INTELIGÊNCIA DE JOHN FLYNN
por Bruno Andrade


John Flynn was one of the Good Guys in a town where that’s mighty hard to find.

C. Courtney Joyner, roteirista de Do Sussurro ao Grito (The Offspring, 1987, de Jeff Burr),
Duro de Prender - Ninguém Pode me Matar (Prison, 1988, de Renny Harlin),
A Guerra dos Donos do Amanhã (Class of 1999, 1990, de Mark L. Lester),
Trancers 6 (2002, de Jay Woelfel),
diretor de Trancers 3 - A Luta Pela Sobrevivência (Trancers III, 1992)
e amigo de John Flynn

Uma obra de arte, entendida dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador. É isto que constitui a peculiaridade de uma obra de arte realmente vital e a distingue da inanimada, na qual o espectador recebe o resultado consumado de um determinado processo de criação, em vez de ser absorvido no processo à medida que este se verifica.

Sergei M. Eisenstein

O que pode um cineasta aportar ao cinema? Provavelmente pouca coisa além daquilo que já foi fixado pelos anos e anos de alcance que o cinema teve como espetáculo popular. Um alcance que ainda é e provavelmente será cada vez mais incalculável, que conjugou tudo o que uma arte, em pouco mais de setenta anos, transcendeu da técnica, da sociedade, do pensamento humano de uma tecnologia, da história e da filosofia que nela tomaram parte. Um cineasta que não procede de uma aguda capacidade de observação, de uma atenção extraordinária aos componentes do seu exercício material, de uma inclinação natural à síntese em tudo o que produz, não tem como efetivamente propor o que quer que seja de concreto e relevante à atividade cinematográfica.

Se hoje em dia autores completamente destituídos de qualquer tipo de interesse (técnico, dramático, plástico) ou importância (histórica, humana, social) são cada vez mais injustamente alardeados por aquilo que menos são capazes de manifestar - uma onça, uma nódoa discreta, um vestígio mesmo que moderado de originalidade -, isso nos lembra que ainda há trabalho a ser feito. A despeito de uma crítica que já incorporou a visão historicizada que universidades, sociólogos de cultura de massa, jornalistas medíocres e toda uma fauna pitoresca de intelectuais se apressaram em fazer do seu passado, o cinema é ainda uma “cidade aberta”, capaz de acolher em meio à paralisia dos valores estáveis e a selvageria dos mais vacilantes o arejamento que acompanha aqueles que ainda nem foram estabelecidos, necessário acesso à abrangência de uma arte ainda jovem. Que uma imagem prolixa e precocemente ultrapassada do cinema conquiste uma adesão desmesurada não chega a nos surpreender, em vista do desconhecimento generalizado e da falta de curiosidade da grande maioria dos seus atuais espectadores; que ainda seja indispensável solicitar do leitor uma atenção especial quando escrevemos sobre cineastas com os créditos de Gerhard Benedikt Friedl, Park Kwang-su, Jean-Pierre Mocky, Alberto Fischerman, Sergio Sollima, Raffaello Matarazzo e John Flynn, isso sim nos dá a medida exata do caminho a ser percorrido.

Talvez esta introdução nos desvie um pouco do fato que motiva a escrita deste texto - comum, ao que parece, ao próprio exercício crítico, fundado na tentativa de fazer com que um terceiro veja algo que jamais tenha se dado conta ou que vira apenas com os olhos nublados de preconceitos, de colocá-lo em frente a esse novo objeto para depois deixá-lo a sós com o mesmo. O fato, enfim, é este: como o leitor já deve ter se dado conta, não sem alguma ausência de surpresa, nós gostamos do cinema de John Flynn.

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A inteligência não é mais rara no cinema que em outros lugares, mas é suficientemente rara para ser digna de comentário sempre que se manifesta. De Na Solidão do Desejo a Testemunha Mortal, a obra de Flynn se constitui um documento vivo sobre a maneira pela qual foi percebendo, delimitando, eliminando, apurando e resolvendo a questão, precisamente, da inteligência. Filmes como A Marca da Corrupção e Scam, onde cada gesto é dirigido de modo a revelar a inteligência dos personagens compostos por intérpretes da fluência de James Woods e Christopher Walken, não apenas são raros como indispensáveis: estar atento à cena e dela exprimir um sentido, um afeto (coisa ainda mais rara que a primeira, e que no final das contas separa o talento da vulgaridade), o abreviamento e a essencialidade na distribuição dos detalhes de sua criação, é exatamente o que Flynn persegue.

Efetuando na maioria das vezes seu experimento no quadro particular do filme policial, Flynn examina os comportamentos de indivíduos forçados por circunstâncias inexoráveis a agir violentamente. O caráter muitas vezes brusco dessas ações possibilita a esses personagens a chance de um conhecimento mais completo, mais determinante de si mesmos. Até aqui nada de novo: de John Berry a Joseph Losey, passando por Abraham Polonsky e Irving Lerner, essa é a premissa de grande parte das obras que constituem o que chamamos de film noir. A originalidade de Flynn, e onde se sobressai como pouquíssimos cineastas dos últimos 40 anos foram capazes, está na capacidade de coincidir o processo do conhecimento do personagem pela ficção ao do ator pela direção. Aqui, como em Brisseau, concisão e nitidez se fundem para conferir aos eventos o ritmo vertiginoso da deflagração.

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É preciso de saída à arte estabelecer um meio de apreensão da natureza buscada. A estética já começa com a escolha do elenco. Atores devem suscitar ângulos possíveis. O conhecimento que o cineasta possui da matéria é o elemento que faz com que sua visão elimine qualquer obstáculo à disposição das forças em cena. Admirador de Melville, Flynn recupera do grande cinema de ação uma virtude mais importante que a austeridade como artifício necessário à descrição das trajetórias fatais dos seus heróis, e nos seus melhores momentos demonstra uma afinidade natural com nomes como Preminger, Bresson, Fleischer e Ozu, unicamente por ser capaz de deter essa força que aplica no desenrolar da ação o peso da cena. Ainda mais que o rigor marcial de The Outfit e Rolling Thunder nos faz supor, Flynn partilha com esses cineastas uma expressão particularmente incorruptível da mise en scène cinematográfica.

Scam é, nesse sentido, notável. Filme secreto, que parte das verdades latentes dos seus protagonistas para determinar no percurso de suas ações uma série de pormenores que mais tarde reconheceremos como traços essenciais da forma que o filme vai tomando sob os nossos olhos, Scam é a história de dois estelionatários que se apaixonam. O olhar de Flynn é de uma simplicidade espantosa: de início somos assaltados pela redução de todo um universo de fascinação em fragmentos de planos que nos apresentam a imagem inequívoca de um mundo de angulações imprevisíveis e ilusões. A inteligência de um cineasta se dá a ver principalmente quando sua simples faculdade de observação substitui um alvoroço de formas para compor o retrato de um universo repleto de arestas e variáveis. A presença marcante de Lorraine Bracco, o desempenho preciso de alguns gestos de fragilidade, seu cabelo esvoaçado pelo vento da noite, a beleza madura expressa em um sorriso de sedução, sua figura voluptuosa imediatamente incorporada ao movimento sinuoso da lua sobre um mar indistinto que compõe o fundo do plano, são elementos que se completam numa consecução de elipses expressivas e ricas em sentido, efetuadas com um brio e uma exatidão que não podem pertencer senão ao talento mais tranqüilo, um talento que à altura de Scam ou de Nails, filme imediatamente anterior ao primeiro, parece já provir de uma sabedoria proverbial.

A lucidez de um intelecto não sacudido pelo mundo de alternâncias e traições do qual extrai o retrato mais íntegro é o que entendemos aqui por incorruptibilidade, reflexo impassível da forma com que Flynn visiona a parte impura do homem. A clareza na repartição dos ambientes na decupagem de um espaço, o trabalho sensível com as escolhas de eixo (arte na qual Flynn verdadeiramente se excede, demonstrando todo o conhecimento adquirido como assistente de direção nos sets de Robert Wise, John Sturges, J. Lee Thompson e Phil Karlson), uma luz que obedece escrupulosamente a lógica da representação de um espaço pela decupagem cinematográfica, a importância decisiva dada ao trabalho de equilíbrio na composição do enquadramento, como lembra Jesús Cortés no seu texto sobre The Outfit, e sobretudo esse olhar imperturbável que conduz ator e personagem a uma mesma finalidade são instrumentos que possuem nos filmes de Flynn o peso de sentenças morais, superfícies límpidas que formam a base de uma visão capaz de resistir à sedução da canalha, retratando-a sem precisar ser dela cúmplice.

Eis o aporte de Flynn, na realidade o aporte único de todos os grandes cineastas, ao cinema: a crença na inteligência do espectador.

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A vítima em potencial se aproxima de Lorraine Bracco, vista de costas. “Beautiful view”, diz ele, referindo-se supostamente à visão noturna de uma pequena baía onde vemos ancoradas algumas embarcações (lanchas, iates), e contra a qual vemos - como ele - o corpo sensual de Bracco. Nós a veremos novamente, outra vez de costas, contemplando a vista para a cidade da sacada do quarto em que sua vítima está hospedada. “Beautiful view”, diz ela, enquanto o trouxa se agacha para pegar umas bebidas. Em Rolling Thunder, vemos a família de Tommy Lee Jones reunida à mesa de jantar. Jones surge, no fundo, junto ao major interpretado por William Devane - ambos fardados. Devane se distancia, encaminhando-se à porta da casa; Jones se aproxima para avisar a família que sairá com o major para uns drinks. Ele e o pai se olham por um tempo; o pai entende o que está para acontecer; os dois absorvem bem o momento e se despedem, diante da incompreensão total do resto da família, enquanto Devane observa tudo de uma distância - a da morte. Nenhuma demagogia e, no entanto, tudo está dito e feito, pelo silêncio e no espetáculo: um pai que perdeu um filho sem poder se despedir, um filho que se despede do pai antes de se perder...

Cada gesto desses é feito por mãos de homem. Por um trabalho minucioso exercido sobre as orientações psicológicas, morais e geográficas da ação, Flynn faz com que os gestos dos atores adquiram um ritmo, uma respiração que vibra e vive em sua autonomia, sem no entanto deixarem de atuar como um elemento de composição perfeitamente integrado a uma estrutura que repercute no mundo sensível o movimento interno dos personagens. Acreditamos que isto seja verdade a respeito da maioria dos filmes, e no entanto como são poucos os que obtêm dessas premissas suas conseqüências naturais...

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Há ainda mais a se dizer. Sobre como, por exemplo, Flynn utiliza sabiamente as convenções dos gêneros para exprimir uma grande beleza arquetípica, induzindo-a a um estado de repouso icônico nos corpos dos atores. É do que lembramos de seus filmes: das costas franzidas de Tommy Lee Jones no momento em que o major William Devane se despede dele, dizendo ao soldado que tudo ficará bem, logo após desembarcarem em solo americano, o prenúncio da tempestade que está por vir contido num simples arrepio que vemos por pouquíssimos segundos no tecido de um uniforme militar; Jan-Michael Vincent em Souls: Liderança Desafiada, desembarcando no porto de Nova York após descer de um navio imundo com tripulantes repugnantes que lhe lançam olhares ameaçadores, suas roupas encardidas e seu olhar contrariado, ainda inconformado por ter que passar seis meses em terra firme, seu corpo estanque como o bulbo do navio que forma com a proa um desenho perfeito em contraste com o movimento da cidade enquadrada ao fundo, seus passos que parecem carregar pesadamente a si mesmos; a sedução de Dennis Hopper por uma bela latina que o conduz a um galpão até ele perceber que está frito, sem no entanto deixar de tirar os olhos das coxas da jovem prostituta, em Nails (Tomas Milian, um deus); as distâncias estabelecidas meticulosamente pela câmera de Flynn e que Rod Steiger, John Phillip Law e Ludmila Mikaël obedecem, vivendo-as desesperadamente, em Na Solidão do Desejo; o triste olhar de Stephen Baldwin em O Sentido do Medo; o olhar por vezes inquieto, por vezes convicto e tranqüilo do mesmo no decorrer de Testemunha Mortal, uma vivacidade que abandona esses olhos assim que Baldwin se dá conta do breu ao qual encaminhou o seu destino e o de sua família; o sorriso que se abre no rosto de John Amos ao final de Condenação Brutal, retribuído pelo detento Stallone no momento em que se vê livre da pena que cumpriu, sua namorada Darlanne Fluegel já o aguardando do lado de fora da prisão; o aperto de mão dos dois homens, a chuva que recebe Sly; o filme acaba, e eis que a verdadeira história começa...

E haveria ainda mais a se dizer. Muito mais.

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John Flynn morreu no dia 4 de abril de 2007, aos 75 anos. Seus melhores filmes são, dentre os que pudemos ver: Na Solidão do Desejo, The Outfit, A Outra Face da Violência, A Marca da Corrupção, Scam, O Sentido do Medo, Testemunha Mortal.


 

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