SOBRE ALEXANDRE ASTRUC
(trechos do Diário crítico)
por Michel Mourlet


Há cinqüenta e sete anos Michel Mourlet mantém um “Diário crítico” datado por mês, espécie de espelho que versa sobre as obras, as idéias, as pessoas, os eventos que cruzaram o seu caminho. “Espelho” e não “lente” como se utiliza na fotografia. A lente transparente e incolor opera nada mais que escolhas no espaço que varre; o espelho acrescenta o seu grão, sua água, sua curvatura, os seus reflexos. Uma grande parte do que Mourlet publicou em revistas e jornais após 1958 nada mais é do que trechos esparsos e trazidos à superfície desse monólogo submerso. Os fragmentos reproduzidos aqui, e que concernem exclusivamente Alexandre Astruc, são apresentados em ordem ascendente, a partir do mais recente que motiva sua publicação.

2012
Março


Alexandre Astruc. Conheço-o há mais de meio século, e antes de conhecê-lo pessoalmente eu já o conhecia pelas suas considerações revolucionárias sobre a “caméra-stylo” e sobretudo pelos seus dois primeiros filmes: Le rideau cramoisi e Les mauvaises rencontres, então para mim uma introdução a uma nova visão de cinema na qual o significado se ordenava em torno da mise en scène. A obra - em preparação - que recolherá as minhas memórias de todas as pessoas que conheci ao longo da minha vida terá por título Heureuses rencontres, alusão evidentemente ao primeiro longa-metragem de Astruc. Bruno Andrade, jovem cinéfilo brasileiro que entrou em contato comigo em 2007, solicita agora uma contribuição à homenagem que quer prestar a Alexandre. Há cerca de dois anos, para responder a perguntas do escritor belga Christopher Gérard, tomei notas sobre as minhas relações no final dos anos cinqüenta com Alexandre Astruc e Roger Vadim, relações que possibilitaram as entrevistas publicadas em Études cinématographiques e L’écran. Essas notas (abaixo datadas de novembro de 2009), assim como outras menções a Astruc inseridas nesse Diário, formarão uma vez reunidas minha contribuição ao dossiê de Bruno Andrade.

Eu também poderia reproduzir certas passagens da entrevista em Études cinématographiques - as palavras de um criador sendo, segundo a minha experiência, muitas vezes mais esclarecedoras que muitas análises críticas. Mas, a partir do que me foi relatado e confirmado pelo próprio Bruno Andrade, essa entrevista é suficientemente conhecida, ao menos onde ainda sobrevivem cinéfilos. Ela foi gravada em maio de 1958 para a revista L’écran de André-Sylvain Labarthe, mas tendo essa revista no meio-tempo desaparecido, ela encontrou asilo em 1960 na revista universitária das Éditions M.-J. Minard. Além disso, eu separei recentemente um trecho tratando do emprego da cor no cinema para nutrir um capítulo de L’écran éblouissant (Presses Universitaires de France, 2011).

2009
Novembro


A única verdadeira contribuição de Vadim para o cinema foi ter sido o Pigmaleão de Brigitte Bardot, como Garbo ou Marlene tiveram os seus. Mas desde antes da sua adaptação da novela de Vidalie, Vingança de Mulher, eu havia pressentido que não era “dos nossos”: ele havia me dito que admirava Antonioni e que não gostava de Preminger! Não era este, em absoluto, o caso de Alexandre Astruc, quando o conheci mais ou menos na mesma época, em companhia de um outro “mac-mahonista” de estirpe, Marc Bernard que, após algumas tentativas de crítica heideggeriana tão cintilantes como obscuras, teve uma carreira no serviço de relações com a imprensa de uma major americana. (A notar que na entrevista em questão, Marc Bernard intervém sob o pseudônimo de Marc Edalo.)

Alexandre era de uma envergadura totalmente diferente da de Vadim. Apesar de sua juventude (tinha então trinta e cinco anos) foi para nós um pouco o “pai”, o Vulcão subterrâneo dessa ebulição cinematográfica e crítica que escapava dos Cahiers du Cinéma como de uma cratera em erupção. Um artigo dele marcou época: La caméra-stylo, e seus filmes: Le rideau cramoisi, Les mauvaises rencontres, Une vie manifestavam ao mesmo tempo uma força dramática bastante sóbria e de um apuro técnico que se impunha. Gostei menos de A Educação Sentimental, mas, não o tendo revisto após o seu lançamento, não me lembro mais do porquê! Talvez por ser o romance de Flaubert que prefiro e que, imaginando uma representação forte e definitiva, toda adaptação só me pode parecer infiel ou inferior.

Os filmes de Alexandre, hoje, guardam todos os seus poderes, inclusive e talvez principalmente aqueles que ele fez para a televisão. Uma retrospectiva na Cinemateca permitiu que nos déssemos conta. A força que emana da concisão da narrativa e da sobriedade dos meios, a construção pela câmera de um espaço dramático coerente, que nos seus primeiros filmes eram objetivos visados e freqüentemente atingidos, tornaram-se nesses últimos telefilmes as qualidades espontâneas de uma “segunda natureza”. É muitas vezes assim, e mais especialmente entre os cineastas que completaram os seus percursos na televisão. Eu experimentei sensações da mesma ordem diante de História Imortal de Welles ou ainda as adaptações literárias de Cottafavi na segunda parte, singularmente rica, de sua carreira.

Com Astruc, nos anos cinqüenta, o whisky corria livremente, tal como Vadim, mas as proposições, os gostos, os princípios estéticos e as análises críticas eram muito mais próximas das minhas expectativas. Ele foi um dos mais obstinados introdutores da era de ouro do cinema americano junto aos cinéfilos franceses. Tendo o perdido de vista no início dos anos sessenta, eu o reencontrei no final da década de oitenta. Fui inclusive seu editor, tendo publicado dois de seus romances: Le siècle à venir, em 1998, quando eu dirigia a coleção (que eu havia criado) Pages de garde na Éditions Trédaniel, e Les secrets de Mademoiselle Fechtenbaum em 2008 pela Éditions France Univers. Recusando-se ao confinamento de uma especialidade, Alexandre efetivamente sempre atrelou de frente dois cavalos no seu reboque de saltimbanco: a imagem e a palavra. O criador pode, assim, ora ceder a rédea à imagem, a qual é de um rigor clássico, ora chicotear o verbo que se entusiasma em um barroco abundante. Quando penso nas pobrezas egocêntricas que se vendem hoje em dia na França sob a etiqueta de “romance”, digo para mim mesmo que a obra romanesca inventiva e repleta de cores de nosso amigo Alexandre terá bons dias pela frente, assim que for descoberta.

2005
Maio


O último romance de Alexandre Astruc. Título: Une rose en hiver. Publicado pela e/dite, casa dirigida por Jean-Christophe Pichon, decididamente um dos editores mais ativistas de hoje, quero dizer: que assume riscos por uma coisa na qual acredita, no caso os livros, como um militante na selva urbana. Completemos: assumir riscos não é o mais raro. Muitos editores assumem, para se “destacarem”. O que importa mais, nos tempos que correm, é acreditar nos livros, como acreditaram Gaston Gallimard, Bernard Grasset, Robert Denoël, Roland Laudenbach, por mais crocodilos ou tubarões que tenham sido, no sentido em que se acreditaria numa missão, ou num milagre.

Eu li vários romances de Alexandre, muitas vezes em forma de manuscrito. O que sempre me impressionou é a qualidade roteirística de suas histórias, em especial o seu Roman de Descartes, exemplo singular de um romanesco de inteligência como alguns anos antes seu filme Evariste Galois. Esse brio de roteirista o aproxima precisamente a Orson Welles. Nada de mais sutilmente construído (material, cimento de ligação, estrutura) que Soberba, Cidadão Kane, Grilhões do Passado.

O sabor dos personagens de Une rose en hiver é forte como um animal de caça e persiste na boca como se diz de um vinho: o narrador complacente consigo mesmo sob a aparência da severidade, a jovem mística selvagem, a velha monstra sagrada (admirável cena de Fedra!), a esposa alheia mas sarcástica e prudente; eu imagino o filme que o realizador de Une vie e Albert Savarus poderia ter feito, nos tempos em que lhe davam os meios.

1999
Dezembro


Guy Seligmann, que antes estava todo animado, faz-se agora de morto. Nenhuma notícia do Film dont j’ai rêvé, que tinha dado tanta esperança a Alexandre - e incidentalmente a mim mesmo. Pelo que pude entender o projeto, que rolou pelos trilhos da TGV, que entusiasmou a todos pela sua evidência de ovo de Colombo, tomou um desvio cujo nome é France 2, o canal que rema na sopa para compensar Bouygues. Seligmann, produtor ainda sensato, parece ter apostado no cavalo errado, ou mais precisamente no jumento errado, uma Sra. Cotta, que deixará ao menos este traço na história da 8ª arte: ter bloqueado um dos melhores projetos originais da televisão nos últimos anos do século XX. E, também, ter cortado pela garganta de um grande cineasta aquele que teria sido seu canto de cisne.

Julho

Para o primeiro episódio da série Le film dont j’ai rêvé, Alexandre propõe Aventure Descartes. Roteiro que ele escreveu baseado no seu livro Le roman de Descartes publicado pela Balland em 89. Eu não li o livro, mas o roteiro fornece do filósofo e matemático uma imagem muito vívida e forte, a de um homem completo, um desses gênios polivalentes e poderosamente organizados para a vida, como os grandes italianos da Renascença: nada a ver com os professores confinados da filosofia alemã. Sonho no filme que Astruc poderia extrair desse roteiro de uma evidência fílmica irrefutável, e que teve que patinar no escritório de alguns tomadores de decisões financeiras ou administrativas cuja imaginação é tão desenvolvida como a de uma lesma.

Junho

A idéia do Film dont j’ai rêvé veio a mim pela impossibilidade de Astruc em obter o orçamento para Âmes fortes, baseado no romance de Giono. Mas é evidente que ela pode ser aplicada a outros cineastas. Que diretor não tem na sua escrivaninha um ou mais projetos não realizados, aos quais são ou eram particularmente fiéis?

O princípio é, portanto, este: uma série de telefilmes de 52 minutos, durante os quais um cineasta descreve o filme que não pôde fazer, o filme o qual sonhou.

A diversidade dos procedimentos utilizados para se contar esse “filme virtual” deve evitar a monotonia de um simples recito-monólogo, mantendo-se ao mesmo tempo dentro dos limites orçamentários de um documentário. Por exemplo: filmagem da reportagem em um ou dois cenários exteriores ou interiores previstos para o filme inicial; leitura pelos atores de passagens da adaptação ou, se necessário, do livro adaptado; fotos com narração; depoimento do diretor; perguntas e respostas com um jornalista; intervenções do roteirista, dialoguista, músico; citações de outros filmes do mesmo autor etc. Utilização alternada de elementos diferentes. E, se o orçamento permitir, mise en scène pelo cineasta de uma ou duas seqüências pouco custosas.

A soma desses elementos deve, em última instância, descrever tanto quanto possível a totalidade do filme, e dar uma idéia do estilo da mise en scène. Uma apresentação biográfica do cineasta poderia ser situada no início, como uma introdução.

Imaginemos nossa felicidade se possuíssemos tais documentos sobre e com Lang, Gance, Stroheim, Welles, para citar apenas quatro cineastas impedidos pelos financiadores - que perdem muitas vezes dinheiro com fiascos - de realizar projetos que poderiam ter sido grandes obras.

1989
Março


Pequeno evento mas um grande dia para mim: o Prêmio Simone Genevois de melhor livro sobre o cinema concedido a La mise en scène comme langage por este impressionante júri composto notavelmente por Astruc, Tavernier, Sautet, o produtor Rousset-Rouard, os amigos Marmin, Beylie e Török, o historiador Philippe d’Hugues, o teleasta e cinéfilo Dominique Rabourdin... Foi a afortunada ocasião, em particular, de rever alguém que as coisas da vida - familiares a Claude Sautet - desviaram da minha rota durante trinta anos: Alexandre Astruc. Embora em má condição física, e andando com certa dificuldade, eu o achei tão brilhante como no momento de Une vie, a mente sempre borbulhando com projetos. Oferecem-lhe cada vez menos, infelizmente, os meios de realizá-los.

1958
Maio


Visita a Astruc com Marc Bernard, primeiramente para falar sobre seu último filme, Une vie, e depois para expandir a conversa ao conjunto de suas concepções cinematográficas e estéticas em geral. Entrevista apaixonante, que durou pelo menos duas horas, gravadas no magnetofone e abundantemente regada a Ballantine’s... Nosso anfitrião me pareceu vivo, mordaz, armado de belas certezas e, o que nada tem de surpreendente, excelente conhecedor do cinema americano.

Janeiro

O mais belo filme em cores que conheço, disse-me Vadim, é o filme de Astruc. (Trata-se de Une vie.) Os produtores arrancavam os cabelos, eles crêem que será um desastre. Já eu creio que se sairá muito bem, porque ele jogou o jogo do melodrama. É também a primeira vez que vejo Astruc tão vivo, tão verdadeiro, tão humano. Acho esse filme maravilhoso. Eu lhe disse: ‘Quando o filme for visto, dirão que sou o Astruc dos pobres!’. Eu não tinha nada em comum com Astruc, até agora. Tínhamos verdadeiramente dois temperamentos opostos. Mas acho que seu filme tem uma classe extraordinária no plano plástico e que repentinamente, ao mesmo tempo, ele encontrou um tom humano que é espantoso. Eu também acho que é em parte graças a Christian Marquand. Com toda a modéstia também, conversei freqüentemente com ele e ele talvez tenha comunicado o desejo de coisas um pouco mais verdadeiras, de não se ocupar unicamente do lado estético. Seu filme é admirável, de cores belíssimas... Nunca havia visto nada tão bonito. Gostei de Le rideau cramoisi, não gostei de Les mauvaises rencontres, mas Une vie me impressionou tanto quanto Vidas Amargas.”

(Traduzido por Bruno Andrade)


 

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