UM ROSTO NA NOITE, Luchino Visconti, 1957
por Jean-Claude Guiguet
Havia quinze anos desde que eu vira Um Rosto na Noite num domingo de manhã num cinema da cidade onde nós vivíamos. Meus dois irmãos estavam comigo e se agitavam muito nos seus assentos. Não era o tipo de história que os entusiasmava. A severidade paternal não vetava o cinema, mas ela era inviolável em um ponto: ou nós víamos os filmes juntos ou nada. Sucessivamente, cada um escolhia o filme da semana. Eu escolhi Um Rosto na Noite após os filmes de guerra das sessões anteriores. Tormenta Sob os Mares, um deles, agradou-me muito. Porém, depois de Um Rosto na Noite eu estive certo de ter visto o mais belo filme da minha vida. O cinema deixava de ser para mim um passatempo divertido que consistia em colar nas páginas de um fichário as fotos das vedetes que eu admirava. Uma pequena desordem fora produzida no meu planeta: alguma coisa de sutil e de sinuosa percorreu todo o meu sistema nervoso e fez com que eu achasse que minha existência tão monótona seria de vez modificada sem que eu soubesse de certo no quê.
Eu nunca revi esse filme, mas não esqueci nada. Tudo está intacto na minha memória e eu lembro antes de tudo da emoção, para mim inédita, provocada por uma das primeiras cenas dele. Mastroianni conhece na noite Maria Schell e a acompanha até a casa dela. Assim que ele some no canto da rua, a moça reaparece. Essa irresistível curiosidade noturna me siderou. Que promessa de felicidade ou de prazer interdito poderia mover essa estranha figura feminina contra as sombras de uma cidade fora do tempo, sem nome, mergulhada numa densa neblina? Mistério e fascinação. Hoje eu acredito ter descoberto um pouco da resposta...
E eu fiquei maravilhado pelo atelier da avó e sua decoração de tapetes pendurados nas paredes. Desde aquele dia eu amo tapetes, mas apenas se eles forem suspensos como em Um Rosto na Noite. Como esquecer a presilha que faz Maria Schell prisioneira da sua avó? E a extraordinária escalada aos céus do amor na seqüência da escada conduzindo ao camarote da ópera quando Jean Marais leva Maria Schell e sua avó a uma representação do Barbeiro de Sevilha? E a banda sonora tão inventiva, mistura de rock’n’roll e Rossini a exemplo da vida sonhada, arruinada pela trivialidade do cotidiano. Os olhares também, sobretudo os olhos imensos de Clara Calamai, aumentados pela ferida indescritível de um impossível amor. Nós estamos longe da receita de imagens recompostas dos “grandes filmes da década”, mas no coração incandescente do cinema de poesia quando ele atinge a grandeza viva que deve ser a sua.
(Pariscope, fevereiro 1990)
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