UM JOGO LIMPO por Matheus Cartaxo Domingues
John Flynn nunca esteve só. Seu olhar simples e rigoroso é a conclusão de um método ajustado à interação, à convivência, à troca de idéias com certos indivíduos e em especial aos laços formados com seus atores. Ciente de como estimular o potencial de cada um daqueles com quem trabalhou, entre os quais Sylvester Stallone, Rod Steiger, William Devane, James Woods e Robert Duvall, Flynn lhes conferiu espaço, e eles não se afastaram do tom do diretor a que serviam: veracidade e sobretudo clareza parecem tê-los guiado, como palavras de ordem, no momento em que trabalharam com Flynn.
No cinema, a cumplicidade é um dom raro que permite o esclarecimento do trabalho do cineasta, visto que se trata de uma possibilidade dada ao conhecimento completo a respeito do ator. A câmera torna-se assim uma superfície sobre a qual o ator age e onde revela o que lhe é vital, e o olhar do diretor acaba como que limpo, pela aliança destas forças na cena, de qualquer desempenho incompatível com sua direção.
O olhar que pontua esses percursos, porém, é o da serenidade, e isso já oporia Flynn a cineastas como os irmãos Coen, capazes de cercar seus atores apenas com os excessos mais truculentos. Nesse sentido, o trabalho de Flynn em A Outra Face da Violência é particularmente exemplar: do momento em que o protagonista retorna do Vietnã à cena do assassinato de sua família, o ritmo do filme é perfeitamente ajustado e assimilado à sua passividade, ao intervalo de uma espera que, alimentada pela solidão, assemelha-se estranhamente a um repouso. Portanto, quando a certa altura vemos William Devane no ambiente decadente de um bordel, nada mais resta a não ser a resolução de um arco cuja dramaticidade foi progressivamente desenvolvida no decorrer da obra. A mise en scène deixa de ser então o registro mais ou menos acertado de um comportamento para se alinhar a uma trajetória que liberará essa violência acumulada ao longo da jornada: como um leopardo que observa sua presa, no aguardo pelo momento propício para atacá-la, vemos os movimentos realizados pelo major Rane na arquitetura tortuosa do bordel, a decupagem acordada o tempo todo à retidão do seu percurso. É assim que vemos, em Na Solidão do Desejo, os sentimentos que emergem ferozmente na pele de um Rod Steiger, os chutes e pontapés de Steven Seagal em Fúria Mortal ou os minutos de paz vividos por Stallone e sua namorada no começo de Condenação Brutal, beijando-se como na vez que se conheceram. Os personagens desses filmes têm nos corpos cicatrizes, notam-nas e voltam os olhos sobre si; rememoram quando elas foram impingidas, o desespero daquelas horas ou daqueles dias; a seguir, lançam-se à ação e iniciam a escrita de suas histórias, a marcantes golpes de coronhada, de socos ou de uma luta interminável consigo mesmo.
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Ao assistir numa ocasião ao Meu Tio de Jacques Tati, um diálogo me pareceu especial: a dona da casa tecnológica recebe no seu jardim a vizinha, que a presenteia com uma flor. Ela, surpreendida, diz: “Que linda flor, e é de plástico! Uma flor eterna!”.
“Eu tenho apenas um estilo justo de filmar”, dizia Flynn, o que necessariamente implica um jogo limpo com o espectador, algo que poucos cineastas hoje se mostram capazes de levar adiante. Coube a esse ignorado o registro direto dos eventos que compõem a trajetória dos personagens, à semelhança de Richard Fleischer, Budd Boetticher, Sam Peckinpah ou Don Siegel. No entanto, as pessoas preferem ser enganadas, tal como a dona de casa que valoriza a flor de plástico por julgá-la eterna. No intervalo entre a ignorância e o reconhecimento, restou à obra de Flynn ser desprezada, e com isso um exemplar de cinema que não cede a rótulos e de enorme frescor, desapegado de amarras ou de lirismos vãos, foi esquecido. A visão de seus filmes, porém, evidencia o absurdo dessa situação. A diferença entre os Coen e artistas como Flynn, Fuller, Jean Rustin e Theodore Géricault é que, ao contrário dos filmes dos primeiros, as personagens dos segundos nos causam a sensação desconfortável de não sabermos se observamos ou somos observados. Enfim, não há nenhuma distância.
Sem partir de intimidações intelectuais ou algo que o valha, é assim que esta obra oferece muito mais perspectivas para os espectadores sobre o que é o cinema do que outros filmes e cineastas, expoentes de uma crítica acomodada, quase extinta. Diferente deles, John Flynn joga limpo.
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