AS PAIXÕES DE LEOS CARAX
por Felipe Medeiros


Fonte onde se espelha a minha monarquia solitária, como poderia eu alguma vez esquecer-te se nem sequer preciso de te lembrar: tu és o presente que se acumula. (...) Eu entrarei no teu coração para lhe limitar a memória. Não prenderei a tua boca para a impedir de se entreabrir sobre o azul do ar e a sede de partir. Quero ser para ti a liberdade e o vento da vida que ultrapassa o limiar de sempre antes que a noite seja irrecuperável.”

René Char, Le poème pulvérisé

Em todos os filmes que realizou até a década de 90, Leos Carax parte da representação do amor como uma via de libertação do eu pulverizado, recluso, de modo que através de suas tensões amorosas, ímpetos, a vida adquire mais urgência, febre, verdade. Um campo onde o amor e o erotismo que lhe segue carregam a possibilidade de imprimir um ao outro uma disposição impressionista, onde o visível e o invisível, a manifestação e a retração dos gestos estabelecem uma fecunda qualidade de representação. Como no Godard da nouvelle vague, acompanha-se os personagens e todas as impressões que suas jornadas suscitam à maneira de um documentário biográfico - na verdade, um recorte biográfico que se fundamenta no epicentro das rupturas sociais deles. Não é a necessidade de maturidade que indaga esses personagens, ou simplesmente faz sentir sua presença por meio de atos aterradores nos seus deslocamentos enquanto seres. Seus interesses são o que há de mais digno na adolescência: negar a maturidade esperada, forjada, falsa em seus conformismos produtivos. Eles são a certa altura obrigados a tomar uma posição que será decisiva nas suas vidas, a se implicar no diálogo agora retomado com o mundo que os cerca, instaurado pelo apego que nasce de um amour fou. Interessa a Carax, portanto, não esses eventos em si, mas a apreensão sentimental e perceptiva do mundo diante das possibilidades de uma vida dividida a dois - no que ela implica da possibilidade de recomeço e filiação.

Ao desvelamento ao mesmo tempo moroso e avassalador dos sentimentos dos personagens, Carax fixa a rarefação solitária das somas destas manifestações e de suas potencialidades impressionistas: a câmera atua como um sismógrafo que registra com acuidade os impactos que corpos - e texturas, e sons - exercem sobre outros corpos; fusão e condensação de impressões. O amor se revela na medida de um arrebatamento que gera obsessões múltiplas, dispostas nos mínimos detalhes que se somam a este novo contato com o mundo. O homem acaba tão dependente da mulher quanto a mulher dependente do homem: sem a mulher, sem o outro, não há testemunhas da sua presença, não há fogo compartilhado, a clareira heideggeriana do ser. Sem a palavra que lhe responde e que fomenta a irrupção de questões outrora latentes, que permite a tração do apego mútuo e gerador de mundos, a existência para tais personagens nada é.

O que se manifesta nessas relações de amor e erotismo é uma opacidade irredutível ao sujeito. Os personagens de Carax abundam em paradoxos, assinalando os limites da linguagem em tentar representar esse movimento a um só tempo extático e interior que consiste no desespero, no deslocamento social e na vontade de serem salvos por um amor tão improvável de dar certo quanto arrebatador. A pulsão de morte surge, neste processo, como um evento crucial que os lança à violência e violação da vida até converter-se em valor transcendente, em defesa existencial: não mais como uma violência imanente, a castração e a exclusão, mas um presente ao divino da vida - uma fé no outro que a tudo transfigura e ilumina, dá sentido (e, sobretudo, ao sofrimento). Carax inverte o valor da pulsão de morte, transforma o negativo em afirmação, imanência em transcendência, horror da erosão da matéria em exaltação do corpo transfigurado, arrebatado pelo ardor e fulguração de outros corpos, acumpliciamentos outros.

As composições são, geralmente, reconfiguradas naquele instante em que o espectador jamais ousaria imaginar qualquer tipo de atividade sendo realizada pela câmera. As relações entre os planos levam aos nossos olhos um sentimento de constante desequilíbrio, de um movimento que não se sabe para onde avança: ângulos inusitados reúnem pouco mais que algumas informações dispostas com pungência, seguidos por planos onde tudo se apresenta muito lenta ou rapidamente, numa impecável representação que envolve (1) uma detalhada e pausada revelação tal qual as impressões e descobertas que surgem numa jornada à Rossellini; (2) o movimento aquiescente que transcorre na tranformação da calma contemplativa em estado febril; (3) o suporte que, localizado com exatidão em pontos precisos do quadro (sobretudo no plano de fundo), dá equilíbrio a todas as forças que forjam ritmo, atividade visual, tensão e drama. Pensemos aqui na luta entre o traído Alex e o seu melhor amigo no cais em Boy Meets Girl, onde o negrume da noite e a solidão da ponte por onde caminham compõem peças de fundamental contenção e ímpeto, esparsando o momento certo de Alex lhe afrontar, até que ele chega a sentir-se confortável na posição de agredir um amigo pelo qual não perdeu todo o afeto, decidindo por poupar-lhe a vida, no último instante, como que assombrado pelo silêncio do cais e a sua dispersão física.

Nesse ambiente de dissensões, da violação do meio-termo, os atores de Carax assumem abordagens próprias, até mesmo destoantes nas suas modulações, perfeitamente particulares e misteriosas, como as redes de intrigas desses personagens. Trata-se de uma entrega, uma exposição calculada ao risco; uma conquista permanente entre os atores e Carax, abarcando tom, forma e dramaturgia, sempre em busca do gesto espontâneo e sintomático das ações repercutidas por eles. Ao contrário dos autopsistas modernos, das representações “definitivas” de uma época, Carax acredita na imagem, nas coisas que se escondem na sua superfície: um desbravador e um desvelador de atmosferas, ritos, deixas e intensidades, digno da linhagem de Robert Desnos, Louis Aragon, Paul Celan e René Char - onde a insegurança, o brio e as pulsões mais recônditas são significadas com a mesma ressonância e potência de evocação.

O apelo do amor viola e aconchega, consiste justamente nesta destinação a nada de concreto ou objetivo, neste lançar-se em direção ao que ainda pode realizar-se, neste projetar-se por sobre a situação ontológica com vistas a um destino ignorado. Junto à tendência dos casais de Carax de não pensarem na vida, de gozar o instante com uma inocência trágica, esse circuito adquire uma aura verdadeiramente selvagem. Mas em Merde já não há um par para Lavant. A única pessoa que entende o seu misterioso humor é o advogado. Eles são os únicos personagens do filme que, ironicamente, detêm um olhar. Todos os outros cumprem funções de poder e de saber, são apêndices da representação: empenham-se ora na verificação das provas suficientes para levar o terrorista à forca, ora no cumprimento dos planos cotidianos de sempre, agora novamente possíveis com a prisão de Merde. Portanto, eles já possuem um olhar estabelecido, olhar de meta, de análise, ao contrário de um olhar aberto para o novo, ou mesmo para dentro de si. Merde e seu advogado carregam em suas idiossincrasias as potencialidades utópicas de um mundo alternativo como Anna, Michèle, Mireille, Alex, Pierre e Isabelle, mas aqui já não vemos a poderosa esperança minguada de Carax na busca do antídoto contra a insensibilidade: temos uma farsa lúgubre, onde o herói, credor do pacto - e do pathos - trágico, cederá a forças sombrias, sociais ou cósmicas, enquanto contempla a dissolução paulatina de seu quinhão de autonomia. Mais do que um terrorista, Merde é um vírus propenso à disseminação em qualquer lugar, qualquer estrutura social, em qualquer país. A insensibilidade triunfa.

A terra fatalmente é um fantasma,
Ela que toda a morte em si embala.

Sei que canto à beira de um silêncio,
Sei que bailo em redor da suspensão,
E possuo em redor da impossessão
.

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

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