O FOGO E O GELO
por Alexandre Astruc


Balzac, no admirável artigo que dedica a O Vermelho e o Negro, homenagem única feita por um escritor a outro, compara o estilo da idéia e o estilo da imagem - Chateaubriand a Voltaire e Walter Scott a Stendhal. E acrescenta: existe um terceiro estilo, no qual a imagem se refere à idéia, que seria o meu. Ousaremos dizer que basta olhar pelo buraco da fechadura quando a Madame de Morsauf agoniza sobre um leito de lírios, cujo perfume lhe embriaga ao mesmo tempo em que lhe recorda da doença bestial que a acomete, para compreender de vez o que ele quis dizer, e que ele estava a falar simplesmente da linguagem do cinema.

Gance, Murnau, Rossellini cometerão essas audácias em que se reconhece a nobreza do espírito bem como a do coração. O expressionismo alemão se nutrirá todo dele. Abrindo o livro que Lotte Eisner acaba de lhe dedicar, deparo-me com imagens que retêm minha mão sobre a página. Um homem encostado contra uma parede imensamente vazia no extremo canto do quadro observa pelo reflexo que lhe chega de um vidro reluzente sua mulher abraçada pelos braços de um rival passageiro.

Ter-se-á reconhecido uma imagem de Sombras (Schatten - Eine nächtliche Halluzination, 1923). Visões similares abundam. Do que elas procedem? De uma confiança desmesurada nas forças da abstração para tocar o coração. Em outras palavras, desta certeza que a retórica formal, para além das flores gélidas de sua linguagem, oculta o fogo devorador no qual o espectador fascinado irá se queimar.

O expressionismo alemão, para além de uma querela de escola, tentou comover a parte menos sensível daquilo que é o domínio da ação artística. Crendo não nas idéias mas nos temas, ele é exatamente o correspondente no cinema desse lirismo de idéias em que se encontram ao mesmo tempo Shakespeare e Beethoven, Hölderlin e Melville, o Caravaggio e o Balzac de Illusions perdues ou de Les Secrets de la princesse de Cadignan. Surpreende-nos que a maior parte desses exemplos sejam utilizados por alemães. Amo o fato que, muito mais que a vagas referências à psicanálise cujo livro de Kracauer está repleto, o expressionismo alemão no livro de Lotte Eisner remeta simplesmente ao gênio alemão que teve os seus filósofos, músicos e poetas ao mesmo tempo líricos e intelectuais, isto é, realizando essa obsessão fundamental da erupção do abstrato no sensível e de Deus na natureza.

Uma obsessão metafísica, o senso da arquitetura, o da música, a expressão premeditada, voluntária e orgulhosamente construída dos temas os menos aparentemente feitos para o cinema, os meios plásticos mais elevados a serviço das obsessões mais abstratas, um senso prodigioso da sombra e da luz, símbolos da luta entre as potências do bem e as do mal, serão aqui as características de uma arte em que o emprego dos cenários pintados de Caligari tem, apesar do que se pensa, pouquíssimo destaque. Do que se trata para Murnau? De fotografar o além. Além das aparências sensíveis... mas consideremos simplesmente que os indígenas de Tabu, de olhos tão pálidos, afundados no horror de uma maldição fundamental, são os mesmos que brincavam sem intenções premeditadas diante da câmera inocente de Flaherty.

Considero Murnau o maior poeta que a tela já conheceu. Eisenstein talvez seja mais elevado, Stroheim mais brilhante e Renoir mais generoso, mas esse horror glacial e jamais vil ou complacente, que faz penetrar um no outro sob a luz trêmula de Karl Freund os personagens de Fausto e de Tartufo, permanece ao mesmo tempo a revelação fascinante do que a arte das telas terá tido em comum com as outras artes, e aquilo pelo que ela acabará sendo em definitivo prodigiosamente diferente. Lang logo construirá os cenários de papelão dos seus Nibelungos (será por que não era poeta o suficiente?), reencontrando sua poesia quando a nostalgia de sua pátria perdida lhe permitirá transfigurar a realidade americana - sim, é no exílio que Lang se concretiza - e Pabst plantará seus cenários que farão dele mais tarde um realizador internacional que tocou de leve o gênio em A Caixa de Pandora e somente em A Caixa de Pandora, e Wiene, hábil comerciante e tantos outros dos quais me permitirei excetuar Robinson por causa de Sombras; é Murnau, e Murnau sozinho, em quem o expressionismo alemão terá encontrado o seu florescimento. Que não é teórico, é claro, nem exemplar, nem histórico: não é uma questão nem de dramas sociais, nem de culpabilidade, não é possível escrever artigos em jornais nem sessões frutuosas nos Cineclubes, pois não há pitoresco e não é brutal, mas como sou grato a Lotte Eisner de tê-lo colocado no seu devido lugar, no seu lugar único, e de tê-lo tornado simplesmente no maior diretor alemão.

Em que sua arte se baseia? Na transfiguração do real. Uma orquestração lírica e apaixonada de um visual exacerbado por um senso plástico impressionante, em que a plástica no entanto se recusa incessantemente a ser recebida como tal, fará de sua obra, de Nosferatu a Tartufo e de Aurora a Tabu, o local de passagem da mais formidável vontade de expressão que foi até aqui vista na tela. Nisto ela será expressionista: representação pela plástica dramatizada dos temas fundamentais da arte ocidental: a inquietude e o destino. Representação não somente dramática, como ela será mais tarde no cinema americano, mas de uma vez só plástica, arquitetônica, sinfônica, musical, onde luzes, cenários, figurinos, interpretação estilizada dos atores tornar-se-ão elementos de um jogo superior que o diretor disporá ao seu gosto para orquestrar um tema fundamental que surge e desaparece alternadamente como na Quinta Sinfonia as trombetas misteriosas serão as, oh, tão inquietantes mensageiras do destino...

O que deve ser sentido aqui o é, plenamente, no limite das forças da resistência humana: sombras dançantes, o escurecimento da luz sobre os telhados de cidades esquecidas, torrentes de invectivas, nuvens, reinos ameaçados nas dobras de grandes vestes amarelas e, por isso, esse travessão de sombra implacável, disposto diagonalmente no quadro, para recordar que esse quadrado de luz cintilante será daqui em diante o lugar geométrico de uma beleza torturada.

A imagem aqui é um suporte. No que ela se tornará? No ponto de encontro de um certo número de linhas de forças em que a disposição remete diretamente a Velázquez e Caravaggio, mas conduzida aqui a esse ponto de tensão extrema em que só pela destruição poderá ser concebida e suportada. Toda imagem em Murnau exige ser aniquilada por outra. Todo plano é anunciador do seu próprio fim. Observe um enquadramento de Nosferatu ou de Fausto. Nada de mais simples em aparência, de mais tranqüilizante. Um homem e uma mulher sentados de costas num banco, uma jovem menina num barco debruçada sobre os remos, uma silhueta na sombra atrás das grades de uma janela, uma roda que gira em primeiro plano... Um Lang, um Pabst não nos teriam poupado de suas credenciais, cenários de dez metros de altura, fotografados em contraluz, sua massa sinistra em silhueta contra o céu, close-up de horror para criar a atmosfera e o sentimento. Mas em Murnau é no próprio coração da indiferença que a tragédia vai se instalar. Observe de qual plano ele fará uso: o mais anódino de todos, o plano americano. Alguns de seus enquadramentos poderiam até se passar por enquadramentos de comédia, imperceptivelmente transplantados na obra de um Hawks ou de um Capra. Mas veja como dessa tranqüilidade nascerá a corrupção. É dissimuladamente que Murnau opera. Um horror indizível se esconde nas sombras por detrás desses personagens tranqüilos, instalado em um canto do quadro como um caçador observando a sua presa. Tudo aqui é marcado com o selo do pressentimento, toda tranqüilidade é ameaçada de antemão, sua destruição inscrita nas linhas desses enquadramentos tão claros feitos para a felicidade e o apaziguamento. E eis aqui, creio, a chave de toda a obra de Murnau: essa fatalidade escondida atrás dos elementos mais anódinos do quadro; essa presença difusa de um irremediável que vai roer e corromper cada imagem como ela irromperá por detrás de cada uma das frases de um Kafka.

Como ela se manifestara? Concretizando-se no plano. Desta forma, todo enquadramento em Murnau é a história de um assassinato. A câmera terá o mais simples e o mais terrível dos papéis: ser o terreno presciente e anunciador de uma operação de assassinato. Todos os elementos da mise en scène vão lhe auxiliar nesta tarefa. O ângulo da tomada, a disposição dos personagens no quadro, a repartição das luzes servem para construir as linhas de uma cena dramática de uma tensão insuportável cuja culminação é uma aniquilação. A história do plano é o cumprimento dessa promessa de morte. Seu desenvolvimento temporal não será em definitivo nada além da realização no tempo de uma fatalidade plástica original em que tudo que deverá se desenlaçar nesses poucos segundos é dado de uma vez por todas.

É por isso que em Murnau, como em todos os alemães, a montagem é quase inexistente. Toda imagem é um equilíbrio instável; melhor a destruição de um equilíbrio instável conduzido pelo seu próprio elã. Enquanto essa destruição não se completa, a imagem persevera sobre a tela. Enquanto o movimento não foi até o final de si mesmo, nenhuma outra imagem pode ser tolerada. Daí essa lentidão hierática que nada mais é que o cumprimento de uma promessa. Promessa de morte como em Nosferatu, de castigo em Fausto e Tartufo. De uma ponta à outra da obra corre essa mesma linha reta superior na qual a obra inteira de Murnau encontrará seu verdadeiro assunto, e se, precisamente, não há outra questão que a da fatalidade e da paixão, da hipocrisia e da obsessão pelo poder supremo, sempre levada ao extremo de si mesma, como se surpreender? E que o cineasta do irremediável jamais tenha sido tentado ou fascinado por outras figuras que aquelas que terão convocado a si mesmas, com essa premeditação secreta que é a marca das almas fortes, essas ruínas e esses desastres, inscritos no próprio coração de suas paixões, sem as quais ela teria sido a mais derrisória das comédias?

Lil Dagover, que ainda vemos nas fotos desbotadas das histórias do cinema, a cabeça ligeiramente inclinada sobre o ombro, a crinolina entre dois dedos, deslizando como uma sombra ao longo da parede uniformemente cinza que sozinha realça a silhueta monstruosa de um castiçal barroco, enquanto passa, ausente e concentrado, um Jannings monstruoso absorto em seu breviário, e porque este Tartufo prussiano onde Sanssouci mimetiza atrozmente Versailles não seria também verdadeiro na sua monstruosidade como esse vaudeville parisiense em que um marido se esconde sob uma mesa para testar a virtude de sua esposa; Lil Dagover, portanto, encontrada uma noite em um local de dança, dizia-me como era necessário para Murnau executar sob os seus olhos e segundo os seus planos não somente a menor folha dos cenários mas também cada acessório, peça de prata, talheres, os quais sua mise en scène reivindicava como se não pudesse decididamente confiar em nada e em ninguém para ajudá-lo a realizar seus próprios desenhos. E sem dúvida os antiquários e as lojas de móveis de Berlim teriam sido capazes de ajudá-lo. Uma criação total não suporta a menor falha. Mallarmé sonhava em escrever com palavras jamais usadas. Por que negar a um diretor semelhante anseio de pureza?

Sabemos como Murnau morreu. Durante a produção de Tabu, ele moveu uma pedra sagrada para instalar a sua câmera. Alguns meses mais tarde, de retorno aos Estados Unidos, ele deveria encontrar a morte. Eu imagino bastante que o diretor de Nosferatu devia saber o que fazia ao se lançar desta forma a magias e feitiçarias. Eu ouso crer que foi com todo o conhecimento de causa que o realizador mais mágico de toda a história do cinema se permitiu assim a provocar os Deuses, fossem eles os mais humildes e os mais primitivos de todos.

(Cahiers du Cinéma nº 18, dezembro 1952, pp. 10-14. Traduzido por Bruno Andrade)

 

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