AS NOITES BRANCAS DE JAMES GRAY por Luís Miguel Oliveira
Amantes, com Joaquin Phoenix e Gwyneth Paltrow, é um filme sobre o
estado de se estar apaixonado, que é inevitavelmente ridículo - “mas é
desse ridículo que nasce um pathos”, diz-nos o realizador James Gray, que se inspirou nas Noites Brancas de Dostoiévski.
Talvez já poucos se lembrem que James Gray (n. 1969) fez o seu primeiro filme aos 24 anos (Fuga para Odessa)
e ganhou logo um Leão de Prata no festival de Veneza de 1994,
disparando inevitáveis comparações com Orson Welles. Não parece ter-se
deixado impressionar com isso, nem se apressou a cavalgar a onda. Foram
precisos seis anos para acrescentar um opus 2, Caminho Sem Volta, e depois mais sete para lhe dar seqüência, com Os Donos da Noite, um dos melhores filmes estreados em Portugal no ano passado.
Amantes é apenas o seu quarto filme em quinze anos, e talvez um
sinal de que Gray esteja disposto a contrariar esta aura de cineasta
bissexto. Compõem estes quatro filmes já uma “obra”? É inevitável pensar
que sim, pois são quatro filmes que vincam um estilo pessoal de fazer
cinema (uma mise en scène “total” mas silenciosa) e condensam um
núcleo temático rigorosamente desenvolvido (a família e a força dos
laços de sangue, as comunidades de origem emigrante e as suas
tradições).
Amantes, que é mais claramente um melodrama do que qualquer dos
filmes precedentes, põe em cena uma espécie de tentação comum aos
protagonistas de Gray: a fuga para fora da “bolsa” familiar e dos seus
condicionamentos. Tentação contrariada por uma mistura entre a força das
circunstâncias e a força dos valores arraigados - como Os Donos da Noite, Amantes
tem algo a ver com a história do bíblico filho pródigo, e por baixo do
“melodrama de paixão” espreita ainda o “melodrama familiar”. Cinéfilo,
herdeiro de Coppola e de Ford (mas em caso algum um copista - esta mise en scène
não vem de Ford nem de Coppola), James Gray é, juntamente com outro
nativo de 1969 (Wes Anderson), o futuro do cinema americano visto de
2009.
Luís Miguel Oliveira: É impossível não reparar que em Amantes
deixou de fora os elementos narrativos de caráter policial,
preponderantes nos seus outros filmes, e ficou só com uma história de
amor, quase um melodrama de gênero. Há alguma razão especial para isto
ter acontecido?
James Gray: Por acaso até há. Também me podia ter feito a
pergunta ao contrário, e inquirido pelas razões que me levaram a incluir
esses elementos de caráter policial, que acho que é uma boa maneira de
os definir porque não são propriamente filmes de gênero ou elementos de
gênero, nos meus três primeiros filmes. Mas é uma razão um bocado
comezinha, lamento dizer. Era mais fácil convencer os produtores e
encontrar financiamento se lhes prometesse um pouco de gunplay
[intraduzível à letra: algo como “cenas com pistolas” ou “tiroteios”], e
para albergar isso precisava de um contorno policial para os
argumentos. O meu interesse primordial não estava nem no policial nem no
gunplay, mas basicamente foi graças ao policial e ao gunplay que pude fazer os meus primeiros filmes.
LMO: Mas agora já não precisa deles, a julgar por Amantes…
JG: Bem, desta vez não precisei, de fato… Os Donos da Noite
[o filme anterior de Gray], de entre os meus filmes, foi o primeiro a
conseguir um impacto significativo quer em popularidade e bilheteria
quer em atenção dos críticos e das mídias. Nunca tinha tido estas coisas
todas ao mesmo tempo, nesta escala. Em atenção a isso, e também porque o
meu poder negocial ficou um pouco mais forte, foi relativamente fácil
convencer os produtores a deixarem-me fazer este filme como eu quisesse,
com pistolas ou sem elas.
LMO: Pode-se inferir, do que está a dizer, que Amantes é o seu filme mais livre? Onde se pôde concentrar mais numa idéia a perseguir, e menos nas manobras para a conseguir perseguir?
JG: Acho que posso dizer que é uma expressão mais pura do meu
cinema… Como cineasta o que me interessa perseguir e trabalhar é uma
autenticidade emocional…
LMO: … mas o gunplay nunca o impediu, e se há coisa marcante nos seus outros filmes é justamente essa impressão de autenticidade…
JG: Sim, claro, tem razão. Há uma nuvem de temas que me importa
desenvolver de filme para filme, e não vejo mal nenhum na repetição
temática. Pelo contrário, eu quero repetir os temas que me interessam. Amantes,
neste sentido, trabalhou numa via mais direta para eles. E se quer que
lhe diga, respondendo claramente à sua pergunta, é o filme que está mais
próximo do que eu imaginava e queria que os meus filmes fossem no tempo
em que era só um aspirante a cineasta.
LMO: Outra mudança de padrão, por assim dizer, está na rapidez com que Amantes se seguiu a Os Donos da Noite. Estávamos habituados a intervalos de quatro ou cinco anos entre os seus filmes.
JG: É verdade. Devo ter criado a reputação de ser um cineasta
lento. Mas eu não sou um cineasta lento, julgo até que trabalho muito
depressa, e seguramente não preciso, por mim, de quatro ou cinco anos
para fazer um filme. Já para conseguir as condições ideais para o fazer,
a conversa é outra. Os intervalos explicam-se assim: uma espera pelas
condições e garantias, pela certeza de que ia fazer o meu filme e não um
filme qualquer. Para Amantes, como lhe disse, tive condições e garantias como nunca tinha tido. E o resultado [risos] é que só foi preciso esperar uns meses para ver um novo filme de James Gray…
LMO: Era uma história antiga à espera de oportunidade, ou foi uma história escrita para a oportunidade?
JG: Não era muito antiga, mas estava à espera de oportunidade.
Escrevi o argumento enquanto esperava - lá está - pelo começo da rodagem
de Os Donos da Noite. Sabia que queria Joaquin Phoenix, que era o ator que nos meus dois últimos filmes [Caminho Sem Volta, para além de Os Donos da Noite]
tinha funcionado como um duplo meu, ou enfim, não exatamente um “duplo”
mas em quem tinha projetado alguns traços pessoais e autobiográficos
meus, e precisava trazer esta continuidade para Amantes. Sabia
que queria Gwyneth Paltrow. E sabia que queria dar alguns papéis a
alguns atores, como Moni Monoshov [que era o patriarca-mafioso de Os Donos da Noite e em Amantes é o patriarca bondoso da família do protagonista]. Foi só esperar que estivessem todos disponíveis.
LMO: Falou em traços autobiográficos. Uma coisa que Amantes
transporta dos seus outros filmes é a ambientação entre as comunidades
emigrantes ou de origem emigrante da zona de Nova Iorque, especialmente a
russa. Livrou-se da Máfia, que é sempre uma ótima figura de estilo para
falar deste tipo de mundos de identidade muito vincada, mas continua a
fazer o retrato de uma cultura muito específica, muito particular. Até
que ponto isto é uma coisa pessoal?
JG: É totalmente pessoal. É a minha origem. Sou neto de russos
que emigraram para a América. Cresci em ambientes parecidos com os dos
meus filmes, conheço muitos dos lugares onde filmo como a palma da minha
mão. Tenho uma relação profunda com estas comunidades fechadas, onde o
espírito familiar se confunde com a preservação de uma identidade
cultural e conduz a uma espécie de insularidade. É o mundo de onde
venho, para o dizer simplesmente.
LMO: Já nos seus outros filmes a descrição destes ambientes passava muito pelo trabalho sobre os décors
dos interiores e pelos adereços. São casas atulhadas de objetos, de
“memorabilia”, como pequenos museus. Acredita-se logo nelas.
JG: Fico contente que tenha reparado nisso. Sou completamente
obcecado pelos pormenores, acontece-me perder horas à procura de um
objeto qualquer que depois, dentro do plano, nem vai ser visto
claramente. Era importante, até pelas características da história, ter
um mundo real como décor de Amantes. A idéia era que o
cenário funcionasse por camadas, camadas de História, e sugerisse uma
sedimentação progressiva, de uma geração para outra, da cultura russa no
modo de vida americano.
LMO: Por falar em coisas russas, antes de ver o filme tinha lido em vários sítios que se tratava de uma adaptação muito livre das Noites Brancas
de Dostoiévski. Vi o filme sugestionado por isso, e se estava sempre
com o Dostoiévski na cabeça não conseguia deixar de pensar que era uma
referência algo gratuita. Qual é a verdade sobre esta história?
Baseou-se no Dostoiévski ou não?
JG: Não sei como isso começou, talvez até tenha sido eu a
mencionar Dostoiévski numa entrevista. Mas de fato não é
extraordinariamente importante. Terá sido uma inspiração mais ou menos
longínqua, mas o argumento tem na melhor das hipóteses algumas
similaridades com a história. Se falei de Dostoiévski foi mais por
questões relacionadas com a psicologia das personagens, e por
Dostoiévski escrever com a noção de que a paixão, o estado de se estar
apaixonado, é inevitavelmente ridículo. Mas que é justamente desse
ridículo que nasce um pathos.
LMO: Conhece a versão das Noites Brancas feita por Luchino Visconti?
JG: Conheço, adoro.
LMO: Passou-me pela cabeça que o filme se relacione mais com essas Noites Brancas do que com as do livro…
JG: OK, acertou em cheio, é isso mesmo. Não foi um modelo, mas
pensei muito nesse filme. A relação com o espaço [o filme de Visconti é
uma longa deambulação noturna por Veneza] é importante, mas sobretudo
Visconti também filmou a história a partir da noção do ridículo, que não
tem que deixar de ser doce, afetuosa, que é um homem apaixonado e
desorientado pela paixão.
LMO: E aquele final muito pacífico, mas muito peremptório,
quando Mastroianni fica a ver Maria Schell ir embora com Jean Marais… O
seu filme tem uma dissipação semelhante. Mas a questão da doçura é mais
complicada. Não quer dizer que não exista, e você não é um cineasta que
alguma vez tenha filmado contra as suas personagens mesmo quando elas
são, pelo senso comum, “negativas”. Mas há um lado incerto na personagem
de Phoenix, uma imprevisibilidade, que o espectador pode sentir como
uma ameaça. Sente-se próximo dele, mas pára antes da empatia.
JG: Foi por isso que quis começar com a cena do suicídio
frustrado. Que até se resolve meio pateticamente, com ele a ir-se embora
em modo casual, como se fosse um tipo que se lembrou de ir dar um
mergulho ao cais. Mas esta cena, julgo, cria imediatamente um peso à
personagem, e marca toda a relação do espectador com ela: a primeira
coisa que fica a saber sobre Leonard [a personagem de Phoenix] é que é
um tipo capaz de tudo. Julgo que é isto que cria a ameaça, como lhe
chamou. O que por mim está muito bem: não vou ao cinema para me sentir
confortável e não quero que os espectadores dos meus filmes se sintam
confortáveis. Esta é a razão de ser do cinema e da arte em geral.
LMO: Só mais uma pergunta [Gray falava ao telefone de sua
casa, tinham-se começado a ouvir choros de criança, e o entrevistado
pedia autorização ao entrevistador para ir acudir a uma “emergência”].
Um aspecto característico dos seus filmes é a utilização extremamente
cuidada da cor. É sempre muito expressiva, mas nunca é obviamente
simbólica. Dedica muito tempo a pensar nisto?
JG: Se dedico… Houve uma altura em que tinha três livros sobre
teoria das cores pousados na mesa de cabeceira… Depois deitei-os fora.
Mas penso sempre na aplicação das cores como uma coisa subliminar, em
que o espectador não deve reparar conscientemente. Se você me está a
falar das cores é porque falhei [risos]… Tenho um princípio que
não consigo explicar claramente em tão pouco tempo, se calhar não o
consigo explicar claramente a mim próprio, mas é assim: a cor deve
servir para distinguir o texto e o subtexto de um filme. Na prática
significa arrancá-la aos simbolismos óbvios, tipo “o vermelho é a
paixão”, e tentar criar texturas que trabalhem em contraponto com a
natureza intrínseca das cenas.
LMO: Cinzentos e azuis muito frios para as cenas emocionalmente mais ricas…
JG: … e vermelhos e dourados… [outra vez berros de criança]… Oh desculpe-me tenho mesmo que ir. Muito obrigado.
(Ípsilon [http://ipsilon.publico.pt/Cinema/entrevista.aspx?id=237531/], 30 de julho de 2009)
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