VÍCIO FRENÉTICO, Werner Herzog, 2009
por José Oliveira


Ainda há pouco vimos na Cinemateca um antigo Dwan, um antigo Frank Lloyd, um antigo Vidor. O que descobrimos é que o cinema não é a arte do movimento - o movimento é sua técnica -, é a arte do movimento verdadeiro. O que o cinema redescobriu foram os gestos dos homens.

Jacques Serguine

Já nada acontece aos seres humanos, é à imagem que acontece tudo.

Serge Daney, sobre a televisão

Os primeiros planos de The Bad Lieutenant: Port of Call - New Orleans mostram logo a fibra e a contundência com que Werner Herzog vai tratar a démarche em direção aos abismos de um agente da lei em iminente auto-destruição: uma serpente que percorre furiosamente a águas, ziguezagueando, analisando, mas sem espaço para dúvidas, sem olhar para trás. O que se seguirá será sempre ainda mais lacônico. Mais três minutos de filme, ou nem isso, e Nicolas Cage, o polícia que desde o princípio não parece conhecer a palavra ética, resolve saltar para as águas num suposto heroísmo que parece espantar todos. Herzog corta e já estamos num hospital, vamos saber que o polícia ficará com dores lombares, terríveis dores lombares, crônicas. O médico também solta outra fase chave, diz-lhe que ele poderá continuar a trabalhar o tempo inteiro. Diz-lhe ainda que para o resto da vida dele os medicamentos terão que o acompanhar. Repare-se como a cena é filmada, sem cortes: plano de conjunto entre a radiografia das costas do policia e o rosto do médico, afastamento para um plano de conjunto dos dois, numa distância que logo nos permite sentir o mal-estar imanente; depois, a câmera vai-se aproximando, aproximando, ainda enquadra os dois de maneira mais chegada, mas prontamente vai deixando tudo de fora em direção ao rosto do policia, e ficamos lá uns segundos, uns segundos que são sentidos de uma forma brutal - aquele homem já é outro completamente diferente do da cena inicial, o quadro estremece. Algo se quebrou, irremediavelmente, percebemos. Ainda estamos com o rosto e já ouvimos uma ovação em cima dele; cena seguinte e o polícia está a ser condecorado. O corpo dele, bem se vê, já se mexe de maneira diferente e a forma como esse movimento é filmado, em fricção e de câmera na mão, já sugere um outro nível de mal-estar. Intertítulo: “seis meses depois”. O polícia chega a uma cena de crime, das mãos ao nariz e ficamos logo a saber que o sargento promovido a tenente se deixou perder pelas drogas. Os modos não enganam, a força do hábito já está adquirida. Segue-se o ritual por entre os destroços e nota-se que a curvatura lombar vai de mal a pior. O tenente parece transportar um peso qualquer, ou então uma culpa, um castigo ou uma premonição. Vamos vendo que o tenente não quer ser “normal” - e não será só por causa das dores - sabe-se que os que querem ser “normais” ou “iguais aos outros” é que estão loucos. Ali não há sombra de Deus e ele permite-se a tudo, vai contra as leis e as ordens e mesmo assim volta a ser promovido, terão que lhe chamar capitão. Mais do que pessimismo perante os mecanismos dos sistemas e da sociedade, o que Herzog põe em centro é a triste verdade dos nossos dias, não há que enganar.

Deixemo-nos de descrições, tão pouco tempo de filme e tanto que já aconteceu, uma notável economia, a todos os níveis - narrativo (sem truques, sem surpresas, sem dispersões), na forma como a câmera enfrenta os homens e as mulheres e tudo o que lhe aparece, de frente, sem medos e sem maneirismos, olhos nos olhos, à antiga, a um mesmo tempo impassível e certa de ir até ao fundo das coisas. Uma secura que já pouquíssimos se lembram de ousar, parece um policial de Aldrich ou coisa análoga de um Siegel, right to the point. Uma mise en scène da evidência pura que sutilmente e nesse tempo justo que dura cada acontecimento sabe retirar o máximo de sentido e de sentimentos dos ambientes e dos seres. Depois, o percurso daquele homem, sempre em perda e descontrole. A partir da cena da farmácia, furacão acossado em busca do remédio para o mal, vai levar e arrastar tudo e todos consigo, numa espiral tortuosa e imprevisível pelos vislumbres dos infernos. Uma puta que é bela e que é tão viciada como ele - sim, impossível adjetivar o plano cristalino dela sentada nas escadas; ou o sorriso na cabana quando o tenente lhe revela os sonhos e memórias da infância, ou a oferta da colher… revelam uma ternura, uma compreensão e uma pacificação, que só não surpreende grandemente, nem são momentos assim tão à parte, pois todo o filme manifesta esse grandiloqüente interesse pelas sensibilidades próprias de cada um. Herzog jamais trata alguém com desdém - ou um colega de profissão, ou gente comum que teve a má sorte de passar por ele numa das suas crises, etc. Desconcertante, trágico e logo a resvalar para uma espécie de absurdo à beira do burlesco, Herzog faz-nos ver como os opostos se tocam, faz-nos notar o teatro e as máscaras da vida através de uma libertação e de uma alienação das pretensões mais mesquinhas, falsas e corriqueiras do humano. É fazer trinta por uma linha, transgredir e violar, mas também ter pena de uma mãe e mover mundos e fundos para repor uma certa justiça. O impressionante é que, ao contrário dos realizadores medíocres ou bem intencionados, nunca por nunca existe qualquer gesto de superioridade em relação à cena, nunca vemos qualquer rasgo de “gênio” ou “grandes momentos de cinema”, de assinatura estilística por parte do alemão.

Sendo um filme envolto pelo narcótico e de algum modo pela distorção adjacente, nunca se deixa tomar pelos maneirismos ou pela retórica visual habitual desses tipos de empresas, permanece sempre um filme realista, clássico, claro, duro, até a essa armadilha o cineasta soube escapar totalmente. E as alucinações, os bichos, a delirante cena do tiroteio? Tratadas de modo tão ordinário e materialista como as certezas e os métodos com que age o protagonista.

Mesmo a luz, o tom cromático geral, é coisa urbana e camaleônica, quero dizer que aposto que não se foi para lá com ideias pré-concebidas ou psicologias da cor, e sim que cada lugar ditou a sua própria ambiência, cor, cheiro, pulsão, toda uma descoberta a ser feita.

Voltando à referida contundência e ao pulso firme com que o olhar é aplicado, quase diríamos estar mais do lado do funcionalismo: tudo parece ser funcional, os cortes e os raros planos de corte, a música que não pretende insuflar nem criar clímaxes, os planos de pormenor - mas de um funcionalismo que mais não quer do que redescobrir os gestos, os movimentos, esse incomensurável cosmos de sentimentos que um olhar ou um gesto ou um suspiro pode conter - do que qualquer marca de autor, e, no entanto, esse é o gênio e a grandeza de Herzog. Desaparecem os efeitos, fica a humanidade.


 

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