AMARCORD, Federico Fellini, 1973
por Jean-Claude Guiguet


Com Amarcord, Fellini garante ter acabado com sua cidade natal, sua infância, sua família, suas fixações adolescentes. Com suas memórias se necessário for até mesmo inventadas, ele terá dito “liquidado os estoques”. Pois muito bem.

Uma primeira visão do filme deixa uma impressão extraordinária. Há uma constante invenção de imagens (a aparição do navio, o desfile fascista, a caminhada matinal cheia de neblina e visões, o tio louco na árvore, o pavão que abre a cauda na neve). A cor, a luz sobretudo, admiravelmente controladas, conseguem incitar o entusiasmo e fazem de Amarcord um espetáculo fascinante.

Mas os filmes são feitos, por outro lado, para serem vistos uma ou mais vezes? Tomar o entusiasmo de uma primeira visão por um valor de face é certamente uma atitude bastante frívola. Desta forma, assistindo-se a Amarcord uma só vez, pode-se permanecer sob o choque de uma certa extravagância formal e conservar apaixonadamente essa atitude com tudo o que ela implica de equívoco. A onda de entusiasmo e a inflação de elogios que se amparam de uma crítica unânime a cada lançamento de um filme de Fellini talvez tenham por origem esse equívoco.

Uma segunda visão de Amarcord deixa ao menos perplexo. Os grandes instantes permanecem mas a surpresa é dissipada. Entre duas cenas antológicas, discerne-se claramente o desgaste de algumas repetições (o discurso ao clero, o papel da sexualidade adolescente na escolha da adulta, tudo isso proveniente de Fellini Oito e Meio sem trazer nada de novo à questão). A escolha caricatural confina por outro lado à mania e aparece como um procedimento e não como uma necessidade fundamental ou de natureza obsessional (hediondez complacente de certas faces, curvas femininas hipertrofiadas, várias enfermidades que desencadeiam uma hilaridade geral das mais lamentáveis). Além disso, notamos na segunda visão uma certa arte na maneira de dispor aqui e ali os “trechos em destaque” cada vez que o interesse afrouxa ou que a acumulação de pequenos sketches ameaça a solidez do edifício. A própria construção acusa seus limites e o ciclo das quatro estações não é mais que um artifício a mais que nem sempre anula a pobreza anedótica de pequenos esboços postos lado a lado.

Gostaríamos que, além do aparente brilho de uma encenação intoxicada pelo seu próprio virtuosismo, Fellini reencontrasse essa dimensão interior que lhe faz falta depois de alguns anos. Se Amarcord marca, contudo, um nítido progresso em relação a Satyricon e Roma, é que reencontramos por alguns instantes neste filme alguns fragmentos dessa força que foi em outros tempos a sua e a reencontramos, sobretudo, graças à personagem da Gradisca interpretada de maneira sublime por Magali Noël. Ele soube captar no olhar desta mulher alguns clarões de emoção que sozinhos redimem as fraquezas e as facilidades identificadas acima.

Quando as luzes do Rex se apagarem na distância da recordação, permanecerá para nós o lampejo da felicidade que ilumina o rosto de Magali Noël durante a passagem do veículo de prostitutas, ou suas lágrimas quando ela admite ter “tantos sentimentos nela e não ter ninguém para lhes oferecer”, ou ainda seu triste sorriso durante a festa de casamento próxima do seu marido soldado que não encontra nada melhor a dizer em forma de elogio que “Viva l’Italia”.

Um dia talvez, quando ele estiver cansado das seduções aparentes dessa arte cinematográfica que o atordoa como um álcool peculiar, Federico Fellini reencontrará, se não for muito tarde, essa música interior que negligencia ao modo desses escritores que, ao tentarem demasiadamente aprimorar suas escritas, perderam essa palpitação, essa vibração que atesta mais a favor de seus gênios que a perfeição um pouco seca de seus estilos.

(Saison cinématographique, 1974)


 

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