O FANTASMA APAIXONADO, Joseph L. Mankiewicz, 1947
por Jean-Claude Guiguet
O Fantasma Apaixonado é o quarto filme de Mankiewicz mas poderia bem ser o último. O pensamento do autor de Trama Diabólica se inscreve numa mise en scène submetida a uma tal mestria do instrumento cinematográfico que ela sucede em apagar qualquer traço de esforço. A dor mais viva se dissimula, assim, sob a aparência de uma comédia ligeira que o tato, a delicadeza de toque, o requintado refinamento e o humor elevam a indizíveis instantes de graça. A gravidade subjacente nasce, aqui, essencialmente da percepção sensível do tempo como essas perturbações atmosféricas invisíveis que anunciam em pleno verão as tempestades, ainda não pressentidas. Como Proust, o grau mais elevado do gênio de Mankiewicz deve-se a uma dupla percepção do tempo: a dos sentidos e a da consciência. Para o cineasta trata-se, portanto, de elevar a percepção do instinto à luz do julgamento, quer dizer, de escolher na função inicial da mise en scène a maior clareza possível. Jamais a comédia americana foi tão longe em romper com os seus estereótipos. A emoção e a inquietude que participam na exploração trêmula de um tempo perdido para sempre asseguram a um gênero subserviente às convenções sua necessária transcendência. Os últimos minutos deste filme constituem sozinhos um dos maiores apogeus não apenas da história do cinema, mas da história da arte, através de uma sucessão de planos fulgurantes que descobrem uma visão do além que evoca aquilo que Baudelaire chamava “os esplendores entrevistos trás o túmulo”. Tudo perece, tudo morre, tudo é engolido mas a força da lembrança da Sra. Muir desafiará o tempo e a morte nesta apoteose da memória triunfante.
A personagem central desse filme único é uma mulher, como na quase totalidade dos filmes de Mankiewicz. Após a morte de seu marido, Lucy Muir (Gene Tierney) rompe com seus sogros para vir se instalar em Cornwall, numa moradia situada à beira do oceano. A Sra. Muir é desaconselhada a habitar essa casa conhecida por ser assombrada pelo seu antigo proprietário, o capitão da marinha Daniel Gregg (Rex Harrison). Lucy Muir persevera. A casa lhe convém e ela não crê em fantasmas. Quando o fantasma do capitão surge, ela não chega a se surpreender. Ela se acostuma então a uma estranha relação repleta de cumplicidade e ternura com esse homem aventuroso e exigente que lhe confiará a narrativa de suas lembranças. Um dia, porém, Lucy não resiste à atratividade de um ser real que ela, no entanto, percebe como mentiroso e vaidoso. Ela trairá seu capitão por um homem já casado. Daniel Gregg não virá mais visitá-la. O tempo passa. Sem mesmo perceber, Lucy se tornou uma velha dama. Um dia no seu quarto, ela morre. Então, após todos esses anos de ausência, eis que surge o capitão Gregg. Ele toma as mãos da Sra. Muir que recuperou a beleza de sua juventude e a conduz para sempre rumo a esse oceano perfumado de ondas e tempestades, rumo a essa vida exaltante e maravilhosa com a qual ela sempre havia sonhado.
Contrariamente à lei geral que faz de um filme de autor a síntese dos que o precederam, O Fantasma Apaixonado se apresenta não como a cartilha ou a gênese, mas como a soma definitiva dos que o seguirão.
Efetivamente toda a obra vindoura pode ser contemplada e reconhecida no hábil jogo de espelhos que o cineasta dispõe ao longo deste filme que se apresenta desde o início sob o signo da clareza cinematográfica, clareza à qual o realizador permanecerá fiel, porque em Mankiewicz “tudo é verdadeiro”. A câmera, pelo seu trabalho de investigação e seu poder descritivo, restitui às coisas suas evidências primeiras. Mankiewicz não é o cineasta dos subterfúgios, dos efeitos de câmera lenta ou das lentes que distorcem a realidade. O fantasma do capitão Gregg não é a alucinação de uma visão. Ele se assemelha a Rex Harrison e vive diante de nós, desloca-se, fala, encoleriza-se, é ciumento... Esta mise en scène, que se funda antes de tudo sobre a nitidez das imagens, não altera, no entanto, a complexidade infinita dos seres e das coisas, mas ao contrário as preserva ao lhes assegurar uma total liberdade. Se o traçado formal é evidente, a intenção pode permanecer secreta. A transparência não é necessariamente límpida. Igualmente a imagem em Mankiewicz sempre transcende a idéia. A inteligência não funciona jamais em rota livre mas sim contiguamente aos caprichos do sentimento. Aqui, a luz da razão e as constatações da lucidez se obscurecem junto às desordens obrigatórias dos sentidos. A transparência nega o pudor, fazendo com que Lucy Muir não resista às incitações de seu ser sensual. Nesta etapa do percurso o autor explora uma das contradições mais fundamentais do ser: como preservar o sonho ao mesmo tempo em que se satisfaz seu desejo de segurança? Mankiewicz retornará a esse dilema para tentar esgotá-lo ao estigmatizar a agonia da vida conjugal. A estagnação, o não-progresso do casal confinado à sua rede de hábitos e a impossibilidade de sair desta armadilha serão o assunto, um ano mais tarde, de Quem é o Infiel? Porque ela sabe por experiência própria que o inferno encontra no casamento a imediata concretização de seu horror, a Sra. Muir rompe as ligações familiares ao aceitar jogar o risco contra a segurança. Ela escolhe a exaltação do sonho com o capitão Gregg, o que a ressuscita, reanimando nela a mulher que ela não é mais. Uma questão se coloca: é de fato um fantasma este homem surgido do vento e da noite? “Eu sou real porque você deseja que eu o seja”, responde o capitão. Pode-se pensar também que as únicas realidades são as ilusões que criamos. Se a Sra. Muir inventa Daniel Gregg, a decepção deste no momento da escolha é a própria imagem do sofrimento da jovem mulher. Com qual arte Mankiewicz filma o movimento de recuo do capitão na presença do seu rival de carne! “Os mundos que eu trouxe ao seu conhecimento, eu não poderei partilhá-los com você”, diz ele a Sra. Muir. Para assegurar a felicidade terrestre daquela que ama ele a deixa uma noite sob a ponta dos pés. Ele evoca então uma última vez sua vida e os lugares que poderiam ter conhecido juntos, “o pacífico e os fiordes do sol da meia-noite, os recifes de Barbados onde as águas azuis se tornam verdes, as Malvinas onde a ventania do sul deixa o mar todo branco”.
Nesses instantes inesquecíveis o cinema atinge uma grandeza verdadeiramente sem medidas. A ausência total de teorias instaura nesta obra um estado de graça que une a vibração do canto e o indizível da música. Nessa arte de correspondências furtivas onde nada pesa nem posa, o prazer estético acompanha sempre a descoberta da verdade. Todos os personagens de Mankiewicz, incluindo os que complicam as intrigas e tecem os mais sombrios desenhos, aprendem a perder a ignorância própria aos sonhos e à infância. Todos um dia trocam a ilusão pela realidade. Se a condessa descalça morre, o herói maquiavélico de Ninho de Cobras se encontrará ainda mais cupido. Instalada na satisfação orgulhosa de haver vencido uma aventura única, a Sra. Muir aprenderá antes de morrer que o capitão Gregg igualmente encantou as noites de sua filha e de Martha, sua serviçal. Última desilusão: os sonhos que criamos não nos pertencem; devemos esperar a vê-los partilhados. Onda em marcha, o sonho é uma criação universal total, portanto igualmente percebido pelos outros. Não sendo reservado somente à nossa percepção, ele se espalha ao redor para reencontrar numa certa medida a função do cinema que consiste a tornar perceptível ao maior número de pessoas aquilo que não era a mais do que uma. Sem nenhuma dúvida possível Joseph L. Mankiewicz é mais do que qualquer outro superiormente convencido dessa função. Se em O Fantasma Apaixonado a escolha dos ângulos da câmera ocupam o lugar do fantasma, em Quem é o Infiel? a da narradora imaginária e em A Condessa Descalça o ponto de vista da estrela defunta enterrada sob a chuva, o olhar da câmera em De Repente, no Último Verão não é ao mesmo tempo o da loucura e o de Deus?
(Nouvelle Revue Française, março 1975)
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