EDITORIAL por Felipe Medeiros e Bruno Andrade
Às vezes nos perguntamos por que vemos poucos novos filmes brasileiros,
ou pelo menos novos nomes brasileiros. Há uma desconfiança incrível que
se renova a cada tentativa frustrada de se mudar esse perfil. Diretores
de cinema e a maior parte dos críticos de internet são os protagonistas
(talvez como em nenhuma outra área) dessa nova categoria de inteligentzia
que é a “bem informada”. Não só informada de fatos e nomes, mas de
categorias, axiomas da moda, de neo-teorias, dos últimos conceitos
emprestados das ciências interdisciplinares, da reciclagem farsesca do
que já era uma releitura em outros tempos. O pensamento não é mais um
ato livre sujeito a conseqüências, a gravidades, mas um terreno seguro
onde é possível “se exercitar”.
Há dois fatores determinantes. Em primeiro lugar, a extrema pobreza
intelectual da maior parte dos críticos-diretores, visto que todos leram
os mesmos livros, vêem os mesmos filmes, partilham dos mesmos valores
e, às vezes, até o mesmo vocabulário, e quase sempre o mesmo “método de
análise”. Em outras palavras: uma vez que não há olhar crítico, não há
uma crítica. O olhar crítico precisa de liberdade, deslocamento e alguma
solidão. De experiências, e não somente de conhecimento. Observou
Larrosa: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos
toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca. A cada dia se
passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.
(...) Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais
rara”. O conhecimento não é necessariamente uma experiência. Você pode
se deparar com algum conhecimento sem ser por ele afetado. Acreditamos
que a experiência do homem se dá pela intensidade de sua relação com o
objeto que lhe chama a atenção, que lhe fixa uma obsessão, um interesse
que arde sem explicação ou contornos imediatos, num processo de
assimilação e integração que implica uma ampliação de ângulo da
realidade.
O segundo fator (indissociável do primeiro) procede do cinismo e da
covardia que se travestem de “desconfiança moderna”. A desconfiança,
sempre saudável, deu lugar a uma falta de verdade fundamental, uma vez
que fazer afirmações saiu de moda: onde falta verdade sobra mentiras,
equívocos e meias verdades. Não restam posturas. Os críticos e diretores
que se salvam são aqueles que não só têm uma voz, mas uma dicção
própria. São poucos.
Não basta subir num engradado de frutas e esperar muito para que sua voz
atinja praças públicas. Reconheçamos: tempo para leitura, hoje, é
artigo de luxo. A arte chega a essa altura do campeonato no mesmo
patamar da filosofia: condenada à total inutilidade. Por que inútil? Por
uma estranha coincidência, o campo da literatura sofre um amargo
retrocesso, se comparado com o início do século XX e final do século
XIX, enquanto o da crítica de arte alcança praticamente o subsolo 8 na
margem de relevância. Uma arte e um estudo relacionados à inutilidade,
como a própria Filosofia. Até aqui, nada surpreendente: o homem que cria
uma obra verdadeiramente reflexiva, aqueles que tentam modificar ou
estão insatisfeitos com o seu meio são sujeitos inúteis à maioria que se
conforma com ele. Cada vez mais raros são os inúteis na multidão. O que
há de esperança vem sendo construída de forma democrática pela
internet. Um mundo vasto, em que é possível estabelecer critérios para
selecionar a sua frente, o seu front.
Por uma amarga ironia, essa divulgação da arte, da reflexão, da
camaradagem desenraizada do retorno imediatista é sufocada dentro de sua
própria finalidade. Os críticos conformam-se em reafirmar velhas
verdades amareladas pelo tempo. Tanto é que mesmo os textos traduzidos
de críticos célebres, vindos de países mais maduros no desempenho da
atividade crítica, e que poderiam se relacionar com cineastas,
movimentos e escolas que não pertencem ao circuito contemporâneo do
fetichismo midiático, convidam à absoluta desconfiança quanto às boas
intenções dos tradutores. Na verdade, busca-se uma legitimação de ordem
intelectual com base nas mais pérfidas descontextualizações - ou, sendo
ainda mais exato, terrorismo franco à discordância daqueles que
problematizam e injetam interrogações na apreciação, do uso que cada um
faz do cinema. Nesta época de afirmação social utiliza-se o cinema, e
particularmente a crítica de cinema, para uma projeção personalizada da
falta de personalidade.
É preciso manter-se uma “reserva”, digamos, apresentar às pessoas
artistas que lutam, resistem ou escapam do atual circo midiático, como
também se espera de um diretor assuntos ou o favorecimento de imagens
menos midiáticas. É preciso considerar, um pouco como em Hölderlin, a
linguagem como a moradia do Ser, e não o seu mictório, como vem se
tornando nesta onda de simplificações, neste desprezo irracional pelo
instrumento privilegiado do conhecimento e da epifania que caracteriza a
construção ontológica de uma sensibilidade: imagens que permitem uma
analogia entre coisas ou estados de coisas, e não este comércio de
idéias recebidas e placas indicativas que virou a realização
cinematográfica/crítica no Brasil.
Ainda num exemplo geral e bem sintético e tendencioso, cremos que a
crítica e a direção devam ter estilo - refletir na forma, organicamente,
os revezes e a paixão do conflito com o objeto. É preciso descobrir ou
enfatizar registros menos óbvios, estar imbuído de uma percepção
metódica e de alcance; ter fé no relato como a única mediação possível.
Ser carne e padecer na carne, como todo homem; sentir-se abandonado,
como todo homem que é solitário e padece um tanto por isso (produzindo,
refletindo).
Um homem, que conhece a si, a mediação se dá.
Passemos a James Gray.
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