MORTE EM VENEZA, Luchino Visconti, 1971
por Jean-Claude Guiguet
Com Os Deuses Malditos, Visconti não só indicou, através da seqüência dos funerais do patriarca, a presença de um personagem que não hesita em arriscar um olhar atrás da morte, - Martin, olhando para a neta atrás do caixão do seu avô, - ele vai ainda mais longe, fazendo voltar dentre os vivos um personagem que já está morto. Se olharmos atentos à última seqüência de Os Deuses Malditos, descobrimos uma chave essencial à compreensão do personagem de Aschenbach de Morte em Veneza. Se esta última seqüência for só uma paródia de casamento, ela é sobretudo para a noiva representada por Ingrid Thulin, uma paródia da sua própria morte. Melhor: ela é uma paródia de casamento vista pelo lado da morte, na seqüência que nos abre a porta do seu quarto.
Após a injeção que o médico lhe administra, inteiramente vestida de branco, deitada na cama, onde não se observa nenhum rastro de cor - (os lençóis-mortalhas ocupando quase toda a superfície da tela) - seu rosto se inclina lentamente como se se tratasse da última fase de sua agonia. Uma dúvida subsiste? Visconti abaixa o olho da câmera que desliza ao longo do corpo para vir espiar a cavidade abdominal que sobe, desce, sobe novamente para descer finalmente até uma completa imobilidade. Fomos as testemunhas visuais do último sopro desta mulher, agora inerte na sua cama.
Entendemos, desde então, o estupor que cria a chegada de Sophie, na última seqüência do filme. A morte toma o rosto de Ingrid Thulin que Visconti tirou, verdadeiramente, da sua cama fúnebre, como se desse uma volta sobre a terra. Nunca esqueceremos o espetáculo dessa exumação, a visão desta mulher pálida e sem brilho, com os olhos cheios de sangue, com dentes amarelos, esta mulher congelada, num vestido de seda desbotado, já recoberta pela poeira do túmulo, carregando no seu peito uma rosa murcha, senão artificial, com as flores mortuárias. Depois da assinatura dos atos matrimoniais, Martin oferece champanhe aos convidados; sua mãe, fisiologicamente destruída, é a única a não beber. Ela imita irrisoriamente o gesto dos convivas, levando a taça até seus lábios, que ficam serrados; vai e vem entre os convidados, numa decoração tomada por tecidos pretos, na qual candelabros estão sobre mesas recobertas de tapeçarias, lembrando os enfeites que cercam comumente os catafalcos, e se ela agradece então as pessoas presentes por terem vindo à cerimônia, é menos a do seu casamento ao qual ela faz alusão, que a de seus funerais.
Todo criador chega um dia à beira deste mistério que é a morte. Chegando a este ponto extremo, ele faz um difícil, esgotante e, sobretudo, solitário combate. São, geralmente, as obras deste período que ficam mais tempo incompreendidas, pois o público, inclusive os especialistas, está raramente disposto a olhar a morte de frente. Quando Marlene Dietrich, no final de Dishonored, desafia a estupidez dos homens, retificando uma última vez sua beleza antes de ser fuzilada, o riso de vários espectadores é, talvez, a única possibilidade de recuo frente ao abismo que Josef von Sternberg acaba de fazer surgir aos seus olhos.
As reações suscitadas por Morte em Veneza são reveladoras de um mal-estar que as críticas da acusação conseguem dissimular melhor que os louvores dirigidos à obra. Já na época do Leopardo a homenagem dirigida à beleza do filme era um meio de se subtrair às fadigas que teria suscitado o esforço rumo ao seu conhecimento. Aqui a preguiça é um refúgio sedutor, tornando a admiração excessiva o esconderijo dos espectadores frívolos e superficiais. No caso de Morte em Veneza, restringimo-nos demais a celebrar o brilho do espetáculo aparente, para não questionar as motivações de tal unanimidade. Não seria esta uma forma medíocre de assistir o filme, colocando entre a tela e o olho um certo número de elementos convencionais ou anedóticos que interpretaram o papel de um divertimento nos bastidores, como um tipo de instinto que teria ordenado a desviar os olhos da cena principal? Pois, enfim, comparar os méritos respectivos do livro e do filme e polemizar até perder o fôlego para saber se Aschenbach foi o retrato de Mahler ou não, é absolutamente desprovido de qualquer tipo de interesse. Então? Talvez fosse preciso tranqüilizar-nos, exercendo nosso espírito crítico sobre detalhes fúteis. A menos que não tivemos a força de abrir os olhos para a visão mais aterrorizante que um cineasta conheceu até hoje, não somente da morte, mas, sobretudo, da decomposição que ela ocasiona.
Morrer é nada. Como diz em algum lugar Tolstoi: quando a vida se apaga, é a morte que se distancia. A visão do filme de Visconti assusta na medida em que a morte, depois que a vida se retira, instala-se na nossa frente ao invés de se distanciar.
Imaginamos que a noite com a qual se abre a primeira cena seja aquela que segue a morte física de Aschenbach. Impossível? Melhor dizer que é impossível que não seja assim. Tudo o indica, a começar pela banda sonora que acompanha essa primeira cena e que abre o caminho ao Adagietto de Mahler, que é a expressão de uma “passagem”, na Quinta Sinfonia, para um Outro mundo... É inútil voltar à aparição de Aschenbach na medida em que a madrugada se impõe e a dor dos seus olhos expostos à luz fraca, do dia nascente, - ver sobre o assunto Image et Son nº. 251, - mas voltamos para esta mala que não o deixa. Preta, engastada de cobre, tachada das iniciais G.V.A., não seria seu próprio caixão? A obstinação de Aschenbach a querer pagar o gondoleiro que o conduz ao Lido “contra sua vontade” não tem explicação lógica; a única que podemos achar é mitológica, mas ela é decisiva: após a morte, as almas devem pagar o barqueiro que as transportaram do outro lado do Acheron, sob pena de se verem condenadas a vaguear. Preocupado a não ficar preso a essa alusão de ordem cultural que não somos obrigados a conhecer, Visconti introduz, por meio do primeiro flash-back, uma seqüência que podemos, razoavelmente, interpretar como sendo a da morte de Aschenbach e situada forçosamente no passado. Para não chocar demais os espectadores, doidos por verossimilhança, e para os quais precisa também tornar plausível a hipótese de um Aschenbach bem vivo, o médico que examina o corpo deitado num sofá fala “de uma grave crise cardíaca”. Mas a imagem aqui traz às palavras do médico um desmentido, que assinala a aqueles que sabem ver uma realidade muito mais grave: o rosto do herói é, sem dúvida, o de um cadáver e não é uma crise cardíaca que pôde pretejar as olheiras, nem sequer branquear, a este ponto, o rosto deste homem, mas a morte. As lágrimas do seu amigo, virado para ele, confirmam esta impressão: choramos deste jeito quando alguém está somente doente?
Se Aschenbach está morto desde o início do filme, a mala que o acompanha e que está posta no centro do seu quarto é bem a imagem do seu próprio caixão. O papel que esta interpretará na seqüência e notadamente quando ela desaparece na estação de trem traz um argumento suplementar. A cena da estação de trem, na qual se anuncia curiosamente a perda desta mala como um evento extraordinário, - onde poderíamos, no entanto, melhor perder uma mala do que numa estação de trem? - está enquadrada em duas seqüências-chaves, absolutamente idênticas nas suas trajetórias pelo espaço, mas opostas nos seus conteúdos. Bem que o caminho até a estação de trem nos mostra a imagem de um homem oprimido, vacilante, envelhecido e enterrado na sua infelicidade, a volta mostra, pelo contrário, o rosto de um homem muito diferente: Aschenbach acha a força de se levantar do barco que o leva até o Lido, de fumar, de assobiar ligeiramente e mesmo de sorrir. O sol ilumina um rosto rejuvenescido e, quando abre a janela do seu quarto do hotel, é uma praia realmente animada que surge na sua frente, contrária à descoberta morna e lívida dessa mesma praia no dia de sua chegada. Entendemos: a mala-caixão extraviada, Aschenbach sobe novamente para a luz e a vida. A cena na qual ele cumprimenta Tadzio que caminha na praia, consagra, então, a apoteose dessa extraordinária ressurreição.
Poderíamos produzir outras provas para sustentar mais adiante esta interpretação e, talvez, deveríamos começar por aquela cena que aparece antes de todas as outras, bem no final do filme, como se o autor quisesse, com isso, nos obrigar a revê-la, caso tivéssemos descoberto o essencial da sua proposta só no último instante, à luz desse último índice: quando o menino da cabine levanta a cabeça do músico que acabou de rolar no seu peito, descobrimos, no espaço de alguns segundos, o rosto terrivelmente preto e decomposto de um cadáver putrificado.
No ponto em que chegamos, não podemos deixar de questionar os elementos que participam da ordenação dos últimos minutos do filme e que refletem, como vamos ver, todas as interrogações que podemos nos fazer das atitudes de Aschenbach, das suas decisões, ou da interpretação do ator Dirk Bogarde. De fato, se o herói está morto desde o início do filme, suas atitudes, suas decisões ou seu “jogo” remetem a um significado mais amplo (provavelmente metafórico) do que aquele que poderia associar-se aos últimos dias de um velho homem. Há no espetáculo deste homem que morre, diante dessa podridão vestida de branco que se decompõe frente aos nossos olhos, uma ressonância mais profunda do que aquela suscitada somente pela destruição física de um corpo. Sabemos com que domínio Visconti inscreve sua proposta na matéria dos elementos que dispõe, sua organização, o equilíbrio sutil que ele estabelece entre o visual e o auditivo, essa arte especificamente cinematográfica pela qual o cineasta se expressa antes da palavra, já que vimos, aqui mesmo, que a imagem não hesitava contradizer o verbo. Mas o cinema tagarela tão freqüentemente a torto e a direito que os espectadores bocejam quando ele se cala e que expressa muito mais, como nos últimos minutos de Morte em Veneza que muitos acharam “de um insuportável tédio”.
Essa última seqüência abre-se para um canto de Moussorgski que preenche o espaço vazio da praia filmada em panorâmica. Este canto é o de uma infelicidade. Não somente a Primeira Guerra Mundial estende aqui sua sombra invisível, mas o futuro mais distante projeta a sua, pela presença de duas meninas vestidas de preto, isto é, já vestindo o luto de uma outra guerra. É nesta “decoração” particular que Aschenbach fará sua aparição, minúsculo, perdido nessa luminosa imensidão que o faz titubear, que ele deveria evitar, mas que parece querer enfrentar impulsionado por algum poder invisível. Nessas condições, precisamos achar na segunda morte de Aschenbach um significado mais amplo do que o fim de um artista abatido pela cólera. Talvez seja a interpretação de Dirk Bogarde que traz a luz mais nítida sobre o personagem do músico e, com isso, sobre a verdadeira dimensão do filme. Esta interpretação foi julgada por muitos como sendo “aberrante”, mas ninguém se perguntou se, por acaso, Visconti não tinha aí algumas razões sérias de conduzir seu intérprete para este registro com o risco de desagradar. Evidentemente, a substância da obra passa precisamente por esta “interpretação” de Bogarde que pode parecer “aberrante” em relação a Lancaster-Salina que era uma “identificação”. O registro dos atores difere como os dois filmes que se situam em níveis diferentes: se o Príncipe Salina pertence ainda ao número dos vivos, Aschenbach já está morto, ou vamos dizer que está tão perto da sua morte, tão encurvado nela que ele perde, na confrontação com ela, a máscara convencional do seu rosto social; ele não pode mais escapar de si mesmo, nem sequer pode mais se comprazer em outro lugar do que nele mesmo porque está inteiramente prisioneiro da sua própria decomposição. Como poderia, então, compor? Como poderia ele interpretar o jogo da delicadeza ou da simpatia que entra, em boa parte, no equilíbrio das relações sociais? É porque ele precisamente não interpreta mais aquilo que seu verdadeiro rosto desvenda, através dos tiques, como o rosto da homossexualidade, - que é um outro aspecto da obra, - ressoa sobre a máscara e a maquilagem do cabeleireiro, pois é indo até o máximo da caricatura que a verdade do ser aparece. É quando o ser está inteiramente dedicado à sua paixão que ele esquece seu rosto de convenção. Tudo é impostura, menos a máscara. Proust tinha entendido isso muito bem, quando mostra, pela última vez, no final de sua obra, o barão de Charlus ao Rond-Point (à Rótula) dos Champs-Elysées: o brilhante aristocrata cedeu lugar a um palhaço enfarinhado, mas é no rosto do palhaço que o Narrador avista pela primeira vez a verdade de Charlus quando cai a máscara. O que irrita no jogo de Bogarde é que ele nega nossa presença. Mas não há nesta imagem controlada e elaborada pelo cineasta, - ninguém acreditará que Bogarde foi livre de seu jogo! - não há nesta visão de um homem que se olha a imagem do pensamento ocidental condenada à sua própria contemplação nessa Europa à agonia, na qual a civilização defunta não orna mais do que os museus ou algumas cidades como Veneza; essa Europa colonizada por forças, - o grande capital, notadamente, - que a ultrapassam e que ela se submete passivamente? As reações esporádicas não mudam o curso profundo dessa lenta apatia e se parecem com as veleidades do herói de Visconti. Mas o que fez mesmo este “herói”? Por exemplo, ele poderia muito bem atingir Tadzio, alguma coisa poderia nascer entre eles, pois o jovem homem não proíbe nada. Mas Aschenbach prefere seu sofrimento, pois ele não tem mais a força de escolher a vida, essa vida que ele pode atingir apenas na condição de aniquilar a moral, esta moral ligada ao mundo de ontem, a este mundo que morre. Não, não é tarde demais, a escolha do sofrimento é aquela da lucidez, pois o sofrimento é preferível à morte; ela lhe permite sobreviver, aproximando-o dele mesmo; ela prolonga nele a ilusão de pertencer ao mundo que o cerca.
Quando o acompanhamos no seu quarto, a mise en scène se ordena ao redor das suas idas e vindas de um espelho para o outro, de um reflexo para outro. Aschenbach é só mais uma sombra tentando parodiar os vivos, que vai até beijar os clichês fotográficos da sua mulher e da sua filha pequena, - reflexo beijando outros reflexos, - como se ele esperasse extrair, desta forma, um pouco de energia antes de se aventurar além do espaço circunscrito pelas paredes do quarto, no centro do qual está posta a mala-caixão que ele encontra titubeando como um tutor, cada vez que o mundo exterior terá quebrado nele a ilusão de uma possibilidade de existência normal. Todas essas voltas de Aschenbach no seu quarto fazem pensar na imagem alegórica de um morto que teria tido a audácia de deixar seu túmulo. A cada escapada fora do refúgio, a luz de fora ou o ar, - ver sobre este assunto como ele é incomodado pelo calor e o siroco, - o constrangem a voltar “para a casa dele”, vencido pelo espaço e pelo tempo real.
Mostra bem que a utilização do zoom, - processo técnico empregado abusivamente, - encontra aqui uma justificação essencial! Destruindo a dimensão do espaço, ele contrata o tempo para criar um espaço fictício e autônomo: o espaço interior do pensamento. Quanto Tadzio anda ao redor dos pilares da galeria que conduz à praia, a mise en scène, - utilização do zoom, - anula o intervalo entre o músico e o jovem e os faz se reencontrar sem se tocar. Neste momento preciso, entendemos que Aschenbach não pode e não quer atingir Tadzio, a não ser pelo espírito. A recolocação em questão do herói, - os flashes-back testemunham isso, - da sua vida, dos seus gostos, da sua ética está bem completa, mas é tarde demais para considerá-la nos fatos. Ele permanece lúcido, mas fica impotente. Reencontramos aqui o drama maior entrevisto acima, que subentende toda a obra: Morte em Veneza é também, e sobretudo, a Morte do Ocidente.
(Revue du cinéma, fevereiro 1972)
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