DRAMATURGIA DO INEFÁVEL
por Marlon Krüger


Sort of like a dream... no, better.

Air France

Si éste ha sabido ser fiel a su ponto de vista, si ha resistido a la eterna seducción de cambiar su retina por otra imaginaria, lo que ve será un aspecto real del mundo

José Ortega y Gasset, Verdad y Perspectiva

Há uma gravitação estranha nos filmes de Alexandre Astruc. O primeiro movimento de câmera de Le puits et le pendule diz respeito a isso: um leve recuo até guarda e prisioneiro entrarem em cena, quando a câmera começa a reenquadrar, e, sem parar de se mover em nenhum momento, pousa suavemente sobre o caminho pelo qual o guarda forçará seu prisioneiro. Há Maurice Ronet, também. Mas, além disso, é possível sentir uma força em cena.

Voltaremos ao tema da gravitação mais tarde, pois antes passaremos pelo tema da dramaturgia. Amante da literatura, Astruc é alguém que organiza sua mise en scène a partir da dramaturgia, a qual nem sempre se relaciona tanto com a palavra escrita, como, e na grande parte das vezes, ao funcionamento e articulação dos elementos cênicos (não por acaso, um dos cineastas favoritos de Astruc é Kenji Mizoguchi). Sua culminância estética acaba então sendo um profundo jogo de tensões, como ele anteviu ao argumentar que um filme é sempre um teorema, por desenrolar-se no tempo. A dramaturgia como evocação, ou seja, aquela que captura, num conjunto do que é (e não é) mostrado, um significado involuntário ou oculto, específico para cada espectador e que seja capaz de gerar íntimas ressonâncias.

Astruc se camufla. Por vezes é muito presente, fazendo inflexões, tão invasivo quanto um Hitchcock. Por outras é ausente e nos deixa mergulhar na organização dramática do enredo, sobretudo porque seus filmes se organizam por cenas. Seus principais elementos são os movimentos de câmera (a panorâmica é sempre significante); a geometria das locações (Le puits et le pendule é o exemplo perfeito aqui, tanto na sala dos muros móveis quanto na sala dos intradorsos volumosos); o comentário dolorido e solitário como leitmotif que expressa a singularidade da queixa interior humana (as reações de Maria Schell aos acontecimentos que se seguem em Une vie); a música como linha sonora que possibilita abstrair além dos limites do enquadramento as leis de um universo que se define enquanto lhe é imposto um olhar (e quanto mais esse resiste, mais delineadas são as camadas dramáticas de Astruc).

Por que Une vie é um filme esquecido do cinema francês e Alexandre Astruc um metteur en scène desprezado ao longo de seu período mais prolífico? Talvez porque seja uma adaptação literária de Guy de Maupassant e por isso tenha ficado na pilha dos filmes franceses contra a qual François Truffaut havia se posicionado poucos anos antes. Mas a trajetória de Astruc, na realidade, foi bastante diferente da dos jovens turcos. Ao caminhar em direção contrária ao cinema deles sem possuir a carta branca de Renoir ou Bresson, um descompasso entre a qualidade de sua obra e sua recepção era inevitável. Da literatura, uma idéia que o cinema compartilha: o desejo narrativo baseado em certas convenções da trama que, no limite, acaba moldando os temas de Astruc: sacrifício e destino. Os primeiros filmes de Godard, Truffaut e até mesmo Rivette e Rohmer apontavam outro caminho, por outra literatura, pela supressão da dramaturgia, pela fragmentação (isso para não falar de Resnais). Les mauvaises rencontres ainda é um filme que possui certas ligações com a nouvelle vague (e que Astruc detesta), mas Une vie? É simplesmente uma ruptura. É o começo da fase madura de sua obra, que assimilará a câmera como um olhar e incorporará a tela larga para trabalhar o espaço em relação aos personagens e elementos cênicos. Astruc foi um cineasta profundamente preocupado e fascinado pela mise en scène. Não foi ele um teórico? Sim, sem dúvidas, mas nem por isso Baudelaire deixou de ser um poeta.

Onde podemos enxergar o olhar de Astruc, esse modo de ver que não é outro? Logo depois que Rosalie deixa a casa com o bebê de Julien em Une vie, Jeanne está sozinha em seu quarto. Ela sofre com o abandono de Julien. Nós vemos, então, esse momento de dúvida da personagem - ou, como se cristalizará mais tarde no filme, o valor do equívoco - que compartilha conosco a decisão de tentar reconquistar o marido. Há modo mais fabuloso de se expressar um pensamento do que esse? Quando Julien abre a porta de seu quarto, uma panorâmica nos revela que na sua cama está deitada sua esposa. Seu marido, que não possui o menor desejo pela sua “perfeição” como esposa, vê ali um gesto diferente. Vale dizer que a mulher nos filmes de Astruc é uma figura misteriosa (há algo sternbergniano nelas), sempre entre o desejo de serem conquistadas e o desejo da liberdade.

É notável o quanto o cinema de Astruc ganha com a tela larga. Seus planos se tornam mais vastos, cobrem maiores distâncias. Quando o cavalo da senhora de Fourcheville sai em disparada, vemos Julien a perseguir pelas montanhas, deixando seu marido impotente para trás. Seis anos depois da traição com a criada, Julien sai à caça novamente. Toda a seqüência é magistral: a fuga dos dois adúlteros, o reconhecimento mútuo deles e seu jogo de sedução com uma pequena brincadeira de caça. Aqui a ausência/presença de Astruc é como a de Preminger: todos os movimentos coincidem com o do filme e vice-versa; a relação se torna independente, a inserção narrativa nos põe num estado de sonho acordado no qual a mise en scène, aí sim, é possível em sua capacidade máxima. Enquanto a carruagem leva Jeanne e seu filho embora dali, no último de plano de Une vie, um dos largos, ouvimos sua queixa: “a vida nunca foi tão bela e horrível como isto”. Há uma tensão entre a sinceridade do amor de Jeanne e o desejo de caçar de Julien que é operada pela gravitação daquele universo.

Por trás da aparente serenidade, há o trabalho de Astruc em toda sua vida: uma busca por um cálculo do pensamento que pudesse expressar a verdade e a oposição entre liberdade e claustro em seus personagens. No mundo possível de Astruc, os personagens são autônomos e o livre arbítrio é sempre um tema: há uma crença de que somente entre os homens é que chega a ser vivido o humano. A dramaturgia do inefável é, portanto, aquela que, além de encadear as ações e fatos que remetem às tramas, visará incessantemente ao contato direto (que assegure um olhar atento) entre público e filme - que poderíamos chamar de teorema desenrolado no tempo -, a fim de intensificar a experiência em processo. Assim, por vezes as relações entre seres e objetos são articuladas por qualidades expressivas ou estados de força: o momento em que Rosalie deixa escapar das mãos a lenha, encurralada por Julien em Une vie; a árdua caminhada do ferido Galois até ser ameaçado por um nobre em sua carruagem; o olhar que Anne oferece aos céus em La proie pour l’ombre antes de partir finalmente livre, mas sozinha. Este é o olhar de Alexandre Astruc.

 

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