A MARCA DA CORRUPÇÃO
por Felipe Medeiros
(Best Seller). 1987. Hemdale Film Corporation (95 minutos). Produção: Carter DeHaven. Produção executiva: John Daly, Derek Gibson. Roteiro: Larry Cohen, John Flynn (não creditado). Fotografia: Fred Murphy (Consolidated Film Industries). Música: Jay Ferguson. Cenografia: Gene Rudolf (p.d.), Robert Howland (a.d.), Chris Butler (s.d.). Montagem: David Rosenbloom. Elenco: James Woods (Cleve), Brian Dennehy (Dennis Meechum), Victoria Tennant (Roberta Gillian), Allison Balson (Holly Meechum), Paul Shenar (David Madlock), George Coe (Graham), Anne Pitoniak (sra. Foster), Mary Carver (a mãe de Cleve), Sully Boyar (Monks), Kathleen Lloyd (Annie), Harold Tyner (o pai de Cleve), E. Brian Dean (motorista de táxi), Jeffrey Josephson (traficante de pérolas), Edward Blackoff (Thorn), Branscombe Richmond (estivador #1), J. P. Bumstead (Rothman), William Bronder (Foley), Jenny Gago (mulher na lavanderia), Michael Crabtree (homem no bar), Clare Fields (atendente de bar), Claudia Stenke (mulher no bar), David Byrd (Quentin), Loyda Ramos (policial feminina), Obaka Adedunyo (homem no carro), Ted Markland (homem no bar), Phil Hoover (Roud), David Blackwood (senador), David Ursin (o advogado de Meechum), Jay Ingram (Turner), Daniel Trent (Jarvis), Gary Kirk (Jason), Dean Abston (Cabot), David S. Cass Sr. (tira no depositário), Bill R. Mitchell (âncora da TV de El Paso), John Howard Swain (homem no aeroporto), Dennis Acree (guarda-costas #1), Mark Venturini (guarda-costas #2), Larry Holt (guarda-costas #3), Jeff Ramsey (guarda-costas #4), James Winburn (supervisor), Peter Stader (trabalhador do cais), Hank Stone (homem #2), Brian Gaffikin (garçom), Michael White (tira jovem), Martin West (tira maduro), Wally Burr (apresentador de talk show), Arlin Miller (repórter do noticiário), Sands Hall (professora), Sam Baldoni (homem #1), Seymour Cassel (Carter), Sydney Urshan (narcotraficante).
A arte do mais simples
John Flynn veio a falecer em 2007 passando praticamente despercebido pela grande mídia e boa parcela da nossa cinefilia. Para entendermos um pouco da sua importância dentro da história do cinema americano, é necessário primeiramente recuarmos no tempo. Flynn representou o cinema artesanal num instante em que esse cinema já era massacrado por orçamentos módicos e ausência de recursos. Junto de alguns nomes como Larry Cohen e Jack Hill, formou o mais próximo duma frente de resistência que também passou ao largo dos novos regimes surgidos na época, representando a sobrevida do artesanato hollywoodiano.
Cinema de performances, suas composições são linhas salientadas por angulações levemente inclinadas. Observemos por exemplo quando o Major Raines entra no bordel para assassinar os caipiras que destroçaram a sua família em A Outra Face da Violência - a geometria do plano é discretíssima e, no entanto, completamente evidente. As triangulações dos planos de conjunto repartem o tempo e o espaço de maneira que tenhamos como efeito, ao mesmo tempo, a supressão das distâncias entre os objetos - e as personagens - e toda uma tendência inerente à uniformidade do plano fixo.
Esse procedimento permitiu resultados bastante significativos no início de sua carreira (Na Solidão do Desejo, A Outra Face da Violência, A Quadrilha) e até onde teve espaço livre dentro da indústria (A Marca da Corrupção). Desta forma, os planos não se alongam na montagem em momento algum. Vejamos o sentido musical mesmo dos planos da chegada dos soldados em A Outra Face da Violência e o público que os espera. É brutal, cada corte um soco que vai até o esôfago. Em cinco ou seis consecuções, saberemos das seqüelas e do profundo sentimento à margem daqueles soldados que regressam do Vietnã e são recepcionados por uma barulhenta multidão local.
O Negativo
Os filmes de Flynn sinalizam a perda da aura do cinema, sua transformação como sismógrafo da banalidade, do fim do romanesco, dos tempos largos, do desenrolar de uma consciência em direção a si, enfim, do classicismo. Em outras palavras, o fim da consciência formal das mediações necessárias a uma relação (um recuo e uma abordagem) da nossa herança perceptiva. A mise en scène não como um espetáculo, mas uma liturgia. Ela é aquilo que decantou do espetáculo, seu substrato.
Flynn era um pensador dialético do classicismo bem como um pensador do negativo não menos intuitivo e austero. O que é o negativo? É o não-natural. É a “descoberta” das potencialidades do “assimétrico”, do dado à parte, o que vinga persistir na representação sem que, no entanto, exclua sua unidade e correspondência, como por exemplo um cinza ou um verde delicado que se deixa falar em meio à rudeza de uma paisagem de Van Gogh ou Israëls.
A relação do negativo nos arranjos às forças de cena consiste no aprofundamento e seccionamento das potencialidades expressivas e dramáticas dos movimentos do próprio corpo do ator - e não só de uma consciência musical e coordenadora em cena (que já é uma grandeza se conseguida, convém afirmar, mas não é suficiente - eis a modernidade que o cinema clássico [Chaplin, Murnau, Stroheim, Browning] vislumbrou).
Estabelecendo uma cadeia de vínculos intermediários bastante hábeis na apreciação da audiência, pode se dizer que Flynn concretizou tão bem quanto os manequins de Bresson essa busca “pelo mínimo estrito essencial”. É impossível não fugir de imagens como a revelação da traição da esposa do Major Raines enquanto ele lutava na guerra ou do modo desajeitado e lúdico com que James Woods tenta presentear o escritor do seu A Marca da Corrupção até ser abruptamente repelido, convertendo sua admiração também em ira.
Essas são algumas das visões mais fortes da história do cinema americano. Os atores passam por entre três a cinco registros diferentes quase que sem expressão facial em questão de segundos. Eles não desperdiçam uma só nuance, porque no cinema de Flynn (e conseqüentemente no dos grandes encenadores) a consecução da construção das emoções se dá no tempo e na pintura: a confluência entre o máximo de informações num mínimo de elementos.
Das projeções políticas
Mal visto e desdenhado pela pecha reacionária atribuída por apressados, Flynn foi relegado aqui no Brasil praticamente a exibições dubladas e retalhadas em horários ingratos na TV, o que pode resultar (e acredito que resulte) em interpretações tão equivocadas como as que vimos no passado com Fuller, ou na vulgarização de sua relevância a partir do aspecto viril dos seus filmes (como também vimos no próprio Fuller, mas também em Milius, Cohen, Hill, Avildsen).
Longe de reacionário e conservador, vemos pelo contrário um questionador nada complacente de seu país e dos posicionamentos a que toma partido. Flynn, embora homem da direita, não deixa de cortejar a “violência embrionária” e sua rede de corrupções e descaso em relação ao efetivo americano de guerra (Na Solidão do Desejo e A Outra Face da Violência) ou mesmo a corrupção e a truculência da herança econômica dos seus representantes políticos (A Marca da Corrupção). Sua curiosidade por tudo que acontecia nos Estados Unidos possui o melhor do jornalismo, o caráter da assinatura de um verdadeiro cidadão do mundo, que vai além das notícias de praxe pró ou contra determinado assunto. Quem filmou o abandono dos veteranos da guerra do Vietnã em A Outra Face da Violência (até então inédito no cinema americano) certamente esteve entre as testemunhas, soube descrever sua aproximação sentimental e não prescrever ações à queima-roupa numa distância cômoda.
A grande oposição aqui não é só em relação às formas de resistência e modalidades de apropriação do cinema - esta grande vitrine onde a veleidade se lambuza e chafurda sem fazer lambança ou espirrar lama. Mas ainda a um outro regime - ou um originário regime - de representação visual, onde a luz, a sombra, o que se expõe e o que se recusa estabelecem relações de uma complexidade única, particular e política: verdadeira “experiência” da imagem.
O dedo médio
Flynn trabalhava na última brechinha possível de um certo cinema viril e robusto, sério e comprometido com uma coerência formal e dramática. Mas é como se sua visão política fosse tomando a certeza de que todos naquele momento (mais precisamente a partir de A Outra Face da Violência) estivessem soterrados pelo bacanal onírico da era da publicidade trazida pela televisão e outros veículos de massificação e alienação, e daí partisse junto ao credo de O’Neil: quando... a merda atinge os ombros, só resta cantar (ou esperar pelo pior incomodando).
A Marca da Corrupção tem o tom de quem sabe o que lhe espera depois da realização - leia-se aqui imposições ao seu cinema, adaptação às diluições de trama que tanto aprazem as audiências. O filme se inicia com um assalto a banco em que os ladrões carregam máscaras para crianças do presidente Nixon, símbolo da decadência espiritual da América empreendedora, de seus pioneiros e do culto desenfreado à imagem. O que aparentemente se insinuava como um elemento satírico de cunho ligeiro revela-se a primeira face dum dedo médio geral. Flynn se aproxima de temas como a pretensão de se vender uma imagem de bem, de se ficar na história, de se obter glórias, tomando a tela pela ambigüidade e a perda geral da inocência (o cinismo) - numa assombrosa distensão da atmosfera yuppie liberada à época.
O filme ilustra bem uma relação curiosamente oposta entre Flynn e Fuller, que parecem deter afetos e obsessões similares. O primeiro tenta delimitar um objeto, o que vai um pouco, a princípio, na contramão do “transcendentalismo” de Fuller - digamos, um pensador intuitivo de horizonte, e não de objetos, ou não só de objetos. É claro que toda operação de pensar é a rigor transcendental, ela não lida com objetos diretamente, mas com conceitos e mediações, só que há autores que se situam mais na base do cone, digamos, e outros que se interessam pelos cimos, de onde podem vislumbrar a situação, a cadeia genealógica, a gênese estrutural do sentido. E é justamente este diálogo cerrado e intempestivo de Flynn com o jornalismo, a política e o comportamento que traz para a noção de categoria do seu pensamento (em cinema) uma função bem pouco usual: um instrumento hermenêutico agudíssimo, o meio para se fazer uma “boa leitura” do objeto.
Um exemplo: em Fuller, a crítica aos indivíduos que promovem a castração e o raquitismo moral é indissociável da louvação da harmonia e da defenestração de quem a coloca em xeque, ela é um meio de contato também, um meio poroso (mise en scène) por onde a cadeia de uma certa postura e história vai reivindicar sua potência. Mas ambos, como Nietzsche, dão uma função positiva ao trabalho do ressentimento, ao menos ao que se faz ainda uso dele, pois reconhecem que estavam numa época de transição e é com ele que ainda podiam se virar. O martelo sobre o que é oco, não questionado; eles se viram com os restos da intuição sobrada à guerra contra o pensamento estabelecido pelos governos, heranças morais e pela mídia.
Um ato de resistência, esse tipo de cinema? Sim. Inútil, condenado à entropia, como todo ato que nega simplesmente, que se opõe ao seu tempo. A ousadia da resistência está na representação que se situa no seu tempo e, ao esposar as armas do inimigo (veículos de massificação), derrota-o no seu próprio território (Godard, Welles, Fuller, Kubrick, Sganzerla, Buñuel, De Palma, Costa, irmãos Dardenne). Não com resultados mais amplos, mas pequenas e bravas rachaduras, convites a um questionamento maior, quem sabe das gerações futuras.
Do sacrifício
Uma coisa que é enfatizada aqui, e que percorre de certa forma toda a obra de Flynn, é a noção de sacrifício. Ela fundamenta uma interpretação muito peculiar de uma pulsão indispensável à constituição de uma comunidade, de uma cadeia de relações homogênea.
A homogeneidade repousa na “verdade” estabelecida sobre uma exclusão, sobre uma ausência: o sacrificado cujo sangue enodoa marcos fundadores de qualquer cosmo, de toda comunidade. Este é um mito comum a várias culturas, mas Flynn, na medida em que está interessado na leitura (ou desvelamento) dos mecanismos comuns ao indivíduo e sua história/cultura, faz com que uma instituição “objetiva” de toda ordem cultural se disfarce de um dado biológico, natural. Assim, os protagonistas (em A Marca da Corrupção temos James Woods) cumprem não apenas o que o meio exige, mas desejam se sacrificar, uma oferenda à ordem contra a ordem.
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