A PRIMAVERA DO MUNDO
por Frédéric Majour


(Le mirage). 1992. Molécule/Les Films Stock International/CCC-Filmkunst/Artemis/Centre National de la Cinématographie/Eurimages/Téléfilm Canada/Société Générale des Industries Culturelles du Québec (100 minutos). Produção: Henry Lange, Richard Sadler, Arthur Brauner, Raphaël Blanc. Produção executiva: Ronald Brault. Adaptação e roteiro: Jean-Claude Guiguet, com a participação de Sylvie Luneau, baseado na novela Die Betrogene, de Thomas Mann. Fotografia: Alain Levent (Eastmancolor). Música: Richard Strauss, Camille Saint-Saëns, Robert Schumann, Wolfgang Amadeus Mozart, Georges Bizet, Ponchielli, Sergio Tomassi. Cenografia: Gérard Estéro, Fernando de Brito, Xavier de Foras. Montagem: Jacques Gagné. Elenco: Louise Marleau (Maria Tümmler), Fabienne Babe (Anna Tümmler), Véronique Silver (Jeanne), Marco Hofschneider (Edouard Tümmler), Christopher Scarbeck (Ken Keaton), Dominique Briand, Jean-Frédéric Ducasse, Charles Siegel, Monique Perrilland, Thérèse Joly-Caran, Charles Elco, Emmanuel Gripon, Aline Pignier, Odette Lereboulet, Fanny Rousseau, Françoise Sage, Robert Favre, Charlotte de Foras, Alix de Foras, Inès Gaulis.

A montanha, com seus picos cobertos de neve, o cinza do céu. Nenhuma dúvida: estamos no inverno. Mas no vale já é primavera. Le mirage começa com essa imagem impossível de uma natureza ao mesmo tempo invernal e germinal, à maneira desses grãos de pólen - das flores de álamo, ensina-nos um pouco mais tarde a doce Fabienne Babe, atriz maravilhosa e decididamente pouco empregada - vagando livremente com o vento como se fossem flocos de neve, o que evoca ao mesmo tempo as famosas manine do Amarcord felliniano e a própria idéia da morte, de uma morte por vir, talvez até mesmo já presente, sob os tratos sorridentes de uma primavera muito precoce. Idéia de resto confirmada pela música que acompanha esses primeiros planos (e que retornará regularmente, verdadeiro leitmotiv, até o final): o último dos quatro Lieder - Im Abendrot, literalmente “no pôr-do-sol” - que Richard Strauss compôs ao fim de sua vida, adeus sereno não somente à vida, mas também à música, através deste retorno ao lied como a forma mais pura, a mais cândida (uma mulher, uma voz), da música, longe dos excessos tenebrosos que fizeram do romantismo alemão a base ideológica dos horrores que sabemos. De partida a paisagem que Jean-Claude Guiguet nos dá a ver seria uma miragem, como também é o sentimento experimentado pela heroína (Louise Marleau, no seu melhor papel, decididamente) de tornar-se novamente mulher no dia dos seus cinqüenta anos, por ter tomado por menstruações (milagre da natureza) o que, na verdade, era o sangramento de um câncer. O próprio cineasta explicou: Le mirage nasceu da imagem de sua própria mãe, que repentinamente lhe pareceu rejuvenescida pouco antes de morrer. Mas rodando seu filme uma dezena de anos mais tarde, ele teve que levar em conta uma outra realidade, a da AIDS - ainda desconhecida no início dos anos oitenta -, que o fez perder no interstício muitos amigos (o filme é dedicado a Jacques Davila).

Pode-se ver assim a viagem ao lago Léman, no final do filme, como um diálogo com os mortos, ou mais propriamente fantasmas, semelhantemente aos passageiros do bonde que transitarão pelo seu último longa-metragem. Esse lago é uma miragem, a verdadeira miragem de Le mirage. À heroína que diz amá-lo acima de tudo, o filho responde que ela é vítima das aparências, que esse lago perdeu sua transparência, que não é nada mais que uma ilusão: “Há vinte anos uma alga microscópica prolifera, a oscillatoria rubescens [...], o que significa ‘o sangue dos Burgúndios’, em memória a Carlos o Temerário, pois estas algas coloram a água de vermelho”. Desta vermelhidão não vemos nada, evidentemente, por ser muito realista, ao contrário dos reflexos vermelhos que iluminavam as águas do canal em Faubourg St Martin (1986). Aqui tudo é incorporado em uma brancura difusa, que suscita ainda mais o invisível. Pensa-se em Grémillon, é claro. Mas se nenhuma vermelhidão aparece na superfície do lago (inútil mostrá-la, pois já se falou a respeito - assim, também, não vemos a imagem do crepúsculo, pois a música de Strauss evoca-a suficientemente), o vermelho não permanece completamente ausente do filme, aparecendo, por exemplo, sob a forma de uma mancha de sangue sobre uma toalha branca, conseqüência de um vidro quebrado, ou então de um batom nos lábios cuja aplicação, como um punhal, parece acelerar a morte da heroína. Há sempre a presença do fantástico nos filmes de Guiguet, algo reconhecido pelo próprio cineasta, tardiamente, uma vez o filme terminado, quando se tornou seu próprio espectador, como se precisasse tomar uma certa distância da obra para que surgissem enfim todas as coisas que havia feito, inconscientemente. Certamente, o fantástico em Guiguet nada tem em comum com o que se define habitualmente como fantástico. Ninguém atravessa espelhos e nenhuma pomba ocupa metaforicamente a tela. Contudo, existe profundamente esse fantástico - ao mesmo tempo discreto e obstinado, à imagem do autor -, imiscuindo-se à matéria de seus filmes, indo até os recantos de uma paisagem, uma maneira de finalmente selar o poder transfigurador que reivindicou o artista para o filme. Porque sua obra, por mais que seja lírica, não se contenta em celebrar a beleza do mundo, ela percebe também os aspectos mortais, em uma espécie de hiper-consciência que é aquela da melancolia, pressentindo a morte no coração daquilo que vive. A partir desse duplo movimento, contemplativo e melancólico, feito tanto de arrebatamento quanto de crueldade, o cinema de Guiguet escapa de todo panteísmo beato como também das armadilhas do excesso romântico. Suas paisagens parecem iluminadas do interior, cintilam um brilho secreto que as transforma, mundos incertos, assombrados pelas memórias daqueles que o cineasta amou.

Aqui, é na luz vaporosa de um lago que ocorre a metamorfose. Como? Pela música, mais exatamente a musicalidade que, em Guiguet (como em Thomas Mann, cujo último romance, Die Betrogene, inspirou o filme), dá à paisagem uma suave sensação de inquietude. Na cena do barco, Fabienne Babe, que interpreta uma artista - ela é pintora e, como tal, pode ser considerada a porta-voz, se não o duplo, do cineasta -, lê ao seu jovem irmão de origem alemã uma passagem da Gaia Ciência de Nietzsche: “Como é que os ventos quentes e chuvosos trouxeram com eles o gosto da música?”. Em seguida ela olha, entristecida e inquieta, sua mãe, encostada à grade, cantarolando uma melodia ao lado do jovem americano - personagem demasiadamente perfeito para não ser também uma miragem[1] - que lhe intoxica novamente de amor. É precisamente o que Nietzsche escreve em seguida no trecho em questão (como já foi filmado, inútil que seja dito), que esses ventos são também aqueles “que dão às mulheres os pensamentos amorosos”. E o cineasta então nos mostra, no mesmo plano brumado de branco, o lago e as montanhas (que apenas o barco, atravessando o plano, nos permite distinguir), e uma representação possível dos pensamentos amorosos de uma mulher. Um registro bastante próximo, no fim das contas, do sfumato, esse equivalente atmosférico do “sorriso leonardiano”, a respeito do qual Barthes dizia, no seu curso sobre o Neutro, que é a figura do “êxtase, do enigma, a suave radiância do bem soberano”. O que equivale dizer que aqui paisagem e face se confundem. Isso confirma o último plano do filme, o mais belo de toda a obra guiguetiana (palavras do próprio cineasta), que vê a câmera retirar-se do rosto asfixiado da mãe, capturando no caminho o da filha, tomado pela dor, e atravessar a janela deixada aberta[2] para apreender, pela última vez, as belezas encantadoras do mundo.

Notas:

[1] O personagem tem, apesar do seu ar angelical, algo de diabólico que lembra Hélène Surgère em Les belles manières (1978), provocando à sua maneira a degradação do herói, ou ainda Patachou, desligando ao final de Faubourg todas as luzes, como se ela tivesse sido a grande ordenadora do destino dos outros.

[2] Ao contrário do final, também admirável, de La visiteuse (1981), onde Françoise Fabian permanecia perdida nas profundezas de uma tristeza terrível.

(Vertigo nº 31, setembro 2007. Traduzido por Bruno Andrade)


 

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