e sua amada a deslizarem para o mais inconcebível dos precipícios, testemunhas só o céu e suas precipitações...

Ainda nos idílicos cancerosos surge-nos a desmesurada pedra retorcida e o peixe gigante que o come para os magmas e os báratros, e à memória vêm-me Francis Danby, essas lavas que parecem punir condenados ou inocentes... essas rochas escarpadas que não dão saída... as aberturas aos céus para ascensões irrealizáveis e quedas aparatosas. Como no seu The Deluge em que mesmo nos azuis das furiosas correntes marítimas e nos subliminados fundos em transparências cristalinas são como parente pérfido da seqüência em fogo sonhada, ou dos sonhos análogos excedidos por demencial sexo lá mais para a frente. A poderosa presença dos protagonistas, notadamente na segunda parte e sempre em Isabelle e seus companheiros, meio sonâmbulos... meio possuídos e soturnos... expressão silente e taciturna... tantas vezes perto de uma metamorfose à anomalia, o que não exclui - e isso é um dos gênios maiores de Carax e um dos inauditos, mais veementes da obra - todas as fulgurâncias de volúpia e inexoráveis desejos, que sussurram os desmaios, as poses sem nome e certos olhares de Johann Heinrich Füssli... estes corpos na mesma tão, tão envoltos em manchas de dureza que tornam impenetráveis raiares luminosos. Será rebuscado irmos a William Blake? Só para quem não tiver coragem de num piscar de olhos qualquer ou de num infame momento reconhecer o que toda uma vida se tenta chutar para o mais fundo esquecimento trancado a sete chaves. Blake pode ser quem assombra e dinamita a chamada segunda parte (onde o paroxismo já passou o razoável) e quem a arde ou constrói escadas sensíveis e serpentiadas rumo ao oblívio em espectro. Quem nos escancara a grande cara de morte sensível.

Uma febre ou uma peste instalada nessa ciência dos profissionais que me impede de reconhecer na história do cinema mais do que em outras artes citadas sem me ficar só pela vida, o que talvez valesse. Todas as artes como tantas vidas e tempos num objeto limite... tem que se regressar ao que se escuta e conseqüentemente à inolvidável sinfonia da catástrofe que o filme explana e desprende... romanesco... luz... música... que começa com Scott Walker sobreposto à massificada devastação inicial contraposto ao plano seguinte do inadjetivável travelling ascendente pela irrupção serena mas aflita de Henry Purcell, como depois Johannes Brahms. Para se voltar mais vezes aos demônios da mais pesada musica industrial dos malditos de Bartas. Uma fervilhante dialética que leva o filme para o tal movimento sinfônico mas que só pode ser sinfonia torturada... estralhaçada... penosa... até as pontas do macabro que no fundo é a tal démarche pelas feras humanas.

A terrível estética, a terrível justeza ética. Nunca por nunca culpar alguém por fatalidades no que ao cerne diz respeito, fazer de Pierre um culpado dos rastros de destruição e de ódios, fazer da aparição Isabelle a causa de destruição de um mundo e uma vida encarriladas. Nada disso. Cada um deles é animado por forças invisíveis muito muito fortes e demolidoras, e outras bem visíveis; cada um faz e age da única maneira que tem de ser, que só assim pode ser - escutam o interior e assim avançam. Não há culpados, sim assunções.

Das duas revisões que recentemente tive em sala, todas aquelas imagens, visões ou ataques sensoriais me impediram, não por pudor mas sim por não conseguir simplesmente articular a palavra cinema, de idêntico modo ao qual André Bazin não o conseguiu quando se deparou com o neo-realismo e Rossellini em particular - embora só no cinema e pelo cinema tal seja possível, pasmoso olhar de novo... tão sabido e des-sabido... sedento e esclarecido. Não conseguir articular tal palavra como discurso prévio, normalizado ou obliterador de expectativas e conclusões. Como inserção nos produtos e emoções dominantes. Pola tudo me excedeu e retirou discurso por muitos muitos anos e só na existência, nas caminhadas sem fim, perdições e vislumbre de morte encontrei paralelos. Realismo poético devedor de algumas correntes surrealistas e expressionistas dos anos vinte franceses e de Jean Vigo? Nada por estes emaranhados, deambulações ou fixações provisórias e perpétuas advêm dos símbolos insólitos e esquizofrênicos dos surrealistas, das literalidades e devaneios ostensivos dos expressionistas, como porventura pouco deve à terna, úmida e vaporífera poiésis de Vigo. Carax desvela ou esculpe em lugares e sobre outras luzes, superfícies insondadas ou fugidias ou mais fugazes... a temperaturas assaz mais queimantes e atrozes.

Jean Cocteau e a poesia mágica de fantasmagorias plenas? A referida ausência desse tipo de sofisticação e audácia, bem como o assumido paralelo espacial e todas as aberturas não possuem o mesmo tipo de aflição e ambigüidade por tudo se passar no mesmo chão que pisamos. Muito também já li e ouvi, e em alguns casos sou capaz de concordar, sobre um tal de realismo grotesco, gótico mesmo em alguns casos, uma espécie de ultra realismo abadalhocado e carregado de uma profusão de símbolos feéricos, fantásticos ou de feitiços vários... tantas vezes acompanhado por uma arquitetura dos espaços, das formas e mesmo da câmera barroca ou extremamente barroca, o que tantas vezes produziu todos excessivos, irrespiráveis, violentamente apontados ao sensível. Tenebrosos bestiários barrocos ou só bestiários. Podem ser as vertigens entre o poder e as ganâncias ligados à carne e aos desejos - tudo em Stroheim, um certo Renoir vindo do seu pai, de si e das pulsões de Zola e do diabo que por lá se intrometeu, nesse esplendoroso e maquiavélico Nana, as velas, os crucifixos e os grafismos de Sternberg em relação mais do que erótica com Dietrich, suas pernas, seus peitos... as baixezas e as altezas e toda a liberdade una de Monteiro... Carax aqui até certo ponto até sim, os cheiros são análogos e as texturas igualmente, mas impossível não notar recusa a premeditação ou preparo ou ostentação de qualquer espécie, ou seja, continua-se a percorrer e a castrar sobre esse caos que o corpo e os olhos encontram e que é caos originário e para onde a coragem do homem não teve pavores. Sem metáforas.

Realismo como nos dizem os livros também não pois todas as vias paralelas são percurso e possibilidade. E só, só por excitação ou falta de visão ou sensibilidade se engavetará em “pós-nouvelle vague” o que aqui se passa, nada a ver com esse tipo de obstinação e jouissance dos turcos franceses circa 1959. Quanto a isso, ficamos por aqui, na minha opinião tanto como nos restantes filmes em que a virulência e diarréia de palavras e inocência/doença visual só poderão ter como parceiro Jean Eustache.

De onde vem certamente Pola? Vem das putas das entranhas, das tripas, vísceras e todos os fundos revoltos...

São movimentos alucinantes/alucinados e fixidez atordoante, atropelamentos e arestas des-limadas, sim, mas de uma fisicalidade e de uma carnalidade que será preciso ir aos primeiros selvagens, como os Lumière, como Stroheim, depois Pasolini ou mais à frente um Peckinpah desta vida ou um Fassbinder, um João César Monteiro e praticamente mais nada, para se encontrar esse tipo de sangue.

V


Persigo Pierre da mesma forma que persigo a minha própria vida: compreendo muito pouco os dois mas sou obrigado a explorá-los.

Leos Carax


É preciso já se ter entrevisto, falado e ficado preso ao suicídio, já se ter obcecado por túmulos abertos e por túmulos fechados, para se perceber como se respira neste filme, como e quanto pesa o ar, como se movimentam os corpos e como os olhares se turvam e se convencem, como as perceções são ao mesmo tempo doentes e puras. Perceber como as ambiências são espíritos que são letais pois existem em corpo bruto; existem como pintadas por um duro Corot; abatem carnações e olhares de quem as vê. As formas que se experimentam do lado da matéria, da técnica, do desenho, tem tanto de espirito como o que vive ou não vive nos planos de Carax. Tudo se forma do local de onde se vê, de quanto tempo se vê, do que se não mostra; carnes e almas num corpo que fere nas estrelas do absoluto que o cinema augura.

O cinema é não ter medo de entrar por florestas negras. A vida é não ter medo de entrar por florestas negras. Não ligar, não se de deixar prender por leis, por idiotas convenções, por esse qualquer medo que vem do que não se vê claramente visto. Entrar pelas passagens dos segredos que só o coração no fundo ambiciona passar. Entregar-se à vida e ao caos, saber que tudo absolutamente tudo, desastres, misérias e felicidades incontidas, fazem parte dessa coisa impagável e melhor do que qualquer filme - a vida. Em sentido total. Em A Mãe e a Puta a personagem de Jean-Pierre Léaud atira que o homem possui dois direitos irrevogáveis: o de se contradizer e o de desistir. Sendo assim, Pierre é também Rimbaud e só absolutamente Rimbaud porque mandou o mundo das aparências à merda para se entregar às feras, mesmo que vislumbrando uma fatal conclusão. Carax é irmão de sangue dos dois, violentamente tanto tempo se ausentou dos mijas-filmes e do comércio nojento do seu tempo. Obviamente que estou a citar René Char. Poderia então ser assim: “Fizeste bem em partir, Leos Carax!... (...) Tiveste razão em abandonar o bulevar dos preguiçosos, os botequins, os mija-liras, pelo inferno das feras, pelo comércio dos espertos e o bom-dia dos simples. Este impulso absurdo do corpo e da alma, esta bala de canhão que explode seu alvo, sim, é isso mesmo a vida de um homem! Não se pode, indefinidamente, saindo da infância, estrangular seu próximo. Se os vulcões mudam pouco de lugar, sua lava percorre o grande vazio do mundo levando virtudes que cantam em suas feridas. Fizeste bem em partir, Leos Carax! Ainda há quem creia, sem provas, que contigo a felicidade é possível.

Contradição porque fartei-me de citar citar citar, referências e influências e outras coisas, e tanto o cinema de Carax não me faz lembrar nada sendo possível tanto recordar o que já foi. Como esse paradoxo estonteante dos seus dois filmes iniciais: palavras e palavras e palavras, palavras em campo, em off ou na voz-off... verve em incontrolável torrente e precipitação e... Boy Meets Girl e Sangue Ruim são os últimos e mais lacônicos e ameaçadores filmes mudos. Suicídios de palavras como Eustache. Tanta palavra e a violência da solidão. Os tímpanos que doem agudamente e quase estouram. A boca que seca e que tantas tantas vezes não abre mesmo que se esforce. O sangue da cara que seca e os ossos que mostram as saliências e o osso duro.

Violenta solidão... Pierre e Isabelle começam a acariciarem-se, a finalmente tocarem-se a descobrirem-se. Para lá da alma e do sentimento uno que os atraiu fulminantemente desvendam a carne e algo da ordem do sexo mas que por ventura o supera. Algo de convulsões e instintos, fúrias animalescas. Pierre e Isabelle fodem como se o mundo acabasse no instante seguinte ao ato e por isso há que aproveitar cada fração e cada centímetro de corpo e desejo. Ânsia de validação, de irem mais e mais fundo para confirmarem que existem e que para lá de tudo se podem satisfazer. Ainda são carne, ainda são osso e suam o sangue de uma paixão última antes do pó. A cena é a imagem bela e urgente da razia e do gênio desta mise en scène. Rabos, seios, sexos, coxas, ventres, línguas, penetrações desfloradas em catadupa. Tudo, aparentemente tudo mostrar, escancarar para escurecer ainda mais. Só daquele jeito poderia ser e não me lembro de mais nada assim tão ejaculativo e sussurrado. Finda a seqüência e as respostas ou perguntas são ainda mais negras. Como negro foi este percurso sorumbático e ameaçador de Pierre que tudo levou à frente. Viver, fazer arte é despir-se todo e violar os caminhos que nos fazem tremer.

Há dois caminhos que conduzem à vida: um é o caminho vulgar, direto, correto, o outro é o perigoso, passa pela morte, mas é o caminho genial!

Thomas Mann, A Montanha Mágica


 

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