SANGUE RUIM por Francis Vogner dos Reis
(Mauvais sang). 1986. Les Films Plain Chant/Soprofilms/FR3 Films Production/Unité Trois/Centre National de la Cinématographie/Sofima/Georges Reinhart Productions/Limbo Films/Sogedis (116 minutos). Produção: Alain Dahan. Produção executiva: Philippe Diaz, Denis Chateau. Produtores associados: Georges Reinhart, Julien Drahy, J. M. Dupre. Roteiro: Leos Carax. Fotografia: Jean-Yves Escoffier (Fujicolor). Música: Benjamin Britten, Sergei Prokofiev, Charles Chaplin, Serge Reggiani, David Bowie. Cenografia: Michel Vandestien, Thomas Peckre, Jacques Dubus. Montagem: Nelly Quettier. Elenco: Michel Piccoli (Marc), Juliette Binoche (Anna), Denis Lavant (Alex), Hans Meyer (Hans), Julie Delpy (Lise), Carroll Brooks (a americana), Hugo Pratt (Boris), Mireille Perrier (a jovem mãe), Serge Reggiani (Charlie), Jérôme Zucca (Thomas), Paul Handford, Charles Schmitt, François Négret, Philippe Fretun, Thomas Peckre, Ralph Brown, Eric Wasberg.
Presente e passado
Eric Rohmer amava Murnau e escreveu L’organisation de l’espace dans le Faust de Murnau, sua tese de doutorado. Mas se é possível ver algum traço desse amor em sua obra, esse se dá em um (re)conhecimento sensualista do espaço, porém de um realismo fabular diferente do realismo feérico de Murnau. O amor por Murnau em Sangue Ruim, de Leos Carax, é de outra ordem. O filme mais famoso de Carax é um elo perdido entre Aurora, de Murnau, e o cinema moderno francês que o precedeu (o dos anos 60 e 70), mais até do que Jean Cocteau, a quem o diretor é parcialmente devedor - um pouco menos do que se diz por aí.
De Aurora Carax toma a beleza feérica das construções artificiais, do traço conceito-mental de um pintor, do fascínio pela possibilidade de erigir esse mundo fascinante que é verdadeiro porque reconhece o efeito modelador da luz: Fiat lux (faça-se a luz) como gesto originário. Diferente de Murnau, as cores. Cores também originárias (ou melhor, primárias: vermelho, azul e amerelo). Dos seus predecessores modernos, mas também de antecessores silenciosos, sobretudo Chaplin, ele conserva o corpo como a verdade possível e concentrada da imagem cinematográfica, um corpo que em si mesmo é caos, corpo que não é só “objeto” do cinema, mas sujeito. Influências essas não como reverência vazia e decadente, mas como atrito, distinção e afirmação de sua integridade.
Se o que faz surgir a imagem é a luz, o que gera o movimento é a respiração, por isso Denis Lavant é um Chaplin moderno, é a potência máxima de um corpo em desajuste musical com o mundo, apesar de não ser o corpo burlesco de Chaplin. Ele é corpo nietzschiano em queda coreográfica e gradual no abismo, sem resignação e sem lágrimas. É um corpo que realiza movimentos em falso.
Leos Carax assume os riscos que seus predecessores modernos assumiam e não faz da História do cinema um museu de cera néon, como alguns de seus contemporâneos (Jean-Jacques Beineix, Luc Besson). Se há aqui em Sangue Ruim Friedrich Wilhelm Murnau, Jean-Luc Godard, Nicholas Ray e Jean Cocteau, não é como decalque, é como apropriação e exposição da dissonância entre obras pregressas (na sua inevitável influência) e a obra em questão. Não é questão de colagem ou de transformar os traços de influência em um conjunto de normas (e assim neutralizá-las), mas um modo de se livrar delas. Por isso Sangue Ruim é soberbo e é a consciência crítica daquilo que no cinema (como na pintura pós-renascentista) foi chamado de maneirismo.
Presente e futuro: pulsão de vida é pulsão de morte
Alguém já disse que Lavant é o grande ator de cinema de sua geração? Claire Denis reconhece isso em Beau travail dando a ele o melhor personagem que criou (o que não é pouca coisa) e o grande Harmony Korine faz dele o próprio Charlie Chaplin em Mister Lonely. A imagem mais famosa de Sangue Ruim é sua grande síntese e a sina de seu herói: um travelling da repentina e desesperada corrida de Alex (Lavant) ao som de Modern Love, de David Bowie. Essa é a sua sina: ele corre e dança ao mesmo tempo, expressa força, cansaço, em um desequilibrio acentuado pelas formas verticais das paredes e muros que parecem querer impedir sua corrida horizontal. Questão de gravidade: se Fred Astaire flutuava e Gene Kelly era o centro de gravidade do plano, Lavant agencia a desordem do plano. Corpo trágico que luta contra a gravidade e perde, porém a beleza está nesse esforço inglório que é o de fazer a coreografia de um corpo que cansa e resiste em um trajeto provisório. Ele tenta, sabendo que pode não chegar ao fim.





Alex:
“Eu vivi minha vida como um rascunho sem rumo, como uma onda que se quebra em alto mar sem nunca alcançar a praia ou as pedras. Agora é muito tarde para aprender a viver, eu pensava que ainda teria muitos anos pela frente para conseguir consertar as coisas.”
Essa consciência do esforço em vão - que é o que paralisa o personagem Marc (Michel Piccoli), e de modo inverso, afasta o medo do personagem de Lavant - acompanha Alex do começo ao fim. Como a música de Bowie (pérola pop feita para não perdurar) fala de uma efemeridade inevitável do “amor moderno”. Tenta-se aceitar (sem se conseguir) a efemeridade das coisas. But I try.
Anna (Juliette Binoche) é uma efígie (não uma esfinge, como a Anna Karina de Godard) e Marc o personagem moderno que sofre por não ser indiferente à falta de sentido. É o envelhecimento natural de Paul, de O Desprezo, porque já não tem mais medo de perder a mulher (aqui, Anna), pois sabe que já perdeu a si mesmo porque conserva o medo do risco e da morte, temor ausente em Alex que para fazer vingar o assalto (o roubo da cura da doença que mata “amantes modernos”) ameaça matar a si mesmo.

Mas a beleza afásica de Anna é uma tentação para Alex (pois pede cautela a quem tem o risco como compromisso), assim como certa beleza melancólica do cinema moderno seduziu o pós-moderno, que o domesticou como elegânica pop e esnobe em filmes como os de Beineix e Besson, e mais recentemente Christophe Honoré, filho temporão e metido a besta da turma dos post-moderns parisienses. Carax se coloca aqui como a antítese da postura vulgar desses seus contemporâneos.
Juliette Binoche e Picolli são o alter ego moderno do filme, em afasia e inércia, são a consciência problematizada do maneirismo cinematográfico: são as imagens em crise, esvaziadas, submetidas à inércia de uma trama de assalto (uma trama de cinema). Uma trama de assalto não permite o temor e o tremor do ego, mas pede a ação. Ação, não exatamente em sua ligeireza, mas em sua proposição existencial de se lançar à vida, à experiência, pois aquele que tem medo de perder a vida não vive. Tanto Alex quanto o anjo da motocicleta Lise (Julie Delpy) preferem a velocidade e o risco. São amantes modernos. A consciência da inevitabilidade da morte é libertadora.
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