A IDADE DO HOMEM por Luiz Carlos Oliveira Jr.
Jean-Claude Guiguet é um cineasta com a mais nobre vocação para filmar a primavera do mundo, o florescimento das coisas belas, as cores e as formas da natureza bem como sua recriação pela mão do homem. Como explicar, então, o lado invernal e tenebroso de seus filmes? A contemplação serena, que parece estar na raiz da vontade artística de Guiguet, não consegue se expressar sem despertar a consciência de uma queda, de uma baixa estatura do tempo, refletindo o conflito entre uma Kunstwollen clássica, destinada a celebrar a beleza do mundo, e uma hiperconsciência moderna, que enxerga a tragédia escondida sob a superfície anódina do fin de siècle. O doce encantamento do olhar de Guiguet se choca contra um mundo duramente desencantado.
Há uma cena em Faubourg St Martin que resume tudo: duas mulheres conversam ao lado das imensas colunas que sustentam a fachada de algum edifício. Em outra época, em outro contexto, essas mulheres seriam musas e o edifício seria um templo. Tratar-se-ia de “um mundo harmonioso onde uma luz divina banharia seres em acordo profundo com o universo”[1]. Mas as colunas estão velhas e desgastadas; as mulheres são prostitutas e não musas; a mais jovem exala melancolia e aflição (está apaixonada por um rapaz que não sabe como ela ganha a vida); a mais velha traz um semblante cético, desiludido; a noite é pesada e volumosa. Embora a iluminação da cena vise à beleza das atrizes e do cenário, um sentimento de danação paira no ambiente.
Em Le mirage, a visão animista de uma natureza viva e enérgica - como naquele momento mágico em que as personagens estão envoltas numa agitada nuvem de pólen - encobre todavia a ação da morte confundindo-a com rejuvenescimento. Maria Tümmler, mulher de meia idade, sofre sangramentos e, ao invés de suspeitar de alguma doença (que ela de fato tem), pensa que voltou a menstruar por um “milagre natural” que lhe devolveria a fertilidade. É como se o inverno se disfarçasse na primavera - e não é isso que os planos de paisagem na abertura do filme anunciam?
Desde seu primeiro longa-metragem, Les belles manières (1978), Guiguet filma o mistério inefável de um fora-de-campo ameaçador que oculta os perigos de um mundo enigmático, latente, do qual só podemos conhecer alguns traços - o segredo deve permanecer atrás da porta. “Aqui tudo é cheio de mistério...”, diz a camareira do hotel em Faubourg St Martin. “Segredos”, completa o gerente. “Há segredos, então?”, ela se excita. “Em todo lugar, mas não se preocupe”, ele responde calmamente, numa constatação tranqüila da onipresença de tudo aquilo que está fora do nosso alcance e conhecimento.
Como Brisseau e Biette, e ao contrário do maneirismo que era a pulsão estética dominante na época em que começou a filmar, Guiguet possui a precisão e a discrição do estilo clássico. Ele busca os caminhos mais curtos da mise en scène. Mas o equilíbrio rafaelesco assim alcançado não disfarça a cicatriz de uma amputação: alguma coisa assombra a decupagem, perturba a invisibilidade da técnica, algo que ficou forçosamente à margem das cenas, e cujo retorno, quando este se dá, é já sob um estado degenerativo irremediável - como o tiro que vem do fora-de-campo e acaba com o casamento em Faubourg St Martin, ou o incêndio que brota da imagem como se fosse a própria película queimando em úlcera (Les belles manières), ou ainda o câncer que vem à tona após consumir interna e invisivelmente a personagem de Louise Marleau em Le mirage.
Algumas das preferências musicais (Strauss, Tchaikovsky, Verdi) e cinematográficas (Ophüls, Visconti) não escondem uma inclinação de Guiguet pela grandeza operística e pelo pathos romântico. Ainda assim, sua câmera evita todo tipo de arabesco ou de excesso e se baseia no contato direto e simples com as formas vivas do real - os corpos dos atores, a atmosfera dos lugares. A mise en scène capta as relações de força, os desejos, os investimentos libidinais que circulam de uma pessoa a outra, as tensões invisíveis, as correspondências que se mantêm entre os personagens e os cenários.
Guiguet começou filmando os jogos de poder e os antagonismos sociais. A diferença de classes e o desejo sexual que ela reprime, que foram tema de Les belles manières, trouxeram para ele verdadeiros desafios de representação e dramaturgia. Como enquadrar o recalcamento do desejo? “O que é um corpo trabalhador e o que é um corpo burguês no cinema? Como representá-los?”[2] Os signos gestuais e verbais que caracterizam a burguesia sobressaem no filme justamente por conta da presença de Camille (Emmanuel Lemoine), corpo estranho àquele universo e àqueles hábitos - é ele que, em função da diferença que marca no interior do espaço cênico, aguça nossa percepção daqueles signos. Se a trama remete a Douglas Sirk (Tudo o Que o Céu Permite, basicamente), o estilo já faz pensar sobretudo em Mizoguchi (basta lembrar da cena totalmente mizoguchiana do encontro de Camille com sua irmã). Apesar da matéria melodramática e romanesca, em sua parte final o filme descamba numa brutalidade desenfreada que antecipa a violência de L’argent (Bresson, 1983).
O último longa de Guiguet, Les passagers, é um filme coral feito em esquetes que encenam pequenos acontecimentos - em sua maioria, desventuras amorosas - envolvendo os passageiros de um tramway. É uma espécie de La ronde em que os planos-seqüência virtuosos de Ophüls são substituídos pela câmera singela de Guiguet e os giros do carrossel são trocados pelo deslizamento do tram. As imagens filmadas de dentro do tram parecem perguntar: o que afinal apreendemos em nossa passagem pelo mundo? O filme possui uma narradora que fala diretamente com o espectador e comenta os acontecimentos dramáticos. Ela é interpretada por Véronique Silver, que em A Mulher do Lado (Truffaut, 1981) já havia cumprido essa função que na tragédia grega cabia ao coro. Retrato de época ao mesmo tempo melancólico e provocador, Les passagers tece inúmeros comentários sobre a deterioração das relações trabalhistas, interpessoais, amorosas. No final, os atores do filme, assim como outros que ainda não haviam aparecido ou tido destaque, olham para a câmera e repetem os clichês e as palavras de ordem da publicidade. Eles estão vestidos de preto, à frente de uma parede de estúdio também preta. Não resta dúvida: a publicidade é a capa mortuária da civilização.
Em quase trinta anos, Guiguet fez apenas quatro longas e três curtas, sempre mantendo-se fiel a seu gosto pelas coisas diretas, pelas formas simples. Foi um metteur en scène que, como poucos, soube aliar clareza denotativa e lirismo, sensibilidade poética e visão crítica. Seus filmes demonstram uma busca lúcida e escrupulosa pelas belezas terrestres que convivem com as tragédias “naturais” do homem.
Notas:
[1] Cf. Joël Magny, L’épée de Damoclès, Cahiers du Cinéma nº 390, dezembro 1986, p. 52.
[2] Yann Lardeau, Intimités, Cahiers du Cinéma nº 298, março 1979.
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