A OUTRA, Woody Allen, 1988
por Jean-Claude Guiguet
No final das contas, a maior qualidade de Woody Allen é provavelmente a humildade. Ele é um dos mais famosos diretores americanos, um cineasta admirado no mundo inteiro, um desses criadores cujo lançamento de cada filme é considerado como um evento maior da vida cultural... E no entanto, é evidente que esta celebridade fica, para Woody Allen, como um fenômeno alheio à sua vida, às suas preocupações de cineasta atento ao seu trabalho ou aos motivos da sua inspiração. Esta fama não parece o afetar e, de qualquer maneira, não ia alterar qualquer coisa no decurso da sua existência, nem sequer qualquer coisa dessa idéia singular que se faz do cinema. A força daquele homem está nessa indiferença que manifesta em relação às vaidades do mundo. Ele volta a filmar quando quer, onde quer e o que quer. Sobretudo, ele não procura tirar proveito do poder considerável que uma notoriedade como a sua o pode proporcionar.
O que é admirável no filme A Outra é certamente a humildade do cineasta frente ao seu tema, humildade duplicada por uma modéstia que surpreende em todos os níveis do projeto. Alguém tem idéia da coragem necessária à filmagem de um filme tão intimista como este? Nenhuma estrela nos créditos. Um tema absolutamente banal: uma mulher faz o balanço da sua vida, por volta dos cinqüenta anos. Uma decoração que se distingue pela sua pobreza: um estúdio vazio, um quarto, um fragmento de rua deserta, o canto mais retirado de um restaurante. Todos esses nadas, essa ausência de brilho, esse minimalismo, compõem um filme rigoroso e de uma densidade que impressiona sem se fazer notar. No inicio, a convenção do meio social descrito, suas figuras conhecidas e seus tiques de linguagem, irritam um pouco. Permanecemos retraídos desse ritual de sociedade nova-iorquina, que já serviu muito ao cinema de Woody Allen. Mas, rapidamente, a concisão de um traço, a exata duração de uma cena - Woody Allen sempre sabe pegar no tempo que passa o tempo que precisamos -, o perfeito domínio dos fortíssimos como aquele dos momentos nos quais o fio narrativo vagabundeia, toda essa ciência invisível, essa inteligência das situações, essa emoção que surge sem esforço, sem ênfase, tudo isso força a admiração e deixa um sentimento de desembaraço e de plenitude que persiste duravelmente após o fim do filme.
Nos perguntamos por quais sortilégios o autor sucede em nos seduzir. Nós que não tínhamos nenhum desejo de segui-lo mais uma vez, na aventura, eis que estamos comendo na sua mão, a tal ponto de querer mais! Evidentemente, a arte é aqui considerável. A humildade tem seu reverso: a discrição, o retraimento são talvez qualidades invisíveis, mas não são negativas. Elas agem subterraneamente como filtros mágicos. Nenhum efeito gritante de mise en scène neste filme. Mais uma vez é o triunfo da pobreza, mas não da indigência. Se o plano fixo reina em A Outra, não é por invalidez, nem por preguiça... Apenas aqui ou lá, um movimento de recorte ou uma leve panorâmica, descobrindo no fim de uma cena, o detalhe ainda despercebido. Essa imobilidade é garantia do mal-estar, do medo visceral que desfazem a aparência artificial das personagens fixadas, uma vez por todas, num equilíbrio de pura fachada. Essa imobilidade é a mascara da mentira que dissimula uma verdade insuportável de se olhar e de se viver. Toda arte discreta de Woody Allen consiste em anestesiar as defesas imunitárias, adquiridas no grande jogo social do simulacro, para melhor levar o ferro na ferida no momento oportuno. É aquele momento que determina o estilo, o estilo pleno do cineasta, com seus abruptos sobressaltos e suas acelerações fulminantes - porque surgindo inopinadamente num quadro de um mar imóvel -, como a perseguição de Gena Rowlands seguindo uma Mia Farrow inacessível e volátil como a verdade. Esta verdade que é o objeto do filme e a busca da própria heroína. “Você mente a si mesmo”, diz Gena Rowlands para um dos seus interlocutores. Sem dúvida, essa observação, antes de mais nada, valia para si mesma. É isso que o filme coloca em cena, em situação, em jogo. Um jogo da verdade, absolutamente fascinante pela dose de audácia e de despudor que, naturalmente, Woody Allen consegue insinuar, numa harmonia monocrômica de uma luz de outono, que confere ao conjunto uma tonalidade crepuscular intensa, mas jamais desesperada.
(Études, maio 1989)
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