OS DONOS DA NOITE
por Luís Miguel Olivera
James Gray (nascido em 1969) é um dos realizadores mais entusiasmantes no panorama do cinema americano contemporâneo. Realizou apenas quatro longas-metragens em 16 anos (Os Donos da Noite foi o terceiro), o que indicia alguma meticulosidade e, sobretudo, pouca disposição para se prestar a fretes. Gray faz parte daquela linhagem de cineastas (de Ford a Coppola, para dar dois exemplos que vêm facilmente à memória) que acredita na possibilidade de fazer ouvir uma voz individual (ou um “discurso de autor”) sem deitar fora os meios, as condições e os códigos da grande indústria. E está disposto a pagar o preço, pois como ele uma vez disse numa entrevista, prefere esperar até ter a certeza de que o filme que vai fazer é mesmo o “seu filme” e não um “filme qualquer”. É sobretudo essa a razão que explica tão reduzido corpus numa obra que até começou de maneira ribombante (o primeiro filme de Gray, Fuga para Odessa, ganhou o Leão de Prata em Veneza 94), mas que guardou sempre a sagesse necessária para não se adulterar por dá cá aquela palha. O resultado é que os quatro filmes de Gray (para além dos citados, Caminho Sem Volta, de 2000, e Amantes, em 2008) demonstram um enorme talento mas também uma absoluta coerência na maneira como repetem e refletem um punhado de características estilísticas e temáticas (a família ou a assimilação cultural no grande caldeirão da cultura urbana americana). Um autor “à antiga”? Perguntem a Claude Chabrol, que nas últimas entrevistas que deu, à pergunta sobre o que tinha visto recentemente que lhe tivesse agradado mais, respondia invariavelmente: “James Gray”.
Entramos em Os Donos da Noite por uma pequena seqüência fotográfica a preto e branco, à procura do surpreendente pedaço de poesia, triste mas galvanizante, que serve de lema (impresso nos badges) a um departamento da polícia nova-iorquina: “we own the night” (“nós possuímos” ou “nós temos a noite”, mais do que o burocrático “controlamos” que serviu ao título em Portugal). Daí passamos à cor, e entra um travelling sobre um Joaquin Phoenix narcotizado e alucinado, num plano a explodir de vermelhos e dourados no meio das sombras, e uma canção dos Blondie a fazer rebentar a banda sonora. Phoenix vai ter com a namorada, Eva Mendes, e envolvem-se em manobras eróticas que não passarão de um estágio preliminar porque entretanto batem à porta do quarto a chamar Phoenix para cumprir uma obrigação qualquer do seu trabalho como gerente da discoteca. Não será a única coisa que, em nome do dever, ficará interrompida em Os Donos da Noite. A história deste terceiro longa-metragem de James Gray será, então, o relato da caminhada que leva o Phoenix alucinado desse primeiro plano, filho tresmalhado de uma família de policiais, ao momento, o derradeiro plano, em que está lado a lado com o irmão numa cerimônia de admissão ao corpo policial.
A mensagem não é certamente “progressista”, no mesmo sentido em que o não são a maior parte das histórias narradas na Bíblia ou a maior parte das histórias dos filmes de John Ford. Os Donos da Noite é uma espécie de regresso do filho pródigo, contada no meio das drug wars na Nova Iorque do final dos anos 80, e por intermédio dessas duas grandes “famílias” que são a Polícia e a Máfia - sendo de notar que a dimensão familiar duma e doutra é reforçada pelas identidades culturais (os mafiosos são russos, os policiais, esta família de policiais, os Grusinsky, são de origem polaca). James Gray, ainda não se disse, é um esteta. Mas um esteta silencioso, sutil, como todos os grandes estetas do cinema clássico americano. Os seus modelos são antigos: o cinema americano dos anos 70 (mais Coppola do que Scorsese), os velhos clássicos (esta família Grusinsky é tão coppoliana como fordiana). Não há cenas para encher - todas são vividas e encenadas à procura de uma intensidade que tem tanto a ver com a presença dos atores (o fabuloso Robert Duvall, no papel do pai, paradigma de dignidade e elegância tensas, sobre um vulcão interior) como com os espaços (logo ao princípio, a equivalência entre a ampla discoteca em que Phoenix trabalha e a igreja da primeira reunião familiar). Quando Gray quer, pode ser “virtuoso”, como sucede numa soberba seqüência de perseguição de automóveis ou na derradeira seqüência de ação (que houve quem aproximasse de Terrence Malick, e não é mal visto) - mas do “virtuosismo” no seu sentido corrente e exibicionista, nem rastro. Os Donos da Noite, filme noturno mesmo quando a ação é diurna, abunda em coisas admiráveis; às que já mencionamos, acrescentamos mais duas: o modo como a fotografia vai abandonando a exuberância quente, os vermelhos e dourados do início, para se arrefecer num sombreado azul-polícia ao longo da segunda parte (o que denota, fundamentalmente, um extraordinário sentido da progressão narrativa), e o tratamento sofrido da personagem da espampanante Eva Mendes, cuja tragédia não tem lugar na tragédia do namorado (não é a sua família), e portanto cedo se torna um peso morto, sem verdadeiro lugar a ocupar (e por isso desaparece sem olhar para trás).
E o final - “I love you very much”, “me too”, e “amen”. É a última palavra do filme, amen. Depois, fade a negro, genérico final.
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