UMA CANÇÃO DE AMOR
Les passagers é um ensaio sobre a vida metropolitana que evoca Simmel e Benjamin, composto de travessias sokurovianas mas também de tranches de vie warholianas, entre Blow Job e I a Man: um close-up na intimidade da masturbação, escancarado sobre o desejo e a solidão; as palavras como gestos e liturgias; e as canções, interrupções do percurso do mundo, como no Vecchiali de Change pas de main ou no Resnais de Amores Parisienses ou, ainda, o La visiteuse do próprio Jean-Claude Guiguet - outrora ator e assistente de Vecchiali e Biette, e crítico de cinema. ![]() ![]()
Corpos e memórias, matérias e obsessões, rostos e carícias, conversas e tonalidades afetivas que revelam o embate do mundo (pós-fordista), expondo o ser humano à sua própria natureza incerta e desprevenida, não-especializada e indeterminada, e, ao mesmo tempo, a um mundo aberto. Leituras de romances, citações fílmicas (entre outras a do amado Johnny Guitar e La maman et la putain), extrações autobiográficas, todo um diálogo da escritura que esculpe, no teatro das várias ramificações de um bonde, identidades que de vez em quando, com tenacidade e delicadeza, perseguem-se e perseguem a si mesmas, um sinal, um apoio, uma expressão, um amor, uma carne a encontrar, possuir, com a qual se unir, para em seguida dançar como os delicados movimentos de câmera, aveludados, suaves como uma carícia que, entretanto, às vezes, dá lugar a imprevistos, e poéticos, enquadramentos: panorâmicas rapidamente esboçadas, oblíquas, suspensas, que divagam, ou instantâneos sublimes e desnorteantes que mais uma vez desmentem a simples filiação do cinema à fotografia, pois o presente se desfaz sob os nossos olhos, na duração dessa visão desses carros em ruínas, desses pneus abandonados na chuva, desses espectrais conjuntos habitacionais em colapso, sucatas abandonadas, desgastadas, catastróficas, ruínas desoladas como nos filmes de Béla Tarr, onde os corpos diminuídos, esmagados pela chuva, no entanto resistem: nós somos esse corpo. ![]() ![]() ![]() ![]()
O filme todo se compõe de movimentos como uma sinfonia, de uma cidade, de um estar no mundo (manifestada no deslocamento contínuo do animal humano, que por definição é um ser indefinido) descrito nas linhas, nos contornos e nas esculturas, verdadeiras, que Guiguet sabe criar nesta busca desesperada, apaixonada, sincera, que escava na morte, no luto de uma civilização em bancarrota, na solidão, mas que nunca é niilista ou complacente: política e poesia, poética do social, a lama e as estrelas[1], como em Elia Kazan. A precisa realidade social, na qual hoje se joga, ou se deteriora, o nosso caráter, tem sua gênese nas entranhas, no furor e no medo que se aglutinam e se esbarram nesse bonde, mundo gehleniano (contexto vital genérico e reserva de aventuras, incógnitas e surpresas), lucreciano clinamen que faz com que colidamos uns com os outros, expondo-nos ao risco e à possibilidade, sempre em equilíbrio precário, sujeitos a uma freada brusca e imprevista, de uma virada muito brusca. O progresso do social (“a abençoada idéia do progresso", como diz um dos atores do filme), contra o qual alertava Benjamin, ou seja, a ascensão do patológico, não faz desaparecer o maravilhoso, a beleza, o enamorar-se. E até mesmo a rebelião de uma multidão precária e mutável, intercambiável e pronta para descer na próxima parada - e justamente por isso sua indecisão congênita e sua não-especialização - é, ao mesmo tempo, tanto aberta ao possível, ao tumulto e à descontinuidade quanto a tornar-se - no pós-fordismo que mobiliza afetos, linguagens, intelectos, flexibilidade e virtuosismos - mero perfil profissional (adaptabilidade às mudanças) e espinha dorsal da produção de mais-valia. ![]() ![]() ![]() ![]()
O social é ligado ao espaço interior e, juntos, estes se redefinem e se reconstroem na linguagem da criação que sobre a tela traz os corpos e fantasmas que na vida perseguem sonhos e paixões, rostos vencidos da realidade, psicologias desiludidas, loucas, temerosas, expectativas e estações da alma (estamos num bonde chamado desejo, delírio, medo, obsessão, encontro). A doença, que sobre o filme sempre estende sua terrível sombra, é essa ruptura do elo entre a poética e o social, espaço íntimo e locais comuns. ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]()
O de Guiguet é um corredor compartimentado que certamente explora o tempo do inferno, da modernidade e da AIDS, da instabilidade e da intermitência (tanto da natureza humana constitutivamente indecisa e indeterminada quanto do trabalho flexível, que o capitalismo pós-fordista colocou juntos em produção), mas que, não obstante, atravessando a dura realidade dos fatos, infectados e infecciosos, recupera uma constelação de sentido, uma saúde, na qual se inscreve um outro tempo, de histórias paralelas, reais ou inventadas, que expandem e descentralizam o mundo declinante aqui e agora, precipitado em um amontoado de sucata. A eternidade através dos outros rumo ao eterno retorno. Guiguet joga com Benjamin, Nietzsche, Blanqui: os seus passageiros retornam mas estão sempre expostos a esse lucreciano clinamen da aventura e do encontro, eternamente retornando a essa possibilidade de bifurcação através das histórias dos outros, astros de um universo que quer escapar da opressão: os passageiros, como os centros de força nietzschianos ou os mônades leibnizianos, são numericamente limitados, ainda que, através de outros, são prospectivamente infinitos, correndo em direção aos outros, contestando a boa ordem do mundo desestabilizado (Fugitive beauté/Dont le regard m’a fait soudainement renaître, C.B.). É a eternidade do desejo que brota do desespero dessa modernidade patológica. O que tem o mundo a fazer doravante sob o céu? (Baudelaire). Além disso: o mundo existe, dura (Baudelaire). E dura nas suas catástrofes. E nas flutuações, do bonde e de seus passageiros. A luz se apaga, mas duas bocas selam um beijo uma sobre a outra: o frio da morte e a doçura do coração. ![]()
Les passagers é uma duração das paixões e um olhar-viático repousado sobre os caixões negros que ocupam a alma da Cidade e sobre a Esperança que obstinadamente bate as suas asas contra um Tempo que engole sempre mais cada minuto que passa. É a Verdade destas imagens carregadas de presente até que se estilhaçam, intensa, eternamente insistente, vestígios da morte, de oposições e envolvimentos, expectativas e esperanças e impulsos. Les passagers é a voz do homem. |
2010 – Foco |