SOBRE TRÊS FILMES TARDIOS DE CLAUDE CHABROL
por Mehdi Benallal


A Comédia do Poder

O grosso da crítica de cinema passou ao largo dos assuntos, todos muito triviais, dos últimos filmes de Chabrol. E o que se pôde ler sobre A Comédia do Poder, positivamente (a fluidez da decupagem e da montagem, excelência nos diálogos e da interpretação), ou negativamente (estilo televisivo, moleza do enredo), era verdade ao mesmo que passava ao largo do que importa.

É um segredo muito bem guardado: Chabrol terá sido um dos raros cineastas contemporâneos para quem a mise en scène é um absoluto, mas para quem o absoluto da mise en scène é a sua supressão diante da realidade. Essa louca ambição de fazer triunfar a arte através do apagamento do artista é uma das mais preciosas heranças da nouvelle vague, que a tomou dos grandes clássicos. Chabrol passou a maior parte de seu tempo, ao menos desde Betty - Uma Mulher Sem Passado, e talvez desde sempre, a se afastar da história que contava para se aproximar da realidade filmada. E quanto mais Chabrol fazia filmes, mais sua mise en scène se sofisticava, e mais a realidade que ele descrevia se revelava rica, profunda e nova.

Assim, A Comédia do Poder é o seu filme mais experimental, e ao mesmo tempo o mais realista. Ele me fez pensar em Out 1 e Paris nos Pertence de Rivette. Nesses dois filmes não há nada que não seja muito banal, e no entanto tudo se destaca pelo cruzamento de duas pesquisas: aquela do cineasta e aquela dos personagens, que nos conduz a esta outra dimensão onde cada momento vale por si mesmo, e que nos perde ao se encontrarem. São mundos em que o mais ínfimo acidente (A Comédia do Poder é constituída somente de micro-eventos) perturba profundamente, isto é, de forma secreta.

Naturalmente, Chabrol preferiu insistir com suas convicções marxistas e declarar à imprensa: “Eu continuo a crer na luta de classes e a desejar que os mais explorados possam apertar o nariz daqueles que os exploram para ver se dele sai leite ou sangue.” À parte quaisquer vigílias, não há sombra de um explorado em A Comédia do Poder. O filme é centrado em Isabelle Huppert, a quem se vê evoluir de forma muito lenta e doce, de acordo com seus encontros, seus humores, do avanço de sua investigação. Não é a história de sua caça aos patrões que deve ser seguida, mas a maneira como muda quase que imperceptivelmente uma pessoa que acreditava poder fazer triunfar seus princípios e cujos princípios, com o passar do tempo, transformam-se. Em que? O que houve? Isto é o que você não leu em lugar nenhum.

Bellamy

A respeito de A Comédia do Poder (cuja construção é bastante similar à de Bellamy), eu escrevi que o absoluto da mise en scène, segundo Chabrol, é a sua supressão diante da realidade.

Essa palavra, “realidade”, já não tem um significado muito claro para mim. Salvo este: que se uma só palavra (esta palavra: “realidade”) serve para designar tudo o que pode ser apreendido e batizado pelo homem, então isso quer dizer que há, entre todas as coisas da terra, um elo - às vezes bem visível, freqüentemente invisível -, uma ligação: o homem que as batiza, e que chama tudo isso de “realidade”.

“Bem visível”, esse elo, porque o homem colonizou tudo em seu planeta e ainda continua a colonizar; “invisível”, porque não se sabe até que ponto o homem colonizou-se. O epígrafo de Bellamy o diz à sua maneira, que é a de Auden: “Há sempre uma outra história, há mais do que o olho pode perceber.”

Foi justamente um homem que fez Bellamy, e este homem, Chabrol, tem dado desde sua estréia o melhor de si mesmo. É por isso que era bastante inútil ler os comentários do nada ingênuo Burdeau sobre Bellamy nos Cahiers du Cinéma, que se resumiam a fingir descobrir que sob seus ares de macaco velho funcionário do telefilme de cinema, Chabrol é, de fato, um cineasta que sabe perfeitamente o que é uma moral e uma estética e como as duas andam juntas... Isso, que qualquer um sabe desde Nas Garras do Vício, não nos ensina nada sobre o extraordinário poder de ataque de seus últimos filmes, na minha opinião seus mais pessoais e mais completos, seus mais brilhantes: A Flor do Mal, A Dama de Honra, A Comédia do Poder, Uma Garota Dividida em Dois e Bellamy.

Cinco obras-primas. Cinco mundos. Se o homem pode batizar tudo aquilo que existe sobre a terra, se tudo aquilo que existe sobre a terra tem em comum a linguagem do homem, então um filme pode oferecer uma idéia da “realidade”, mas sob a condição de se constituir mundo, isto é, de fazer a mise en scène, a qual restabelece o elo entre todas as coisas. Digamos, ao contrário, que todo filme é uma tentativa de organização do mundo que se dá seus próprios meios - meios estes que, na vida, a “realidade” anárquica nos priva, ao transtornar ininterruptamente nossas veleidades de apreender o mundo como um todo, ao nos desprover interminavelmente.

Um filme teria, portanto, a ver com a “realidade”, com a condição que, do início ao fim do caminho que ele nos faz tomar, tudo aquilo que ele nos mostra remeta a outra coisa, e trama com essa outra coisa, por desdobramento ou oposição, redes de sentidos calculadas e incalculáveis.

Em uma “análise” da decupagem de A Flor do Mal, Chabrol desvendava o sentido de seu trabalho: “A acumulação de detalhes não é feita para ser completamente apreendida pelo espectador, mas para que ele apreenda apenas um pouco e que sinta uma sensação bizarra...” E, sobre dois planos similares há poucos minutos um do outro: “Isso não parece ter muita importância, mas serve para criar no espectador uma sensação de familiaridade, como se tivesse aprendido a falar, a desvendar alguma coisa...

O que há para ser desvendado em Bellamy? Tudo, claro, daí o prazer intelectual extraordinário que se tem diante do filme. Esse prazer é redobrado ao vermos um inquérito se desenvolver, e se transforma em uma emoção violenta quando se compreende que esta investigação escondia uma outra. Quando as investigações de Bellamy terminam, quando não há mais nada além de “salas vazias” a serem exploradas, vemos então ele derrocando lentamente, incapaz de continuar a fingir ser um policial eficaz, bem-humorado e feliz, incapaz de continuar a esconder sob a fachada a figura de seu irmão. Sua tristeza e seu vazio emergem, e é um garotinho que tem medo de escuro e que pede para que se acenda a luz ao lado da cama que se refugia ao lado de uma torradeira para não entender a terrível novidade que se abateu sobre ele como uma verdade.

Mulheres Diabólicas

– Eu não entendo os últimos filmes de Chabrol.

– Normal, Chabrol nunca foi tão genialmente sintético, além do que não sabemos mais ver um filme como um todo... Não sabemos mais nem o que isto quer dizer. Ainda sabíamos, talvez, por volta de maio de 68, mas desde que o fetichismo devastou tudo no seu caminho, não há mais do que pedaços de cinema. E no mais, Chabrol se ocupou justamente do fetichismo, dupla violação à época!

– Tome-me por um produto de minha época!

– Todos somos, mais ou menos...

– Você me tranqüiliza. Admita, ao menos, que eles são horríveis, esses filmes, os Bellamy, A Dama de Honra, A Flor do Mal, Uma Garota Dividida em Dois.

– Não acho, mas isso não nos levará muito longe. Há um Chabrol que todo mundo ama, que até mesmo o salvou aos olhos da crítica, é Mulheres Diabólicas, pelo menos deste você gosta?

– Eu odeio!

– Perdão?

– Eu nunca entendi o encantamento geral por esta merda!

– Você está delirando!

– Supõe-se que ele fala da luta de classes? Da burguesia e do proletariado?

– Sim, sim. Ainda que Chabrol tenha declarado que este foi “o último filme marxista da história do cinema.”

– Mas que nada! Penso que é uma repugnância mostrar os pobres daquela forma.

– De que forma?

– Estritamente falando, como bárbaros.

– Estritamente falando?

– Primeiramente como invejosos, como amargurados e, finalmente, como assassinos pura e simplesmente. Veja bem: no filme, os burgueses são todos extremamente delicados, cheios de bons modos, eles perdoam até mesmo os golpes baixos da carteira e, como recompensa, são massacrados. Como se Chabrol quisesse dizer a esta burguesia que transborda de boas intenções: não se misturem com essa gentalha e, sobretudo, não os deixem entrar em suas casas!

– Mas esses proletários não são quaisquer proletários...

– São sim, porque trata-se exatamente do proletariado e da burguesia tomados num sentido geral dos termos. O analfabetismo da empregada versus a alta cultura da família burguesa, o apartamento modesto da servente versus o castelo da família etc. Nós entendemos que Chabrol quis falar da oposição de classes entre os proletários e os burgueses em geral; aliás, você mesmo reconheceu isso!

– Sim, mas Chabrol passa um bom tempo a descrever essas duas proletárias.

– E daí? Elas terminam por matar da mesma forma. E mais, Chabrol tem a frieza de em seguida condená-las, matando uma em um acidente de carro e entregando a outra aos policiais! Já entendemos muito bem que ele não gosta delas, a menos que ele esteja senil a ponto de dar razão às assassinas, vitimizando-as ao extremo, ao passo que tudo indica que elas são completamente vis e que a razão estava do lado dos privilegiados!

– Você acha que os burgueses desse filme são razoáveis?

– Sim.

– E no entanto, eles não viram o golpe chegando.

– Eles não poderiam imaginar algo parecido, visto que eles sempre foram bem comportados com a empregada!

– Então eles estão quites?

– De quê?

– De fazer com que ela dependesse deles?

– Não se mata pessoas pelo fato delas nos sustentarem!

– Porém isso já aconteceu, quando os escravos assassinavam os seus donos!

– Sim, mas esses não são os episódios mais gloriosos da história.

– Glorioso ou vergonhoso, isso existiu, sim ou não?

– Sim, mas narrando isso, o que é que ele, Chabrol, procura dizer?

– O que você gostaria que ele dissesse?

– Que ele não fizesse parecer, de qualquer modo, os pobres como bárbaros!

– Perdoe-me por me repetir, mas não se trata de quaisquer pobres!

– Mas o que você quer dizer com isso afinal?

– Você gostaria que Chabrol “salvasse” essas duas garotas? Que ele as tornasse dóceis, respeitosas, isto é, de acordo com as prescrições burguesas? Embora elas sejam, desde o início, criminosas? Porque eu lhe relembro que elas já haviam matado antes do começo da história, certamente você se lembra disso...

– Precisamente! Por que ele as retrata como desajustadas?

– E por que não fazê-lo? É por causa disso que ele não trata de todos os proletários. Imagino que você saiba que nem todos os proletários são assassinos. Mas neste caso, são justamente duas assassinas.

– Concordo, e...?

– E pela força do ódio e da frustração, elas somam um novo crime aos seus crimes passados.

– Elas matam sem motivo.

– Pode ser que elas não tenham uma razão definida - elas não são revolucionárias - mas percebe-se que elas não suportavam mais sentirem-se inferiores sob todos os aspectos, incluindo o moral, aos burgueses. Então, depois de deixar cair a barreira moral que proibia a morte, elas encontram em si mesmas a força para reverter a situação e, de dominadas que são, passam a ser dominantes ao matar seus patrões.

– Sem motivo?

– Não é porque as razões aparentes são insuficientes que não há uma lógica subjacente no ato. Tudo se passa aqui exatamente como nos filmes de Buñuel.

– Mas por que elas chegam a matar essas pessoas que não lhes fizeram nada?

– Essas pessoas não lhes fizeram nada, é verdade, mas são. Eles são os que têm tudo. Elas, elas só têm mágoas. Tudo o que lhes resta é a força destrutiva que autoriza a sua falta de escrúpulos.

– Chabrol lhes dá razão, então?

– Não, ele apenas indica que há algo na desigualdade de classes que alimenta a possibilidade do crime, que o crime está de alguma forma inscrito na desigualdade de classes. E ele encena uma situação em que as condições de um crime são reunidas. Ao reprovar Chabrol por filmar as duas garotas como “gentalha”, você parece reivindicar que tranqüilizemos a burguesia sob a conta dos dominados. Chabrol se abstém de tranqüilizar ou de incomodar quem quer que seja, é por isso que seu filme não é aquilo que você diz que é.

– E então por que a crítica gostou tanto dele?

– De um lado, porque ela adora tudo. De outro, porque ela gosta de ver a burguesia entrar pelo cano, ao menos nos filmes.

– Mas Chabrol é um burguês, não me venha dizer o contrário!

– Não direi o contrário, responderei simplesmente com a frase de Friedrich Coupat: “A plebe pode ser encontrada em todas as classes.”

– “Simplesmente”! Mas como você faz o papel de esnobe...

– Fazemos o que podemos.

(Traduzido por Tiago Saldanha)

 

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