ALEXANDRE ASTRUC OU A MECÂNICA DA ARMADILHA
por Maxime Renaudin


Entre a mesa em que dá à luz os seus sonhos e a porta que só se abrirá na última hora, Evariste Galois anda de um lado para outro. Ele percorre o território ingrato delimitado pelos quatro muros estreitos que, invariavelmente, definem seu único universo; ele se depara firmemente com o silêncio que já é o da tumba; ele se debate incansavelmente com os muros invisíveis do desprezo, da incompreensão, ou da indiferença - as de seus pares, de seus inimigos, de seus amigos também; encurralado nos quadros inelutáveis e solenes de um duelo perdido de antemão, ele já não é mais senhor do seu destino. Quando, no silêncio febril de uma natureza inocente, nós o descobrimos no início da manhã com os braços estendidos ao infinito do horizonte, a câmera revela ao seu lado o último mensageiro que o repõe ao seu lugar.

Como freqüentemente com Astruc, é a mecânica da armadilha que está a trabalhar. “Procuro colocar os personagens numa situação impossível onde eles se exponham e venham a saber exatamente o que são”, diz ele[1]. Anna dilacerada entre a submissão e a solidão; Roderick percorrendo os funestos corredores da casa de Usher, alucinado pelos murmúrios do além-túmulo; Jeanne nos braços de Julien - que são aqueles da mentira, e Julien nos de Jeanne - que são os da reprimenda; Albert Savarus no centro do complô cujo arquiteto lhe será sempre invisível; ou, ainda, o prisioneiro de Toledo, entre o seu poço e o seu pêndulo.

Esse programa é executado sem o menor recurso à manipulação, nem dramática - as linhas da narrativa se imprimem sobre a tela com a franqueza de uma notícia (e não há naturalmente nenhum julgamento sobre a qualidade dos fatos relatados; a neutralidade do tom é o de uma enquete, onde o encadeamento lógico dos fatos é o do raciocínio), uma narrativa em que os impactos são singularmente escamoteados em elipses desconcertantes; nem manipulação estética - Astruc é acima de tudo um mostrador, e ele nunca esconde nada daquilo que é, como alguém que escolhe o alcance de seus olhares. A dinâmica fílmica é dupla, entre exploração - a de um espaço explorado até os seus menores limites - e concentração - a de uma convergência a esses instantes de verdade onde o próprio espaço não mais existe. Um movimento permanente satura o campo de pontos de densidade, que são as arestas salientes do universo mental que acaba por se impor ao olhar, na medida em que os personagens se apagam diante de suas obsessões, sonhos e pesadelos enfim realizados, essas “linhas magnéticas de tensões e de desejos, desenhadas em pontilhado pelos gestos e pelos olhares”[2].

O espaço é atravessado pela continuidade de um olhar que privilegia os planos-seqüência a fim de nos dar a ver as fronteiras de um território que só existe no instante. Não há aqui nem antes nem depois: e não ocorreria a ninguém a idéia de tentar imaginar esse momento improvável vivido pelos personagens antes que a câmera os capture, ou depois que ela os abandona. Saídos do nada, eles são como que animados por um sopro que é o exercício de uma vontade pura. Daí, correlativamente, uma arte inigualável da elipse que nos oferece, por blocos, instantes de verdade irredutíveis cujas articulações jamais chocam ou quebram uma corrente que possui a força da evidência; por um trabalho de constrição permanente que nega as brechas por vezes escancaradas (Albert Savarus, Une vie), e que recompõe um tempo cuja única razão é a das emoções. Aqui, o fora de campo não existe. Nem mesmo o contracampo. O olhar de Astruc é indivisível e inalienável, o qual dita sozinho sua lei aos elementos, sem que os atores ou os espectadores possam tomar parte.

Há aí um tanto de gozo de Astruc em reivindicar a sua liberdade suprema - a necessidade feita lei - contra a resistência dos corpos dos atores, a inércia tenaz deles que sempre os traria para frente. Sua câmera os apanha no desvio de um plano, precipitando-os, animando-os de um movimento imperativo - por vezes febril, por vezes decisivo -, abandonando-os num instante - o da erupção do desejo - para apanhá-los de novo, e surpreendendo a contração de um lábio ou a inquietação de um olhar. Uma maneira, também, de lançá-los na arena de seus fantasmas, contra suas vontades. O prisioneiro de Toledo imerso nas trevas das galerias subterrâneas, Roderick abandonado nos corredores da lembrança: trata-se sempre de um território obscuro a se percorrer, entre obsessão e insensatez, nos movimentos desenvoltos e incisivos que são os traços de uma fluidez imperiosa, a de um pensamento em formação.

O espaço é tensionado, também, por um verbo preciso que articula uma densa rede de ressonâncias, onde a clareza da enunciação - uma certa forma de solenidade - porta antes de tudo o peso da fascinação. É necessário ver Rosalie tomada pelas palavras saborosas do Abade de Grancey narrando seu primeiro encontro com Albert Savarus, engolida por essas ondas de desejo que a câmera acompanha num vai e vem sensual e irresistível. São tanto as palavras tristes e frias do mestre de cerimônias quanto as panorâmicas arrematantes - num encadeamento solidário com o rufar dos tambores - que acolhem Evariste na borda do quadro, abandonado, derrisório com aquele pobre pedaço de papel com o qual encerra sua vida. Para além das palavras, é ao ritmo da cantata 51 que Anna, Bruno e Eric se movimentam, evitando-se, cruzando-se e confrontando-se, no silêncio elétrico do auditório.

Um cinema resolutamente compacto, no sentido matemático do termo, que oferece, na fuga dos olhares, o fiado dos monólogos e a deriva dos corpos, a plenitude de um espaço irremediavelmente finito, onde tudo converge a esses raros instantes em que as palavras e os corpos se consomem no despontar da consciência, sem outra escapatória que se render à revelação. Há aí uma fé inabalável na possibilidade de um espaço fílmico que permite mostrar aquilo que não se vê.

Notas:

[1] Entrevista por Jean Collet (Télérama, 1961).

[2] Notes sur Orson Welles (La Table Ronde, 1948).

(Fevereiro 2012. Traduzido por Bruno Andrade)

 

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