ELOGIO AO AMOR por Bruno Andrade
“Em sua poesia de musicalidade lírica e singular, Verlaine expressava os arrebatamentos da alma, transpondo seus sentimentos em impressões, através de paisagens nostálgicas e refinadas”. A poesia de Verlaine introduz aquela que possivelmente permanece a melhor imagem dos filmes de Jean-Claude Guiguet, a mais complexa, e sobretudo a que curiosa e paradoxalmente mais corresponde aos dois trabalhos aparentemente mais diferentes deste realizador - seu belo longa de estréia de 1978, Les belles manières, e Les passagers, seu último longa, cujo mínimo que se pode dizer é que se trata de uma das obras mais livres que cineasta algum jamais ousou, como foram nas suas respectivas épocas Sete Mulheres, Os Amores de Astrea e Celadon, O Atalante, Le petit théâtre de Jean Renoir, A Condessa de Hong Kong, As Loucuras de Jerry Lewis e Na Trilha do Sol, um filme cuja expressão, atmosfera, sentimento, os movimentos das figuras e suas diferentes ações são magistralmente registrados pela paixão de um homem implicado em todas as suas faculdades pela unidade do movimento vital.
Do seu segundo longa-metragem, Faubourg St Martin, diremos apenas que mais que os universos confinados de Visconti em Rocco e Seus Irmãos, do Godard de Detetive e das “lágrimas coloridas” de Douglas Sirk, são aos melodramas cósmicos de Nicholas Ray, de Vittorio Cottafavi e Kenji Mizoguchi, além de um filme como Lili Marlene de Fassbinder, a que devemos nos referir para descrever com precisão a beleza de uma tragédia figurada na distância ou na proximidade que afasta ou que une os corpos de dois amantes.
Em Le mirage, de 1992, o espetáculo que Guiguet partilha conosco é o de um sentimento do mundo renascido e com o sangue renovado - daí a “miragem” do título. Um milagre: aqui, a trajetória do estilo acompanhou a maturidade do cineasta e vemos seu espírito conservado em cada folha de árvore, cada graveto, na ondulação das águas, no grão das pedras, na direção do vento, no rumorejar das cigarras durante uma noite misteriosa, na presença invisível que anima toda a matéria vivente do mundo. O cenário de uma grande casa de campo, o contato direto com as estações, uma mise en scène que cena a cena se ocupa estritamente do que ocorre a um, dois ou três personagens - pela sua forma, pela modulação secreta de uma graça ameaçada pelos seus próprios benefícios e que fornece ao filme sua dinâmica e ritmo, o filme de Guiguet se aparenta a Céline. No filme de Brisseau como em Le mirage, é a natureza quem nos confidencia o verdadeiro canto do mundo, num som semelhante ao de Je vous salue, Marie, Como Era Verde o Meu Vale, Haru no mezame e O Menino dos Cabelos Verdes, a propósito do qual Alexis Klémentieff certa vez escreveu: “Não existem autores, apenas existem grandes filmes. O encontro de um homem e uma narrativa, um momento único... O Menino dos Cabelos Verdes é esse momento único prolongado por 80 minutos. Se existem grandes homens é através de grandes ações, de um grande momento de consciência. O Menino dos Cabelos Verdes é um grande homem”. O que se costuma chamar de rigor nada mais é que esse “grande momento de consciência”; assim sendo, Le mirage e Céline também são grandes homens.
Consciência, rigor, liberdade: Les passagers, filme moderno. Como em Verlaine, como na modernidade anunciada por Baudelaire, como nos grandes filmes neo-realistas e os primeiros títulos da nouvelle vague - os quais, como Les savates du bon Dieu um ano depois, Les passagers nos faz lembrar por uma juventude, uma insolência praticamente descartadas e desertadas pela produção contemporânea -, trata-se de unir o indeciso à precisão, de imortalizar em forma de vinheta a experiência vivida, de localizar na fragmentação o impulso de uma forma capaz de “dar conta da realidade humana e de um certo estado do mundo ao recusar o benefício de um desenvolvimento”. Como todos os grandes filmes, o que faz Les passagers ser verdadeiramente experimental é o que também o torna um gesto político de enorme ressonância: se Guiguet refuta “o benefício de um desenvolvimento” na forma com que estrutura sua narrativa é porque a própria noção de desenvolvimento, como foi compreendida no decorrer do século XX, é criticada pelo autor na imagem que detecta do mundo no momento (1999) em que realiza o seu filme. Viajante do século passado, como Rossellini, Fassbinder, Buñuel, Pasolini e Godard, Guiguet fez de cada filme seu um ato vivido, culminando neste Les passagers que é talvez o mais belo de todos; de todo modo, é dos mais belos já feitos, doloroso e apaixonado como apenas as grandes obras de amor são.
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A presente edição é composta por dois textos panorâmicos, escritos por Luiz Carlos Oliveira Jr. e Sérgio Alpendre. Conta também com textos individuais sobre Les belles manières, La visiteuse, Faubourg St Martin, Le mirage e Les passagers, além de traduções do material crítico escrito pelo próprio Guiguet. Visando a imagem mais completa possível de sua obra, incluímos, além de sua filmografia completa, a nota de intenção que o cineasta escreveu para o trabalho efetuado em Les passagers.
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