O MUNDO VIVENTE, Eugène Green, 2003
por Felipe Medeiros
Trata-se dum talento sutil e prodigioso para a apreensão das palavras, o de Eugène Green. A musicalidade, seu raio de imagens e a espontaneidade das falas se compõem como elementos de uma encenação que, no mínimo, renova a validade do pensamento sobre a modernidade do classicismo enunciada por Michel Mourlet em Sobre Uma Arte Ignorada.
Essa encenação se desfaz da intervenção “autoral” do realizador a partir do momento em que esta toma o passo do “fascínio”, da cumplicidade e da liberdade interpretativa do espectador. O olhar deve se conectar ao seu essencial, fundado pela fluidez já natural dos detalhes de cena - cuja verdade tem sentido particular sem prescindir de rubricas, ao mesmo tempo em que foge dos moldes expressionistas do cinema clássico e seu confinamento às significações. O que seu cinema tem de moderno é justamente a capacidade de esvaziar sentidos, guias de cena, estabelecendo o jogo ao concreto das imagens.
O potencial de reflexo do mundo que fixa dá-se pelo não-dito, pela conexão a um movimento sugestivo sobre a paisagem. Não se busca aqui esmiuçar uma atmosfera através da subjetividade das personagens. As palavras não conferem tampouco uma verdade de cena. Na verdade, Green as desvela. Toda a sua encenação trabalha para que elas potencializem a conquista pelo espaço das personagens, bem como seus formigamentos, ímpetos e expressões muito próprias (em seu tatear rumo a uma expressão) mediante as ações das outras personagens. O que elas revelam não são propriamente certezas mas inclinações. Temos a sugestão indiferenciada aos sentimentos exteriores. Sentimentos que no final das contas (la noblesse oblige) recriam a ordem do mundo pela contribuição dos atores e estabelecem, assim, seus recursos de ampliação do meio sem maiores efeitos: enquadramentos e composições de quadro justos para uma melhor apreciação do seu realismo particular, munidos de uma montagem coincidente às piscadas de olho, a partir de um rigoroso formalismo.
O formalismo de Green nada tem a ver com Van Sant, Apichatpong ou qualquer outro “instalador” contemporâneo. A forma em seu cinema não é o vácuo ao redor da estrutura, a cintilância, o halo, mas a indução, a distância reguladora dos processos. Reguladora no sentido de acioná-los a contento, induzir, “levar a”. Sou do partido de que a forma não é tão-somente a atmosfera trabalhada, seu resultado. A atmosfera, quase sempre, tem a ver com a matéria, com o que antecede a forma. Em outras palavras, um trabalho de perscrutação, de aniquilação, de limpeza da estrutura, para se acessá-la apenas no que tem de potencialmente expressivo. Se existe um cineasta que remete a Green, ele seria Eisenstein: uma mesma atenção meticulosa à posição das coisas num universo demiúrgico que ambos transformam numa montagem de sínteses.
O extremo refinamento formal de O Mundo Vivente parece vir de muita pesquisa precedente à rodagem e uma grande atenção para com os atores ainda nos ensaios, que vão desde as orientações sobre as luzes das locações, da tradução à altura do espírito da época que lhe serve de contexto (ou sua imageria popular, ao menos) a uma fascinante atenção às pantomimas e respirações de voz características dos atores em seu estado de desarme longe das câmeras. No mais, um mundo perfeitamente mágico com seus cavaleiros, sua princesa à espera no castelo, suas árvores falantes, seu coelho tornado elefante e suas duas crianças que do nada surgem e presenciam o espírito que se faz vida - à maneira de Green e seu ato de criação.
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