UMA CHAMA NO MEU CORAÇÃO, Alain Tanner, 1987
por Jean-Claude Guiguet


O último filme de Alain Tanner deixa uma impressão considerável. O mote: de um lado o mundo irreal referente às mídias - volubilidade incessante, respostas vagas a questões vãs. Do outro, a intuição vital de uma mulher para quem um mundo sem desejo é incompreensível. Então, como um fogo que se propaga, o erotismo irá ocupar a tela, invadir o espaço como uma vaga. Uma vez iniciada, a máquina não pode parar: vertigem, colapso, derrota... mas também, no final da viagem, a iluminação, o conhecimento. Tudo isso filmado sem nenhum didatismo, encarnado numa perfeição sem rigidez e numa incandescência de um preto e branco um pouco granulado como a matéria rugosa dos primitivos.

Jamais Alain Tanner esteve, tanto quanto aqui, no centro do seu assunto. E como é o seu coração despido, trata-se de uma questão do corpo. O realismo das relações sexuais filmadas sem pudor inútil numa luz que derrota a hipocrisia, adquire uma dimensão moral quase metafísica. Há lá qualquer coisa de indizível, de natureza divina, e é realmente fabuloso. No olhar íntegro do cineasta, a ordem secreta do mundo se inscreve sobre a tela com uma evidência, uma simplicidade irresistíveis. Ele não explica nada; o fortuito revela a existência. A beleza escapa a toda hierarquia como na extraordinária seqüência do strip-tease na barraca de feira onde a tela refrata exatamente o inverso da situação enunciada. No local de exibição e de solicitação, alguma coisa de sagrado circula do campo ao contracampo, entre o olhar anônimo dos homens por detrás do vidro e a beleza triunfante da dançarina. A troca, a generosidade de ambos os lados criam aqui a vida e a santificam ao mesmo tempo na sua miséria e na sua grandeza. Para chegar a essa altura, Alain Tanner utiliza os meios mais simples de sua arte: nenhum signo exterior de modernidade; aqui, mesmo a escolha do preto e branco não se trata de uma pose estética ou de uma pretensão original a todo custo. Uma escritura invisível, que se beneficia de uma presença lírica, a osmose ideal entre o assunto e sua matéria: o corpo que fala ao corpo.

Uma última palavra: num papel dos mais arriscados, Myriam Mézières está inesquecível. É necessário vê-la nas últimas seqüências do filme - entre as mais belas da história do cinema - condessa descalça errante, à procura de uma última felicidade, entre o Cairo e as Pirâmides: bela, frágil, sorridente numa radiante luz de eternidade.

(Pariscope, junho 1987)


 

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