CAMINHO SEM VOLTA
por João Gabriel Paixão


James Gray é o único cineasta de sua geração que fala da maturidade. É o único que se entrega a ela com peso e seriedade, sem qualquer recurso de grandiloqüência, sem auto-importância, sem explorar um assunto secreto que nos era interditado. Sem “originalidade”: conhece-se o que é a maturidade. É o sermão dos nossos pais com o futuro que se encontra logo à nossa frente; é o sentimento de dever que imbui os protagonistas dos thrillers e dos filmes de ação; é a mensagem de todos os filmes de “abordagem adulta” e que celebram os temas de sempre. James Gray pertence orgulhosamente a este grupo. Sério, pesado, adulto, comprometido com o dever e a universalidade - essas são as qualidades de Gray. Muitas vezes se utiliza tais palavras de forma pejorativa; sintomático para sua geração, que é a mesma de Quentin Tarantino e Wes Anderson, uma geração que tende ao histérico, ao cínico ou, pelo menos, ao cômico - nenhuma dessas palavras corresponde ao cinema de Gray, mas nem por isso ele se torna um cineasta velho, rabugento ou decrépito. Ele não ocupa uma posição paterna e senhorial, ele não vem concluir com a lição de moral, ele não detém um discurso de suposta sabedoria e experiência. Ao contrário, James Gray é jovem, colado que está da juventude que filma. Ele lida com jovens tanto quanto vários de outros cineastas “descolados” de sua geração, com a diferença que seus personagens têm, de fato, como já haviam alertado nossos pais, o futuro à sua frente.

É com um horizonte à vista que Gray concentra toda a sua mise en scène no desenvolvimento, sempre evolutivo, da narrativa. Vamos observar toda uma história, com seus impasses e fatalidades, sermos atiçados pelo desenrolar da trama e, ao final, carregarmos o peso de uma tragédia vista como que pela primeira vez. E o desconcertante é que ele o faz sem uma temática “inédita” ou “singular”, sem uma trajetória virtuosa. Lembro que no dia seguinte à primeira vez que vi Caminho Sem Volta, contei o enredo para uma amiga que, se me lembro bem, disse algo como “nada de mais”. Ela não estava errada. Acontece que só se entende a força do filme, vendo-o, se contaminando por uma narração cuja principal virtude é estar mais próxima possível do passo a passo de sua história. Um tal esmero não poderia estar mais distante de um suposto saudosismo a uma época romanesca, ou então do maneirismo, de uma maneira engraçadinha de contextualizar a mediocridade do nosso mundo contemporâneo no interior de um tradicional conto ocidental. Se o filme se passa no nosso mundo, o de hoje, com os objetos da atualidade, nossas roupas, nossa maneira de falar e de agir, é porque esses elementos importam, eles precisam ter um peso. É preciso lembrar o peso da tradição que, a despeito de uma tendência pós-moderna de relativização, ainda existe e que os indivíduos lutam instintiva ou conscientemente para se adequar a ela. Nem por isso que James Gray enalteça qualquer moral familiar (algo que foi falado especialmente a respeito do final de Os Donos da Noite), exatamente porque esta adequação está longe de ser natural ou espontânea. Dar peso ao nosso mundo de hoje já é, de alguma maneira, estranhá-lo; é se confrontar ao passado da tradição; é possibilitar que a juventude supere o passado ao seu redor e mantenha o mundo em contínuo movimento.

Já é assim com Leo (Mark Wahlberg) desde a primeira cena, passada dentro de um trem que atravessa Nova Iorque: não sabemos ainda quem ele é, nem para onde vai, seu rosto duro parece não nos transmitir qualquer informação, mas o que importa é que ele já está em movimento. Confronto ao passado: logo em seguida, na festa pelo seu retorno da prisão, ele se reencontra com a sua família, suas amizades da infância, os assuntos financeiros, a decoração do apartamento, a comida farta, tudo isso misturado na efervescência típica de uma ocasião excepcional. Tímido e algo constrangido, distanciado daquela alegria coletiva, tudo ao redor de Leo parece de alguma forma desarranjado com a sua presença. É pela celebração dos rituais, pela urgência de assuntos financeiros, pela felicidade materna que algo parece que logo vai dar errado.

James Gray me lembra bastante John Ford por esta relação entre indivíduo e comunidade que resulta sempre em um pathos. Mas, enquanto Ford usa o plano conjunto para abarcar a diversidade das pessoas no quadro e a amplitude de seus gestos, Gray elege o close, escala totalmente atípica a Ford, que comprime o espaço nos rostos e paralisa o instante. Sem o plano conjunto, Gray vai com o close para encontrar a comunidade ali nas suas fendas, em rostos específicos e em momentos preciosos, na intensidade das reações de seus jovens personagens que só o close pode dar vazão.

Já disse que James Gray é um cineasta jovem. É preciso ser jovem para estar, nestes closes, tão perto de seus iguais; é preciso sintonia, intimidade, segredo. Colado a cada gesto, a cada expressão facial, a mise en scène de Gray não sai jamais do presente da sua história, do seu desenvolvimento, do imediato de cada ação e de cada gesto. É essa concentração no presente que caracteriza a juventude, é o que a diferencia e o que a coloca em contínuo movimento. São nos gestos mais afobados de Willie (Joaquim Phoenix), os mais contidos de Leo e sua silhueta pálida e tímida que contempla a beleza frágil de Erica (Charlize Theron) e o possível amor recalcado que eles conservam entre si, são nestes gestos que se concentram uma força potencialmente arrasadora, detida talvez pelo congelamento do close, mas ainda assim prestes a se descarregar. É o que vai culminar na série de fatalidades que marcam o filme e abalam profundamente a família, as amizades, o trabalho, tudo que é ao redor o passado. Só o presente é tenaz. Novamente o close: ele também expressa a distância que separa o indivíduo de sua comunidade, a superfície do rosto juvenil do décor do fundo do quadro, o presente da dramaturgia e sua recorrência passada pelos “temas de sempre”. Mais interessante é que este close não indica uma selvageria à Fuller, uma fúria ou revolta dos personagens; ele surge pela imobilidade, pelo acossamento, pela incompreensão, um presente encapsulado pelo congelamento do instante. Se Leo se afasta de um mundo que, mesmo após sucessivas tentativas de reaproximação (desde o início do filme), nunca lhe pertenceu, não é por uma revolta juvenil, mas pelo caminho inevitável da resignação perante a tragédia e da descoberta individual. O trágico é a maturidade, a aprendizagem, a afirmação de uma identidade.

Até o final, Gray permanece colado ao presente. O mundo se transforma plenamente, mas isso não lhe permite uma conclusão estanque: apesar da delação dos corruptos (informação pleonástica que qualquer espectador já tinha desde o começo do filme), não há culpados e inocentes nesta transformação sofrida, que é bem mais ampla que o esquema de corrupção da gangue de Frank (James Caan). O mundo se transformou, mas permanece em movimento: ao final, Leo está novamente dentro um trem que segue seu itinerário sempre desconhecido. É o mesmo Leo cansado, que carrega um passado que o seu rosto duro oculta, como no início. Mas alguma coisa aconteceu. Gray realiza um travelling que não “fala” nada, só tem vontade de ver mais de perto, não para esmiuçar, mas para encarar e compartilhar a mesma coisa. É um movimento lento, mas firme e constante, que parece observar que alguma coisa mudou: Leo e Gray encontraram a maturidade. Nesse gesto da câmera, Gray rompe com quase todo o cinema à sua volta, ainda mais o de sua geração, mas essa ruptura é tão-somente natural, espontânea, de sua própria sensibilidade - de sua própria juventude.


 

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