LES BELLES MANIÈRES
por Jesús Cortés


(Les belles manières). 1978. Diagonale (86 minutos). Produção: Paul Vecchiali. Roteiro: Jean-Claude Guiguet. Diálogos: Jean-Claude Guiguet, Gérard Frot-Coutaz. 1° assistente de direção: Gérard Frot-Coutaz. Fotografia: Georges Strouvé (cor). Música: Berlioz, Mozart, J. Strauss, Beethoven, Bruckner. Cenografia: Jean-Claude Guiguet (não creditado). Montagem: Paul Vecchiali, Franck Mathieu, Françoise Dousset. Elenco: Hélène Surgère (Hélène Courtray), Emmanuel Lemoine (Camille Maillard), Martine Simonet (Dominique Maillard, vulgo ‘Domino’), Nicolas Silberg (Georges), Hervé Duhamel (Pierre Courtray), Victor Garrivier (juiz), Howard Vernon (o diretor da prisão), Cirylle Spiga (primeiro detento), Daniel Deroussen (segundo detento), Philippe de Poix (vigia), Denise Farchy (a vendedora de jornais), Yves Barrier (cliente na gare de l’Est), Paulette Bouvet (a florista), Jackie Gabeux (prostituta), Sonia Saviange (prostituta), Marie-Claude Treilhou (prostituta), Ingrid Bourgoin (prostituta), Marie-Hélène Wanneroy (prostituta), Jean Tolzac (plantonista), Chantal Delsaux (uma jovem na prisão), Ship Segala (vadio), Wiliam Bernard (vadio), Pierre-François Moreau (vadio), Jean Macqueron (vadio), Jean-Pierre Gardelli (vadio), Jean-Pierre Barrault (médico legista), Philippe Desmet (rapaz no café), Serge Casado (agente de polícia judiciária).

A estréia de Jean-Claude Guiguet, aos 39 anos, sendo o segundo mais velho do extinto (todos estão mortos, aposentados ou vencidos) grupo Diagonale (depois de Paul Vecchiali e junto a Jean-Claude Biette, Jacques Davila, Noël Simsolo, e os mais jovens Marie-Claude Treilhou e Gérard Frot-Coutaz), que iniciava, sem grandes (ou pouco óbvias) pretensões renovadoras, uma caminhada dentro de uma cinematografia de referência, a francesa, cujas correntezas já estavam mais calmas, depois da efervescência que fazia então 20 anos e as convulsões que lhe veio 10 anos antes.

O final da década de 70 havia revelado também os primeiros trabalhos de Catherine Breillat, Benoît Jacquot, Jean-Claude Brisseau ou Nicolas Philibert, ainda hoje ativos e reconhecidos (poder-se-ia pensar que não muito justamente em relação aos méritos de cada um) pelo que valem, que haviam prolongado o efeito da vaga que aparece ao redor dos acontecimentos de Maio de 68 (Garrel, Pialat, Doillon, Chantal Akerman, Comolli ou Pierre Zucca). Dos “Diagonale”, em contrapartida, quase nada foi lembrado.

Mesmo aqueles que, geracionalmente falando, ficaram entre as duas correntes, como Jean Eustache ou Raymond Depardon, gozaram ou gozam de maior “justiça poética”.

Como primeiro filme, Les belles manières não parece supor a culminação de anos de um pensamento cinematográfico plasmado por fim, com visível gozo, em celulóide, como o que ocorre a muitos filmes da primeira nova vaga: poder dedicar-se finalmente ao que mais se ama. Tampouco se inscreve em um clima propício para manifestações culturais onde o cinema havia adquirido um inusitado protagonismo, como as obras rodadas no término do decênio anterior.

Les belles manières é um primeiro passo em todos os sentidos e um filme extremamente (e contrastando ainda mais com o que se seguiria) limitado, estanque, até mesmo claustrofóbico e sombrio, não sendo nem um esboço nem contendo todas as chaves de sua obra.

É, sobretudo, o retrato do fracasso de uma mulher, Hélène. Uma mulher que não é a encarnação de nenhum “conceito” de grande afeto do próprio Guiguet, que no seu segundo filme, Faubourg St Martin, seis anos depois, criará uma personagem que se parece muito mais próxima (e seus seguintes filmes o corroboram) à sua própria concepção da vida: a generosa e omnicompreensiva, liberal e experimentada diretora de hotel que interpreta Patachou.

Hélène, ao contrário, viveu e vive sem aprender nada de tudo que lhe acontece. E não parece consciente até o último plano do filme de que modo deu rumo ao curso de sua própria vida.

Suas palavras vazias, seu filho, enclausurado voluntariamente em seu quarto, com um milhar de fobias, seu amante, dramática e grandiloqüentemente “despedido” por sempre chegar atrasado (curiosamente este mesmo casal protagonizou pouco tempo depois Corps à coeur de Vecchiali, onde a representação e os “códigos” do amor são erradicados), sua casa, um ambiente que cheira à naftalina, aonde toca piano enquanto através das janelas se vêem os telhados sujos de uma Paris cinzenta e finalmente Camille, o garoto de província (com nome de menina) que aloja em troca de serviços domésticos e que em certo sentido “adestra”… Todos confirmam o contraplano de seu caráter vampírico. O ingênuo Camille virá a ser o seu Jonathan Harker particular.

Les belles manières não funciona dramaticamente - ou talvez o faça de forma demasiado teórica, somado à incapacidade do ator que incorpora o garoto em transmiti-lo - de maneira acumulativa, e isso forma um lastro que torna extremamente surpreendente a brusca mudança de comportamento vinda de Camille, que até o plano anterior ao sucesso que faz virar o filme, após ir comprar e não encontrar margaridas amarelas na floricultura (a empregada, em uma ironia sirkiana, confecciona uma coroa fúnebre), não parece experimentar fastio nem está muito empenhado em viver à sua maneira; adapta-se obedientemente - parece qualquer coisa menos potencialmente subversivo - a todos os costumes derivados de sua nova situação. Nem sequer se rebela quando é atacado por uns ladrões, como se estivesse sedado, impedido de defender-se dos seus agressores. Ela se cura e é embalado como um bebê.

Talvez Guiguet pensasse, não sei se mediado por algum elemento autobiográfico, que tanta candidez como resultado de uma “reeducação” só poderia se cumprir assim, através daquilo que Camille, inconscientemente, só sucederá em “vingar-se” do reflexo dela, daquilo que supõe que a sustenta inclusive fisicamente: sua casa.

Apenas um momento de ironia ante o espelho, utilizando seus perfumes, quando imita o tom da voz dela, é o único dado que poderia levantar suspeitas minimamente de até que ponto estava excedido pelas “belas maneiras” de uma classe que não é a sua.

Guiguet, como faria Bresson em L’argent, filma toda a parte final, sórdida e terrível, com uma determinação quase coreografada, sem romper o ritmo mantido desde o princípio. A justiça deve seguir seu curso porque, como diz o advogado a Hélène, tudo é inevitável, o destino, mas também o processo que pretende reabilitar o desviado. O filme toma repentinamente um inesperado aspecto sócio-político.

Hélène, tão desconectada da realidade como sempre, ainda que desta vez lhe ocorra sofrer as conseqüências indiretas de seus atos, manda-lhe uma caixa de bombons, como se fosse um familiar enfermo ou se tratasse de um compromisso social. Guiguet se encarrega durante todo o filme de potencializar o efeito dos gestos dela, vazios, exagerados, dirigidos a quem não vemos. Exceto a cena com seu amante, nunca reparamos como é a realidade de sua vida social, de modo que nem a vemos andar pela rua. Guiguet roda os planos que Fassbinder descartaria como inconseqüentes.

Les belles manières não quer colocar em cena nenhum choque entre dois mundos, mas bem se trata de um casual e nada proveitoso encontro. Hélène olha Camille com curiosidade entomológica e afeto distanciado, produto de sua solidão, pois não sofre, como Danielle Darrieux em Une chambre en ville de Demy, o efeito da - e nem deve conhecê-la - luta de classes. Em todo caso, todos saem perdendo.

Les belles manières não é, definitivamente, o melhor filme para introduzir-se no cinema de Jean-Claude Guiguet. Sua carreira é exponencial e cada obra superará a anterior até culminar, e não parece que fossem um ponto de chegada, com as luminosas, expansivas, emocionantes, personalíssimas Le mirage e Les passagers, dois dos melhores filmes dessa década.

(Traduzido por Felipe Medeiros)


 

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