L’ANNONCE FAITE À MARIE, Alain Cuny, 1991
por João Bénard da Costa


Não é muito comum que um homem inicie uma carreira de realizador aos 83 anos. Ainda é menos comum se esse homem - como é o caso - foi um nome célebre, no cinema, mas num domínio que nada tem que ver com a realização, como é o domínio (ou o reino) dos atores. É certo que muitos atores e muitos atores célebres tentaram, uma só vez ou muitas, passar “para o outro lado”. Nenhum o fez tão tarde, numa altura da vida em que poucos estão já dispostos a arriscar novas experiências e novas profissões. Não é singular que L’annonce faite à Marie seja um filme realizado por um ator. O que é singular é que essa realização seja o último grande empreendimento artístico da vida de Cuny, o termo e o apogeu da sua carreira.

Comédien par amour de la boxe”, como gostava de dizer, Alain Cuny não começou no cinema como ator, mas como decorador e figurinista em filmes de Renoir, Feyder e Cavalcanti, ainda nos anos 20. Depois fez nome nos palcos, notoriamente como intérprete de Claudel, paixão maior da sua vida. No cinema começou em Águas Tempestuosas de Grémillon (1939), antes de ser protagonista em Os Visitantes da Noite (Carné, 42) e Le baron fantôme (Poligny e Cocteau, no mesmo ano). Mas a carreira que parecia abrir-se-lhe com esses papeis poéticos e etéreos não teve seqüência. Censuraram-lhe a excessiva “teatralidade”, os preciosismos de dicção e uma afetação amaneirada que o não tornava convincente. E, no cinema, Cuny só voltou a dar que falar, muito mais velho, já dobrados os 50 anos, quando Fellini o chamou para o papel de Steiner em A Doce Vida (1960). Antonioni, Rosi, Ferreri, Fellini de novo (em Satyricon) também o dirigiram nos anos 60 e 70, até que, com surpresa de tantos, vimos o nobre ator claudeliano a sussurrar lições de erotismo, em Bangkok, à Sylvia Kristel de Emmanuelle. Presença insólita, às vezes perturbante, em vários filmes célebres, Alain Cuny nunca foi, no cinema, como ator, além disso, e nunca granjeou o nome que o teatro lhe deu. Mas, mesmo no teatro, a sua imagem foi sempre mais acadêmica do que inovadora, mais “vieux style” do que novo. Só gente mais próxima conhecia a requintada cultura deste homem, e sobretudo a imensa cultura plástica de Cuny, também pintor e amigo de Cocteau, Picasso, Braque ou Nicolas de Staël.

Por isso, tantos temeram a adaptação de Cuny da peça de Claudel, pensando que o ator iria fazer uma obra acadêmica, “teatral”, pomposa e solene. Por isso, desde os anos 60 (quando Cuny apresentou, pela primeira vez, a projeto) aos anos 90 (em que finalmente o realizou) tantas e sucessivas vezes se recusaram a apoiá-lo. Por isso, enorme foi a surpresa quando, concluído o filme, se verificou que este era o contrário de uma adaptação “literal” ou “convencional” e que antes figurava - e figura - como uma das mais fulgurantes transposições da linguagem teatral na linguagem cinematográfica, do mundo do teatro no mundo do cinema. Feliz foi Claudel, de que três textos (Jeanne au bûcher, Le soulier de satin e L’annonce) deram origem a três filmes sublimes (respectivamente, os de Rossellini, Oliveira e Cuny). Feliz foi Cuny cuja vida terminou (o ator morreu em 1994, aos 86 anos) como artisticamente começou: com Claudel, quer o de L’annonce, quer o do belo filme de Nuytten (Camille Claudel) que foi antepenúltima criação do ator nas telas.

Je prende mon bien où je le trouve, Je me moque du temps et de l’espace”. Esta frase de Claudel foi, segundo o próprio Cuny (entrevista às Lettres Françaises, em Março de 92) a regra que o guiou para adaptar L’annonce ao cinema. Durante muitos anos, Cuny não se julgou capaz de semelhante ousadia e chegou a propor a Bresson que fizesse o filme em vez dele. Mas não chegaram a acordo e, lentamente, durante os muitos anos de maturação do projeto, Cuny convenceu-se que só ele podia fazer o filme com que sonhava. Sob condição de poder “prendre son bien ou il le trouve” ou seja de partir tanto do texto de Claudel, como da sua visão pessoalíssima dele e de usar todas as artes e todas as referências (e o filme deve imenso à pintura ou à excepcional partitura musical de François-Bernard Mâche) com a mais soberana e absoluta liberdade.

Acima de tudo, L’annonce faite à Marie é um filme libérrimo, em que Cuny se permite as mais singulares ousadias. Ousadias em relação ao texto (trazendo a primeiro plano, por exemplo, a relação incestuosa entre o pai e Violaine, e acabando o filme com o pai a deitar-se junto ao corpo da filha, na cripta subterrânea) mas sobretudo ousadias formais com uma libérrima utilização da linguagem cinematográfica, eventualmente só possível ou num cineasta muito jovem ou em alguém que, no termo da vida, já não receia o juízo que sobre as suas inovações possam fazer.

Antes de mais, temos uma abordagem do mundo de Claudel (e do caso específico de L’annonce faite à Marie nele) que compreendeu, cultivadissimamente, a raiz mágica e pagã do catolicismo do autor. L’annonce não é só uma parábola sobre a virgindade e a maternidade, a obediência e a graça, o fiat e a insubmissão. É também uma visitação ao mundo do imaginário infantil e a todo o inconsciente coletivo que atravessa os contos para crianças. Sem jamais “psicanalizar” Claudel ou o seu texto, Cuny soube ver nele tudo o que o aproxima dessas raízes inconscientes dos nossos pecados e das nossas culpas. “L’annonce - disse Cuny na entrevista citada - é um texto carregado de desmedida generosidade, é um texto construído sobre a trágica compreensão, que todos temos desde a infância, de que o mundo é inextricável. Se no princípio das nossas vidas pudemos acreditar que o mundo era luz, doçura e felicidade, pouco a pouco, gota a gota, entra em nós, como uma secreção, a idéia que a vida é um vale de lágrimas (...) Claudel conheceu bem esse terror e esse abismo e a minha ambição foi desnudar o que pode ser o mundo da morte dos inocentes, do massacre dos inocentes”.

E eis que, assim, desde as sombras terríveis do início do filme (chegada de Pierre a casa de Violaine) o que Cuny vai mostrar é um mundo mágico, em que com o texto de Claudel se fundem e se confundem as mais surpreendentes associações imagéticas. “Comme toute la création est avec Dieu dans un mystére profond”, diz Pierre na sua saudação a Violaine. E a câmera abandona os espaços fechados e, sem transição, dá a ver a terra arada e as searas, inundadas de luz. Depois, é uma paisagem tropical, sem qualquer justificação lógica ou textual, depois o grande plano das mãos de Violaine com o anel que Pierre lhe deu, depois “c’est un grand mystère entre nous deux”. E depois da colagem do texto da rosa (que é de Claudel, mas não é de L’annonce), Pierre de Craon diz a Violaine: “O image de la Beauté éternelle, tu n’est pas à moi”. E, em grande plano, na primeira imagem de absoluta beleza, Violaine responde-lhe: “Je ne suis pas une image! Ce n’est pas une manière de dire les choses!”, colocando a vertigem entre o que é visto e o que é dito.

E é com essa imagem - muito mais do que com o beijo ao leproso, filmado de longe e tapado pelo chapéu do peregrino - que ficamos no fim do “prólogo” da peça antes da “cortina” onde se sucedem as imagens ofuscantes das salinas e a do buraco negro, em breves planos que, muito mais do que metáforas, funcionam por obscuras correspondências.

Sob esse signo - imagens esparsas, imagens espessas - decorre todo o filme, pontuado por estranhos sinais ou limpidamente discretos ou obscuramente evocativos. Na cozinha da casa de Violaine, vemos um bibelô (um gato japonês) que nada tem que ver com aquela época ou aquele lugar, e que parece estar ali como mais tarde o vaso de vidro transparentíssimo ou a flor do jarro, como outros tantos apelos a uma sombria sede de lucidez. Mas, mais tarde, muito mais tarde, na grande cena entre Violaine e Mara (precedida, espantosamente, pela legenda escrita que fala do abismo e do peixe) a imagética é quase surrealista, com o cão enorme sentado na cadeira, a vaca, e os burros que se vem juntar às duas irmãs como num presépio demencial.

Noutras passagens, os anacronismos são sonoros (os cantos infantis), noutras, ainda, Cuny procede a colagens como quando insere desenhos de igrejas ou quadros de Van Eyck. Noutras decompõe, como nesse fabuloso plano da mão cortada de Violaine, enterrada na terra.

Mas - milagre das durações e do acerto destas associações com o texto – todas essas imagens - que não são só imagens - nunca correm o risco de simbolizar ou de parecer estar lá para nos arrancar à unidade de espaço ou de tempo.

Porque, dominando-as todas e dominando tudo (e ainda não falei do mar e da praia, dos barcos e das florestas, da terra devastada e da terra em flor) a glória é da palavra e a do texto, que tudo no filme serve e que todo o filme serve.

Momentos supremos são a grande cena entre Violaine e Jacques, quando ela o faz renunciar ao casamento e a cena ritualística entre Mara e Violaine, a da ressurreição da criança.

A primeira segue-se ao plano fixo na clareira, com os dois cavalos, o branco e o negro, quando o pai parte. Subitamente a imagem acende-se e Violaine surge deslumbrantemente vestida (capital colaboração de Tal Caal que desenhou todos os fatos do filme) como uma fada, como uma aparição. (“O ma fiancée a travers les branches em fleurs, salut!”) Depois, Violaine conta a Jacques o seu segredo. Pouco a pouco, palavra e imagem separam-se. A boca de Violaine deixa de se abrir e é sobre o rosto fechado da atriz (imagem fixa) que o diálogo continua em off, enquanto Violaine fala de lhe dar a conhecer “cette chair que tu as tant aimée”. E quando, pouco depois, lhe mostrar “a flor de prata” (o estigma da lepra) num plano tão pudico quanto erótico, Jacques cai sobre o solo como um boneco animado, para dele se soerguer em movimento semelhante. “Fille du diable”, chama-lhe Jacques. E Violaine responde: “Mais douce, douce Violaine! Douce, douce Violaine”.

Mais tarde, na tal cena precedida por legenda, o corpo da “douce Violaine” já não existe e é só um monte de trapos, massa informe que se opõe a Mara e ao seu grito de animal ferido “L’amour a fait la douleur! La douleur a fait l’amour”. E, após as prodigiosas leituras, quando se ouve o grito do bebê ressuscitado, Violaine recupera as formas, e os olhos azuis que já deu à criança que agora é também dela.

Mas Violaine, na visão de Cuny, não é a mãe, como não é a mulher de Pierre nem é a mulher de Jacques. O corpo dela - esse corpo transcendente que surge a Pierre no meio dos campos - é o corpo que segue o pai. Talvez, por isso, se me perguntarem qual é a passagem deste espantoso filme mais bela e mais secreta, eu respondo que é esse travelling de acompanhamento em que, percorrendo portas e janelas, Violaine segue, no interior da casa, cozida contra as paredes, o cavalo que leva o Pai para a Terra Santa, numa despedida sem fim que é o mais belo raccord à sua oferta a Jacques e a mais bela rima para as núpcias de morte finais.

O único filme de Cuny é um filme único.

 

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