A OUTRA FACE DA VIOLÊNCIA E A RESSACA DO VIETNÃ
por Sérgio Alpendre


O cinema americano da segunda metade dos anos 1970 expressou, com variável intensidade, o mal-estar da sociedade dos EUA após a crise do petróleo, quando os países da OPEP decidiram pelo embargo econômico como forma de represália ao apoio dado a Israel durante a Guerra do Yom Kippur; de Watergate, escândalo político que culminou com a renúncia do presidente Richard Nixon; e do fracasso no Vietnã, com os soldados já tendo regressado aos seus lares.

Filmes como Taxi Driver (1976), A Outra Face da Violência (Rolling Thunder, 1977), O Franco Atirador (The Deer Hunter, 1978), Amargo Regresso (Coming Home, 1978) e Who’ll Stop the Rain (1978) vão direto na jugular, mostrando essa ressaca difícil de suportar de forma crua, temperada com muita violência e uma densidade asfixiante. Rambo - Programado Para Matar (First Blood, 1982) e O Reencontro (The Big Chill, 1983), além de outros filmes que de certa forma - e muitas vezes por via tortuosa - fazem uma espécie de análise da ressaca da Guerra, surgem depois para não deixar a ferida cicatrizar, expondo a vulnerabilidade moral americana naquele início desastroso da gestão de duplo mandato de Ronald Reagan. Rambo o faz de forma direta, mostrando a dificuldade de adaptação de um Boina Verde; O Reencontro retrata de forma indireta, com alusões a vícios em drogas e demais desconfortos em um reencontro em tempos difíceis, motivado pela morte de um amigo comum. Esses são só alguns filmes, mas a lista é extensa.

O mal-estar também podia ser sentido já em 1975, de forma mais ou menos evidente, em outros filmes autorais, mas que não foram tão diretamente ao ponto, caso de Elite de Assassinos (The Killer Elite, 1975), Nashville (1975), Shampoo (1975) e Um Lance no Escuro (Night Moves, 1975), ou em filmes insuspeitos e mais comerciais como Rocky - Um Lutador (Rocky, 1976), Os Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever, 1977), Joyride (1977), e até em Kramer vs. Kramer (1979), que além de estar sensível à desesperança daqueles anos do pós-guerra, já mostra sinais da vida yuppie que iria prosperar a partir da segunda metade dos anos 1980. No início desta década até hoje incompreendida vimos, por sinal, um renascimento da comédia rasgada, com filmes como Clube dos Pilantras (Caddyshack, 1980) e Apertem os Cintos... O Piloto Sumiu (Airplane!, 1980), que dariam novas tintas ao cenário do cinema americano e atenuariam (ou disfarçariam) a sensação de fim do mundo moral que a década anterior havia passado. Vimos também alguns fenômenos estéticos difíceis de se decifrar: os filmes americanos que de certa forma refletiram o impacto da popularização das produções em vídeo e do videocassete caseiro e a iminente “morte do cinema” pela televisão - O Rei da Comédia (The King of Comedy, 1983), Videodrome (1983), Especiais Efeitos (Special Effects, 1984); as reflexões amargas ou irônicas sobre a desastrosa administração do presidente Ronald Reagan (1981-1988) em diversas obras inteligentes e muito mais políticas do que suspeitavam à época - Grito de Horror (The Howling, 1981 - que parece prever o desastre que seria um republicano no comando naquele momento), Gremlins (1984), O Ano do Dragão (Year of the Dragon, 1985), Robocop (1987) e uma infinidade de outros filmes; uma onda de policiais urbanos que amplificavam o confronto e o sentimento de vale tudo, e também expressavam um mal-estar político com a má gestão dos problemas sociais e econômicos dos anos 1970 - Scarface (1983), Viver e Morrer em Los Angeles (To Live and Die in L.A., 1985), Caçador de Assassinos (Manhunter, 1986), A Marca da Corrupção (Best Seller, 1987), etc.

Mas voltemos à segunda metade dos anos 1970, mais precisamente ao filme de John Flynn, cineasta que nos interessa aqui, localizado no âmago da crise moral americana: A Outra Face da Violência, de 1977. Neste filme duro e seco como um dos diversos estampidos de espingarda de sua banda sonora, vemos as conseqüências da guerra na mente de veteranos que tentavam se ajustar à vida comum. Voltamos a 1973, ano em que se passa a trama, para acompanharmos dois desses veteranos no exato momento em que são recebidos de volta no aeroporto de San Antonio (no Texas), uma das cidades em que a aprovação à Guerra era considerável. A festa é imensa, a TV vai entrevistar os veteranos, as pessoas dão presentes, e a economia, lembremos, ainda não havia sofrido o novo colapso. Mas Flynn filma como se tal colapso fosse inevitável, com a vantagem de já ter vivido o que iria acontecer nos anos seguintes. Do fim de 1973 em diante a situação iria degringolar, como já vimos, e A Outra Face da Violência é o retrato perfeito dessa derrocada econômica e moral, que falseou deliberadamente o espírito da sociedade no recuo no tempo. O ano foi escolhido apenas para mostrar a volta dos guerreiros, mas não se enganem, Flynn fala principalmente dos anos que se seguiram, especialmente de 1975 e 1976.

1973, por sinal, é o ano em que A Quadrilha (The Outfit), sua magistral obra anterior, foi filmado e lançado. A comparação entre o tom dos dois filmes comprova a ferida causada pelos acontecimentos já destacados e que iria se intensificar a partir de 1975. Em A Quadrilha, temos uma trama de vingança muito semelhante à de A Outra Face da Violência. Mas no primeiro inexiste o sentimento de melancolia que faz com que os vingadores pareçam mortos vivos à caça de sangue humano. São apenas vingadores os personagens de A Quadrilha, firmes numa condição temporária de super-homens, captados com rigor graças à frieza e à habilidade de Flynn na geografia dos espaços, nas escolhas da angulação e da distância da câmera, e pelas interpretações inesquecíveis de Robert Duvall e Joe Don Baker. Mas parecia difícil, àquela altura, mesmo com os sinais mais ou menos evidentes no dia a dia, prever como o espírito que envolvia os Estados Unidos seria maculado nos anos seguintes. O tom ainda é o de celebração de um cinema físico, violento e intelectualizado, derivado de Operação França (The French Connection, 1971) e Os Novos Centuriões (The New Centurions, 1972), mas com esperança e final feliz com direito a freeze frame. A Outra Face da Violência tem final relativamente satisfatório, ainda que os dois heróis estejam gravemente feridos. Devane e Lee Jones realizam no clímax um banho de sangue digno de Sam Peckinpah, mas filmado à maneira clássica de Flynn, com uma decupagem primorosa em uma locação ingrata, que impunha escadas, quartos apertados e um balcão que parece ocupar quase a metade de um saguão como elementos do cenário. Conseguiram suas desejáveis catarses: um pela vontade de vingar a morte de sua família e a amputação de sua mão em um triturador de pia; outro pelo desejo de dar um sentido à sua vida, reduzida a lembranças da guerra e a um compromisso matrimonial pouco promissor. O filme todo é banhado em tintas de melancolia que entregam um olhar de lástima para quatro anos antes. Uma lição de como ver um ano específico pelo que iria acontecer depois, como poucos filmes souberam fazer até então, raros conseguiram depois. Além disso, o que aconteceria a esses soldados após o tiroteio final? Como iriam suportar a vida pacata de uma cidade conservadora como San Antonio? Como se livrariam do vício da adrenalina do combate, que parecia ter voltado com força? São perguntas que se impõem no desfecho.

Existe um mistério nos movimentos de Tommy Lee Jones, em sua relação com aqueles que o cercam, e em sua maneira de ver as coisas corriqueiras e sua própria posição como herói de guerra. Mas ele é o coadjuvante de A Outra Face da Violência. O protagonista é o major que não é um zumbi, e recebe presentes da população, incluindo uma maleta cheia de dinheiro (um dólar para cada dia passado longe de sua pátria, uma soma que passava de 200 mil dólares). William Devane, o ator por trás dessa interpretação, tem os lábios cerrados, a cara angulosa e enigmática perfeita para viver tal papel. Ele parece encarar esse mal-estar externa e internamente. Em uma cena importantíssima para essa definição do incômodo regresso, ele tem um longo diálogo com a esposa, logo após um diálogo em que estabelece um caminho para a relação com o filho que mal conheceu. No diálogo com a esposa, a desilusão é sensível, e a câmera de Flynn mantém-se sóbria, como se registrasse um ritual íntimo. Esse major é alguém perturbado, que não encontra respaldo na sociedade que o recebia de volta (apesar dos presentes e apupos), mas podemos prever que um dia ele superará os pesadelos e conseguirá se ajustar a uma vida normal. A desgraça familiar acontece, e é como se o mal-estar precisasse atingir a superfície, tornando-se físico e voltando para o estágio mental ao causar traumas profundos.

O que faz de A Outra Face da Violência o filme mais denso de John Flynn é justamente a época em que foi feito. A necessidade de olhar, de 1977 para um ano chave, 1973, quando a maior parte dos soldados americanos estava voltando do Vietnam e a economia estava prestes a sofrer o duro golpe da crise do petróleo que estouraria em outubro daquele ano, fez com que, à luz dos anos futuros, esse olhar fosse amargo, num tom de penúria que agravava os acontecimentos e o deslocamento existencial de seus heróis. Ou simplesmente traduziria na evidência de suas imagens o mal-estar que na época ainda não era tão sensível, mas que estava ali, à espreita, implacável.

O caminho a seguir

Podemos comparar A Outra Face da Violência também com o filme seguinte de Flynn, Souls: Liderança Desafiada (Defiance, 1980), que opera numa chave de reação ao sentimento de perda das condições de exercer a cidadania, com um grupo de moradores de um bairro se unindo para afastar, sem mortes, uma gangue violenta - os Souls - que aterrorizava a região. Jan-Michael Vincent é o trabalhador portuário que está à espera de emprego nessa região inóspita. Ele não pretende se envolver nesse problema, mas fica amigo de alguns vizinhos, fortalecendo com eles os laços de amizade e, no caso da vizinha de cima, a bela Theresa Saldana, uma determinante paixão.

O filme tem boa dose de violência, como A Outra Face da Violência e A Quadrilha, mostra ruas sujas e cheias de lixo como Rocky - Um Lutador, explora a delinqüência urbana como Os Selvagens da Noite (The Warriors, 1979), mas não se sente tanto o peso da melancolia, o que pode significar que parte da sociedade, incluindo aí a cinematográfica, estava tentando reagir àquele sentimento de falência moral (como mostra a série de comédias rasgadas citadas no início deste texto). Flynn entra com tudo nos anos 1980, aberto a novas perspectivas, como num sentimento que acontecia por vezes, especialmente no âmbito artístico, mas não só, quando uma nova década começava no século XX (o sentimento de vale tudo e de eterna festa dos anos 1920, o New Deal que se seguiu à quebra da bolsa em 1929 e deu nova esperança ao povo americano nos anos 1930, aliado a uma permissividade do cinema americano que duraria até o Código Hays, em 1934, o alto crescimento econômico dos anos 1950, o pop bubblegum nos anos 1960, o hippismo menos contestador movido apenas a paz e amor dos anos 1970, o new wave encobrindo o pós-punk e a cold wave nos anos 1980, um novo levante comercial do cinema independente americano nos anos 1990); Souls trazia um final feliz, mas a luz que invadia o cais de Nova York parecia invadir também os corações dos oprimidos, num interessante movimento de esperança que nem sempre encontrava eco em outros filmes (vide o carrancudo ambiente do Rambo de Ted Kotcheff), e que depois sofreria um novo golpe com o governo republicano de Reagan, e com o cancelamento de programas sociais que já eram insuficientes. Lidar com a violência ameaçadora era a bola da vez naquele início de década, e Flynn abraçava essa idéia com seu talento único.

Os anos Reagan ainda influenciariam retratos urbanos e brutais da sociedade, como A Marca da Corrupção, um dos melhores policiais dos anos 1980 e um dos melhores trabalhos de Flynn. Mas o interessante aqui é ver como o diretor atravessou os anos 1970, passou pelas crises que mutilaram boa parte do orgulho americano e saiu ileso, pronto para realizar mais grandes filmes. Mas isso já é outra história.


 

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