JORNADA TÉTRICA, Nicholas Ray, 1958 por Jean-Claude Guiguet
Seria necessário retomar toda a obra de Nicholas Ray para melhor penetrar no mundo singular e ruborescente desta Jornada Tétrica, mundo que desde os créditos desponta em planos sucessivos como tantos acordes harmônicos em busca de um tema, tema que exprime aqui a busca desesperada e dolorosa de uma arte de viver, de uma harmonia reconquistada longe do mundo conhecido e civilizado, rumo a esse horizonte onde a água e o céu se confundem, ao lado desses pântanos onde a natureza - entendamos por isso também a face de Deus - encontra-se ainda intacta, isto é, ainda perigosa e imprevisível nos seus caprichos, rumo a esse mundo acordado ao ritmo das estações, submisso às pulsões do cosmos, esse mundo onde o paraíso e o inferno convivem, atraem-se, misturam-se voluptuosamente um ao outro, como o bem e o mal arbitrariamente separados pelos homens muito preocupados com a segurança e os contornos bem definidos.
Estamos longe portanto dos esquemas maniqueístas que dizem respeito hoje à defesa da natureza, bastante além - ou aquém? - desses mitos derrisórios que são a ecologia e o meio ambiente socorridos mormente pela administração burocrática, mitos que Nicholas Ray denuncia com quinze anos de antecedência na seqüência da almofada cheia de penas que Christopher Plummer rasga diante do tribunal onde cochilam todos os notáveis locais.
O barco que leva o herói de Nicholas Ray através dos Everglades é também a embarcação precária do homem tentado pelo desconhecido, o homem que recusa o conforto cotidiano, a ordem estabelecida, atraído instintivamente pela aventura, entendida aqui no sentido de Conhecimento. Christopher Plummer se distancia da fauna que pia nas praias, nas plataformas ferroviárias, nas ruas ou nos locais de lazer de Miami para descobrir aquela que povoa os pântanos, os crocodilos, as aves, os répteis certamente, mas também esse pandemônio de foras da lei unidos sob a autoridade de uma espécie de divindade mitológica (Burl Ives), de barba flamejante, imagem vivente - ele aparece no visor da câmera fotográfica de Plummer - de uma ordem natural que teria sobrevivido aos desvios do progresso, das leis e da moral bastarda que predominava entre os habitantes da costa da Flórida então em plena expansão econômica. Recusando-se a ser uma súplica em favor da natureza, Jornada Tétrica exprime a tentação do mistério do desconhecido, tentação que se torna aspiração de todo ser e desejo de conhecer, de sentir profundamente aquilo que ainda é estrangeiro, ao risco de ser tragado para sempre.
A obra se articula em torno de três movimentos, três ações, três deslocamentos no tempo e no espaço que são as três “viagens” de Christopher Plummer de Miami aos Everglades. Esquematizando ao extremo - o que deveria no entanto ser evitado, mas o espaço limitado aqui servirá como desculpa -, podemos dizer que a primeira viagem é aquela do reconhecimento topográfico dos locais e a descoberta de um mundo “diferente”; a segunda sanciona a relatividade dos valores preconizados pela civilização; a terceira é aquela da iniciação e da integração, iniciação aos ritos que regem a ordem instintiva e natural, integração ao coração de um universo que faz da revolta a condição essencial da sobrevivência do homem apaixonado pela liberdade. Essa descoberta de uma outra vida passa pela embriaguez sensual, a iniciação utilizando os eventos irracionais da fascinação que provocam os efeitos conjugados do álcool, do fogo, dos pratos ardentes sem esquecer o acordo tácito do homem e do cosmos com a tempestade que estoura nessa noite, como se a violência que todo homem porta em si não fosse mais que o prolongamento da violência natural do mundo.
Após essa noite de delírio, Burl Ives pode jogar sua vida com um adversário que reconhece como seu igual. A morte não é mais um acidente trágico mas ainda uma manifestação da vida: nascida com grãos de palmeira no estômago, uma árvore crescerá certamente no lugar desse homem que se abate lentamente sob nossos olhos.
A morte de Burl Ives é um momento inesquecível com o último olhar deste que matou tantos voláteis, olhar que observa um pássaro branco subindo num céu luminoso: “É verdade, diz ele, eu nunca os olhei!”. Essa descoberta da beleza e da vida à beira da morte não é já o tema de Morte em Veneza? Nicholas Ray substitui esse plano do pássaro branco que se eleva aos céus por um pássaro negro pousando lentamente sobre o homem agonizante. Magnífico: nada é dito, tudo é mostrado. O filme abunda lampejos de genialidade comparáveis a esse; mas como evocar todos? Seria necessário ressaltar também a que nível de complexidade banha o discurso de Nicholas Ray. Nada é jamais definitivo, nenhum preconceito, sempre essa noção ambivalente das coisas, sempre essa preocupação de respeitar a complexidade infinita da vida: no paraíso figurado pelo pântano, Nicholas Ray não é enganado pela serpente escondida pela flor; é um réptil que matará Burl Ives apelidado no entanto de “A Serpente”, e é no inferno de Miami que Christopher Plummer descobrirá seu paraíso na pessoa tão carinhosa de Gypsy Rose Lee. Jamais o universo de Nicholas Ray poderá ser isolado e imobilizado numa fórmula, nunca poderá ser simplificado porque ele é totalidade. Os pássaros não povoam somente os Everglades, eles cobrem os chapéus das damas da cidade que se assemelham às aves de mau agouro, e a teia de aranha que tece em torno de Christopher Plummer a matrona do bordel - que a mise en scène descreve como uma emboscada - é tão temível quanto a mais temível das armadilhas dissimuladas nos Everglades, onde mesmo as árvores são inimigas.
(Saison cinématographique, 1973)
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