UMA ARTE MODERNA
por Jean-André Fieschi
A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL (L’éducation sentimentale). 1962. Société Française de Cinématographie (92 minutos). Produção: Jean Tourane. Roteiro: Roger Nimier e Roland Laudenbach, baseado no romance de Gustave Flaubert. Fotografia: Jean Badal (Dyaliscope, P/B). Música: Richard Cornu. Cenografia: Jacques Saulnier. Elenco: Jean-Claude Brialy (Frédéric Moreau), Marie-José Nat (Anne Arnoux), Dawn Addams (Catherine Dambreuse), Michel Auclair (Didier Arnoux), Carla Marlier (Barbara), Pierre Dudan (Charles Dambreuse).
Um dos principais motivos da beleza - e também da dificuldade - do último filme de Alexandre Astruc vem da exigência e do rigor de sua proposta inicial: uma fidelidade, da qual conheço outros poucos exemplos, àquilo que poderíamos chamar a vocação fenomenológica do cinema moderno. Pois a grandeza de Astruc é de ser antes de tudo um verdadeiro artista de vanguarda, moderno, porém na contracorrente. Disso nascerão, com certeza, as controvérsias, pelas quais seria muito tolo se chatear.
As suas concepções da mise en scène propõem um mordaz manifesto anti-Resnais, ou no mínimo anti-Marienbad: não introduzir-se abusivamente na alma de um personagem; não colocar jamais a câmera no lugar de um deles; em resumo, trata-se de mostrar as suas condutas, sem que o conhecimento que o cineasta tem daquelas criaturas o autorize a se atribuir o perigoso privilégio de unir, por astutas mudanças de perspectiva, as facilidades da interiorização e a necessidade do olhar exterior, ou, em outras palavras, sem misturar de forma bastante impura os méritos muito distintos da literatura e do cinema.
O cinema não tem por que se enrubescer por extrair sua beleza do ponto de vista do voyeur mais do que do ponto de vista de Sirius. Àqueles que escolhem este último, podem-se endereçar as mesmas reprimendas de Sartre aos romancistas tradicionais: eles se tomam por Deus, e Deus não é um artista. Última polêmica: Astruc renegou Soberba. Ele fez certo.
É certo também que se eu falo de “voyeurismo” não se trata de jogar com as palavras. Se nós entendemos essa noção como sinônimo de um olhar mais baixo, é evidente que ela não compete a Astruc. O seu olhar, o de um metteur en scène, ele próprio definiu melhor do que eu saberia fazer: “observar os seres agindo ao mesmo tempo em que são levados à ação”. Essa vontade primeira, extraída de uma grande inteligência de sua arte, de uma reflexão profunda sobre seus fins e seus meios, gera uma lucidez crítica diante dos personagens, uns diriam “distanciamento”, que lhe permite revelar seus movimentos e suas pulsões, suas relações e seus elãs com a serenidade e a nobreza disto que se deve chamar propriamente de um tratamento clássico: se o artista sabe que ele só almeja falar de si, ao menos que o faça com o maior pudor, nas entrelinhas. E ele emprega sempre, mais do que a primeira, a terceira pessoa do singular.
Esse pudor, creio eu, pode passar para alguns como frieza, ou até secura, e esse “gosto pela beleza” que assinalava Rohmer a propósito de La proie pour l’ombre, como esteticismo. Nós sabemos muito bem que esse é o custo habitual de quem escolheu a dificuldade e não a covardia.
(Não creio que seja útil ater-me às relações do filme com o admirável romance de Flaubert: elas são magras, os personagens pertencem a Astruc, e eu ouso ter esperança de que ninguém o repreenderá. Sabe-se que antes de assumir a adaptação de “A Educação Sentimental” Astruc não releu o romance, e que ele tomou como ponto de partida o punhado de páginas que Roger Nimier e Roland Laudenbach tiraram dele, tratando-as como um roteiro original. Do livro, resta, sobretudo, o traço principal do caráter do herói, Frédéric, cuja impotência em possuir aquela que ele ama e o doloroso itinerário sentimental resultante disso continha, para Flaubert, um importante teor autobiográfico.)
Frédéric então (Jean-Claude Brialy) é um apaixonado. Se a paixão é um tema maior em Astruc, é no sentido que, fenômeno eminentemente cinematográfico, ela pode se reduzir aos movimentos que provoca. (Se fosse preciso a todo custo encontrar uma correspondência literária, tratar-se-ia de Balzac, mais do que de Maupassant ou de Flaubert, aquele de quem aproximaríamos Astruc: notadamente o autor de Esplendores e Misérias das Cortesãs.)
Um ser apaixonado se trai sem cessar por seus movimentos que se tornam assim repletos de significados: o dever da mise en scène consiste então em lhes desnudar, em lhes revelar no que eles têm de únicos, de privilegiados. A câmera de Astruc dramatiza o menor impulso, encerra cada gesto sem imobilizá-lo, numa beleza nada menos que gratuita: beleza da verdade, verdade da beleza. Esse lirismo pudico, particular ao nosso autor (e próximo também do de Mizoguchi ou Preminger), esses encantamentos sutis que Une vie e La proie pour l’ombre nos permitem esperar, fazem de todo o filme uma melodia assombrosa, passando, conforme o ritmo de cada cena e de cada plano, do murmúrio ao canto de verdade, tremulando por uma beleza nascida do acordo mais secreto entre o fogo de um olhar, a repentina convulsão de um gesto e a câmera que, com uma inexorável mistura de força e doçura, os apreende.
Os movimentos de câmera em Astruc, e mais particularmente em A Educação Sentimental (não falo daqueles, wellesianos demais para o meu gosto, de Le rideau cramoisi), me fazem pensar em algumas palavras de Mallarmé: ao mesmo tempo produzidos com uma elaboração sem falhas e ornados de uma fragilidade que os aproxima das intuições as mais raras e fulgurantes. Tem-se, portanto, o sentimento de que a apreensão e o objeto apreendido não poderiam coincidir que em um momento ínfimo, e nosso encantamento nasce da eclosão desse tipo de milagre. Se os gestos têm, em A Educação Sentimental, tamanha importância, é possível conceber o trabalho espantoso alcançado com os atores. Basta pensar no hieratismo sem frieza de certas atitudes que faz de Astruc o único diretor de atores a ter reencontrado, permanecendo especificamente um cineasta, as leis de um equilíbrio do tipo escultural...
Equilíbrio que se experimenta não se prova. Mas é preciso entender a importância de alguns momentos-chave para poder atingir a substância mesma do filme e descobrir seu mecanismo secreto.
Assim, todo o itinerário de Frédéric se resume em quatro ou cinco gestos. (Que não se venha falar de simbolismo. As formas, simplesmente, se organizam a partir das ideias que as guiam.)
O primeiro, e o mais significativo, é quando ele se joga sobre Anne (Maria-José Nat) para abraçá-la durante a caça. (Pode-se considerar que o filme começa ali, sendo o início, apesar de belo, apenas uma exposição, uma apresentação dos personagens.)
Surpreendido pela violência possessiva de seu impulso, ele será rejeitado por ela com a mesma violência. (A intuição genial de Astruc é de ter feito gestos de possessão, ao mesmo tempo, serem gestos de desapossessão.) E ao longo de todo o filme, ele tentará retomá-la através desses mesmos gestos; seu fracasso, seu erro, o de não ser forte o suficiente para impor sua vontade de amar, ao invés de apenas solicitá-la, interrompendo seus movimentos nas suas origens, sem prolongá-los, e revelando assim sua fraqueza.
Por exemplo, na seqüência que fará rir os pedantes, onde ele acaricia o pescoço de Anne, e parece se queimar ao contato com uma carne que, no entanto, lhe responde.
Ou logo que ele desata seu punho cerrado para deixar escapar, sobre a praia, a areia num fio de ampulheta, em um gesto soberbamente teatral em que, consciente de sua impotência, ele assiste à fuga daquilo que não tem força para reter...
E, sobretudo, no movimento de sua mão, perseguindo a de Anne sobre a rampa, no momento da separação final.
Os demais personagens se definem evidentemente em relação a Frédéric, limitados à sua jornada amorosa:
Barbara (Carla Marlier), o belo manequim de quem Astruc fez um ser tocante, tão anti-vadimiana que possível; sacrificada desde o começo, ela aceita, com uma doçura lúcida, ser somente um instante de repouso, um momento de amor, e por isso protege esse instante como se ele devesse durar para sempre. Catherine (Dwan Addams), personagem muito complexa, ao mesmo tempo criticada e amada por Astruc. Criticada pelo seu lado articulador, ela é uma aranha capaz de tecer teias fatais como a marquesa de Merteuil; mas também amada, por sua honestidade final, um simples batimento de seu coração revelando-lhe a vaidade de sua conduta, e transformando sua derrota em lição, pois essa educação sentimental é muito mais do que o percurso de Frédéric; ela vem para descortinar a cada personagem sua verdade, retirando a máscara deles.
Verdade que por fim só é cruel para o casal Anne-Didier (Michel Auclair), únicos personagens realmente detestáveis aos olhos de Astruc, porque não sabem nem dar nem se aceitar.
Faltaria elogiar o emprego - olimpiano - do Cinemascope, e enumerar tantas seqüências que brilham do mais astruciano dos esplendores, como a seqüência da boate noturna, ainda mais bem sucedida que a de Les mauvaises rencontres, aqui arrebatadora porque os personagens, reunidos numa penumbra de álcool e música, ardem secretamente de desejo e desespero, de paixão e de arrependimentos... E esses sentimentos, expressos com tamanha nobreza, representam o mais belo de todos os temas.
(Cahiers du Cinéma nº 133, julho 1962, pp. 46-50. Traduzido por Matheus Cartaxo)
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