OS DONOS DA NOITE
por Sérgio Alpendre


É bom deixar claro já de início: um filme como Os Donos da Noite não tem nada em comum com a obra de um cineasta como Martin Scorsese. Ao passo que o autor de Taxi Driver acelera o ritmo para abreviar a dinâmica do relato, Gray o cadencia para aprofundar-se no drama dos personagens. Em Os Donos da Noite, um momento emblemático desse aprofundamento ocorre durante a perseguição de carros debaixo da forte chuva, seqüência em que a manipulação do tempo e a descrição econômica dos eventos são dignas do melhor Hitchcock, e que se encerra com a morte do pai policial interpretado por Robert Duvall. Nesse momento - comparável ao final de O Poderoso Chefão 3, quando o desespero toma Al Pacino ao ver sua filha Sofia Coppola baleada -, o filho caminha até o corpo do pai, estendido no asfalto molhado. Não ouvimos nada do que se passa na cena. Apenas sentimos seu desespero, numa espécie de chamado definitivo para seu retorno ao seio familiar.

São os laços familiares, as raízes criadas num mundo indiferente, que guiam o cinema de Gray. Em Fuga para Odessa, Tim Roth e Edward Furlong são irmãos que ainda se amam, sobrevivendo às ruínas de uma família desintegrada pelo desentendimento do irmão mais velho com o pai. Em Caminho Sem Volta, Mark Wahlberg (em uma interpretação antológica) é o filho pródigo que após sair da prisão é reintegrado ao núcleo familiar para acabar se envolvendo a contragosto com os trâmites criminais do tio e do melhor amigo. Em Amantes, Joaquin Phoenix é o suicida que durante todo o filme busca uma completude - experimentada provisoriamente com a mulher por quem se apaixonou - para depois vislumbrá-la justamente no ambiente familiar tradicional que tanto o inquietava. Em Os Donos da Noite, essa inclinação fica clara já nos primeiros minutos, quando percebemos que Bobby (novamente Joaquin Phoenix) mantém uma distância de sua família policial (formada pelo irmão Mark Wahlberg e pelo pai Robert Duvall). Inteiramo-nos rapidamente da relação conflituosa que mantém com seu pai, que pretendia para ele, entre outras coisas, um futuro dentro da corporação policial. Esse desentendimento com o pai, porém, não é totalmente verdadeiro: mesmo antes de serem exprimidos em momentos de mútua cumplicidade, os laços estão lá, intensificados pelos olhares que pai e filho trocam durante a investigação criminal da polícia na boate onde Bobby trabalha.

Ao final de Amantes, a mãe revela um sentimento de proteção abnegado, que já não parece o mesmo do começo do filme, diante da opção de Phoenix em abandonar o lar. Ela já não é aquela mulher que fita as sombras que escapam da fresta da porta do filho, que lhe arranja namoradas ideais. Ela, espantosamente, adquire as feições de uma amiga. O que é inesperado e não menos irônico é que a forma como Phoenix desaba interiormente diante da manifestação do afeto de sua mãe não é muito diferente do que vemos na praia, à noite, diante de um mar que lhe devolve o laço que teve com Vinessa Shaw, vindo a reconhecer nela pela primeira vez, como reconhecera em Gwyneth Paltrow, uma irmã de alma. É um movimento análogo o que ocorre em Os Donos da Noite: Amada, a namorada de Bobby, traz consigo um modo de vida que naturalmente lhe induz ao afastamento dos parentes policiais dele, uma vez que representam uma ameaça para um novo núcleo familiar que ela deseja construir. O sentimento de proteção pela família constituída anteriormente leva Bobby para a corporação após a morte do pai. Somente após participar da ação de captura daqueles que levaram seu pai à morte Bobby deixa a corporação na esperança de reencontrar Amada. Cabe também à família o papel de antagonista: seu patrão, dono da boate de que era gerente, praticamente um pai para ele, é revelado em certa altura como o grande “capo”, o chefe da organização de traficantes russos que ele vai combater. O plano em que esse personagem, que lhe abriu todas as portas, envergonha-se - não por ter sido pego, mas por tê-lo decepcionado -, é antológico. A troca de olhares entre eles revela muito mais do que quaisquer palavras.

Talvez seja nessa concentração do material humano, nas suas incoerências e seus impulsos, que o estilo cinematográfico de Gray se revela. Concentrar boa parte dos planos nos olhares dos atores não é algo novo no cinema, mas é na atenção dada ao olhar de Joaquin Phoenix durante o confronto final, na maneira com que ele segue os acontecimentos, mantendo-se alerta a todos os detalhes previstos e imprevistos, que Gray se revela um grande cineasta. É pela integridade com que relata os sentimentos vacilantes dos seus personagens, pela capacidade de detectar o reflexo da força ou da dúvida nos olhares de seus atores, que podemos comparar seu cinema ao de Fassbinder, John Ford, Nicholas Ray ou Visconti. Se lembrarmos do desfecho de Amantes, um diálogo de olhares no qual descansam duas almas, fica a certeza de que Gray, mais que um excelente cineasta, é um verdadeiro dramaturgo da verdade humana.


 

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