LES PASSAGERS
por Miguel Marías


(Les passagers). 1999. Little Bear/Lancelot Films/Centre National de la Cinématographie/Canal+/La Communauté Urbaine de Strasbourg (93 minutos). Produção: Frédéric Bourboulon. Produção Little Bear: Agnès Le Pont, Florence Dard. Produção Lancelot Films: Patricia Guyotte, Virginie Decarra, Corinne Cerou, Julien Schwartz, Sébastien Hestin. Co-produção e produção executiva: Christian Tison. Roteiro: Jean-Claude Guiguet, Haydée Caillot (o monólogo de Isabelle é extraído do espetáculo “C’était bien”, escrito e interpretado por Gwénaëlle Simon). Fotografia: Philippe Bottiglione (Eastmancolor). Música: P. I. Tchaikovsky, Beethoven, Claude Valery, Berlioz, Johann Sebastian Bach, J. Haydn, Patachou, Couperin, Léo Ferré. Cenografia: Laurent Gantès. Montagem: Khadicha Bariha. Elenco: Fabienne Babe (Anna), Philippe Garziano (Pierre), Bruno Putzulu (David), Stéphane Rideau (Marco), Gwénaëlle Simon (Isabelle), Véronique Silver (a narradora), Jean-Christophe Bouvet (o viajante), Marie-Christine Rousseau (Christine), Laurent Aduso (o doente), Thomas Badek (o “Golden Boy” e o médico), Emmanuel Bolève (o jovem), Jean-Paul Bordes (o padre), Serge Bozon (um viajante), Sébastien Charles (Raoul), Marie-Christine Damiens (Marie), Charlotte de Foras (o podólogo), Thierry de Froidecourt (Michel), Roséliane Goldstein (uma mulher), Isabelle Gruault (Lise), Sonia Hell (viajante com bolsa), Jean-Philippe Labadie (senhor L.), Aline Lecomte (a velha Carne), Cécile Mazan (uma viajante), Frédéric Merlo (o piloto), Françoise Sage (a enfermeira e a casada), Fabrice Barbaro (litanias), Yasmine Belmadi (litanias), Eugène Berthier (litanias), Antoine Chain (litanias), Serge Feuillard (litanias), Jean-Claude Moireau (litanias), Chloé Mons (litanias), Monic Parelle (litanias), Bruno Masure (a voz), Rebecca Simsolo (pequena cigana no bonde).

Não é nada habitual que um diretor progrida e amadureça de obra em obra, superando a anterior cada vez que logra rodar uma nova. Observo ocorrer, sobretudo, quando entre elas há um intervalo temporal notável, quase nunca desejado. E faz-se menos do que se gostaria, poucas no total. Aqueles que são verdadeiramente cineastas também o são quando não conseguem rodar, e atuam, observam e pensam como tais. Os filmes que não conseguiram filmar são soterrados, como numa elipse, permanecendo invisíveis, mas deixam um rastro, fazem parte do caminho recorrido, e se incorporam ao fundo daqueles finalmente realizados, sendo de algum modo seu fundamento, seus alicerces, o fantasma que os habita.

O caso de Jean-Claude Guiguet (1948-2005) se agrava por sua morte prematura, que reduz o peso quantitativo e as dimensões, o raio de ação, a cobertura de sua obra, que poderia ser mais difundida, mas é para mim um dos exemplos mais claros de progresso (como a de Víctor Erice) das últimas décadas. Especialmente seus dois últimos filmes, que nem são os mais famosos (de um cineasta hoje esquecido, se não escandalosamente desconhecido) nem os que tiveram mais êxito (sempre relativo e quase estritamente francês) em seu lançamento, talvez superados nisso pelos dois primeiros: simplesmente, porque eram outros tempos, de público mais aberto e tolerante, de mais interesse geral pelo cinema e mais curiosidade pelos desconhecidos e recém-chegados, de crítica menos conformista e reacionária. Devo dizer que minha valorização é totalmente subjetiva, não poderia ser “objetiva” e minha; porém é a única a que posso contribuir e transmitir com fidelidade (se é que acerto com as palavras e a estrutura adequadas, o que não é nada fácil).

Os dois primeiros longas de Guiguet são, vale constar, muito bons; bastante superior, a meu entender, o segundo, Faubourg St Martin (1986), por ser mais audaz e homogeneamente melodramático que o primeiro, Les belles manières (1978), menos claro e controlado, e ainda mais pobre. Após os oito anos de espera que indicam estas datas, seis mais separam o segundo do terceiro e outros seis do que haveria de ser o último, porém entre Le mirage (1992) e Les passagers (1999) talvez haja mais continuidade. A semelhança inicial responde a um cinema mais outonal/invernal, noturno, úmido, inóspito, rodado em estúdio, predominantemente de interiores, apoiado em convenções melodramáticas, deliberada e até desafiadoramente “antiquado”. Os não familiarizados com o cinema de Jean Grémillon talvez recordem o de Marcel Carné. A semelhança final é luminosa, solar, de exteriores e interiores naturais, com uma presença forte da paisagem (campestre ou urbana), e todavia mais musical.

Todos os seus filmes tratam, no fundo, da enfermidade e da morte, e se esforçam, eu diria, para não serem mórbidos e entreguistas, nem fecharem os olhos à realidade nem desterrarem da memória o passado ou o futuro, porque também falam do amor em todas as suas manifestações. Os dois últimos são mais velozes e fluidos (é curioso que tanto seus detratores como o próprio diretor censurassem a lentidão de Le mirage, quando na realidade nem o ritmo é lento - apenas pausado, evitando-se a acumulação desordenada - nem existe qualquer vazio, simplesmente a ação é escassa e a violência física nula) e de maior intensidade dramática como se não bastasse, o que as tornam consideravelmente mais emocionantes (sobretudo Le mirage, que poderia ser classificada de tragédia sublime, como os melhores melodramas de Sirk, Ophüls e Minnelli).

O próprio Guiguet, visivelmente doente, comenta lúcida e modestamente seus longas em entrevistas inclusas em cada um dos DVDs editados pela K Films. Ele mesmo identifica como “um filme louco” o último que realizou, colocando certeiramente na ânsia de liberdade a sua necessidade, e insiste que para que um filme baseado em fragmentos não caísse na dispersão teve que construir uma dupla armação. Não se pode resumir melhor a estrutura móvel e digressiva montada sobre os trilhos do bonde com a ajuda de uma das passageiras regulares, que atua como narradora, comentando e enlaçando uns personagens aos outros, em sua maioria, desconhecidos os quais vemos quase diariamente, ao lado de quem fazemos longos percursos em transportes coletivos e sobre quem tendemos a imaginar histórias, a observar aparentes mudanças de humor ou de aspecto. Através desse caleidoscópio de observações e ocasionais acompanhamentos de alguns deles, que às vezes nos conduzem a outros ou revelam seus segredos, seu passado ou suas aspirações ou temores, Guiguet nos oferece, com a despreocupada falta de inibição apresentada por Buñuel em algumas de suas últimas obras ou por Renoir na última, Le petit théâtre de Jean Renoir (1969), sua visão de mundo em 1998, uma visão que poucos expuseram tão francamente até então e que hoje pode parecer profética, já que nos doze anos transcorridos a denúncia do filme se fez mais evidente, tendo tudo piorado nas direções apontadas.

Talvez o mais notável e extraordinário de Les passagers seja precisamente o não deixar-se derrotar pelas tendências alarmantes que detecta, e que a elas opõe sua confiança na força residual, ainda que possivelmente diminuta e minoritária, da paixão, da generosidade, da capacidade de elevar-se. Daí o seu encerramento, depois de tantos passeios pela enfermidade e morte, pela solidão e o abandono, pelo isolamento e a incomunicação, pelos hospitais e os cemitérios, encadeado ao avanço incontido do bonde com a subida ao cume das montanhas d’um teleférico, antes de fechar em negro, prematuramente, uma das grandes obras cinematográficas dos anos 90.

(Traduzido por Felipe Medeiros)


 

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