O BRILHO SECRETO DE JEAN-CLAUDE GUIGUET
por Sérgio Alpendre


Jean-Claude Guiguet realizou quatro longas-metragens que estão disponíveis em DVD na França e, nestes tempos de compartilhamento pela Internet, facilmente visíveis para qualquer cinéfilo interessado. No entanto, a fortuna crítica sobre suas obras é minúscula, e, no Brasil, até aqui, nula. O que movimenta nossos jornalistas especializados em cinema a dedicar inúmeras linhas à nova firula de Christopher Nolan, ou a algum documentário brasileiro todo picotado, ou ainda ao mais insípido super-herói recém lançado pelo cinema, seja lá que nome tiver ou de que ordem for (e eu poderia jurar que tal motivação não tem sequer nome, filha bastarda das práticas mais torpes que a profissão insiste em perpetuar), não é capaz de movimentar num outro sentido, o da prospecção, da descoberta de valores ainda por serem reconhecidos, dos quais Guiguet certamente é um dos mais recompensadores. Não se trata de valorizar o desconhecido em detrimento do conhecido, fazer com que o pouco visto consiga sobrepujar o muito visto pela força de palavras infladas, ou mesmo de estimular um levante de nossa vaidade por estarmos na frente dos outros, por percebermos que há tesouros ainda a serem descobertos. Trata-se, somente, de mostrar, propagar, compartilhar esses filmes que permitem o desabrochar da idéia de que, afinal, existem traços mal estudados e mal vistos nesse buraco sem fundo que é o cinema.

Mas se pensarmos bem, como Guiguet seria descoberto por tais jornalistas? Talvez como um francês excêntrico, burguês e cafona, que faz filmes como se o romantismo estivesse nascendo, ou sob um viés de superioridade, que lhe conferisse a posição desmerecida de um sub-Fassbinder, ou um sub-Visconti, ou sei lá que outra atrocidade lhe atribuiriam em favor de uma suposta astúcia de julgamento cinematográfico.

Se esta pauta está longe de encerrar o mistério Guiguet (e nem teria como ser diferente), ao menos podemos jogar alguma luz, ainda que seja para nós mesmos, sobre a descoberta de seu cinema, de sua maneira única de filmar e de seu estilo.

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Guiguet morreu em 2005. Não há mais, portanto, como ser descoberto pelo cinéfilo brasileiro que se baseia unicamente no que chega aos nossos festivais internacionais, cada vez menos pautados pelo cinema. Participante do grupo Diagonale, fundado na década de 1970 por Paul Vecchiali, com quem tinha muito em comum, Guiguet fez filmes únicos em suas desmedidas, nos cortes ousados que criam elipses inventivas e instigantes, nos enquadramentos soltos e quase simétricos. Admirava Manoel de Oliveira, algo evidente sobretudo em seus dois primeiros longas. Mas se repararmos na maneira com que concebe os quadros, vemos que não são geometricamente perfeitos como os do diretor português, nem mesmo ricos em perspectiva como os de Straub (referência certeira sempre que se pensa em Oliveira). Guiguet enquadra de tal maneira que imaginamos algo como um Buñuel mais requintado, por uma forma que permite a contemplação rigorosa sem se submeter integralmente à simetria. São enquadramentos levemente imperfeitos, geometricamente falando, o suficiente para causar estranheza, mas não para ofuscar a beleza do que se enquadra, como o andar e o olhar de Fabienne Babe, as flanâncias dos passageiros de um bonde elétrico (tram), os romances dos habitantes de um hotel ou a compreensão e o carinho de uma mulher de meia idade.

Esse cuidado com o enquadramento tem relação também com sua admiração pela arte romântica, e também pelo classicismo tardio, como fica evidente no plano final de Le mirage. É praticamente impossível não lembrar de John Constable ou Camille Corot durante os planos bucólicos desse filme em que as plantas adornam a paisagem também com resíduos ao vento. Mas outras referências podem ser destacadas, sobretudo na maior parte das músicas utilizadas em seus filmes: Bizet, Schumann, Berlioz, Beethoven, Bruckner, Mozart (clássico que antecipou o romantismo em parte de suas criações).

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Mais do que mil palavras, há um momento de Les passagers (1999) que pode fazer jus ao cinema de Guiguet, ao seu pessimismo e à perfeita análise do que se tornou o mundo durante os anos 1990. São os cinco minutos finais, com duas seqüências introduzidas pela personagem de Marie-Christine Rousseau, que liga a televisão fazendo com que escutemos o noticiário; minutos sobre os quais qualquer descrição é insuficiente para dar conta da força de suas imagens e, principalmente, do sentimento que se completa com a música cantada por Léo Ferré a partir de um poema de Baudelaire, Spleen. Nesses planos derradeiros de seu último longa (e sendo assim podemos considerar o seu verdadeiro testamento, ainda que depois ele fizesse um curta e um média), vemos fábricas desativadas, carros abandonados e quebrados, habitações precárias, lugares desabitados do subúrbio parisiense, pneus amontoados, poças d’água, um cenário desolador em meio à vegetação que insiste em crescer e às pessoas que insistem em sobreviver e se encontrar.

Nesse filme que revela uma lassidão formal inusitada dentro da obra do diretor, com uma pulverização do drama humano entre diversos personagens que nem sempre encontram tempo para se desenvolver (uma tendência do cinema a partir dos anos 1990 que raramente dá bons frutos), testemunhamos o desfecho perfeito para uma das obras mais marcantes de que se tem notícia, e é realmente impressionante (na verdade, é muito triste) que seus filmes, ou ao menos Les passagers, com seu prognóstico cruelmente atual, não tenham causado nenhum alarde fora da França (onde, por sinal, não fez também o merecido barulho).

Na realidade, Les passagers é um corpo estranho mesmo dentro da filmografia de Guiguet. Seus dramas intimistas, centrados em mulheres maduras e suas decepções e perspectivas, são marcados por uma direção elegante, com panorâmicas discretas, enquadramentos bem pensados e atuações líricas, quase cantadas. A mulher criada pelo diretor, encarnada por atrizes diferentes, evolui curiosamente de um filme para outro: da mãe preocupada com o filho problemático e com o “adotado” por acaso, vivida com classe por Hélène Surgère, em Les belles manières, à dona de um hotel que se coloca como protetora (mãe) de outras mulheres, e que já está numa idade mais avançada (a cantora Patachou), em Faubourg St Martin, culminando com a mãe (Louise Marleau) que se apaixona pelo professor de inglês do filho, redescobre a pulsão sexual que, paradoxalmente, irá lhe tirar a vida, no inacreditavelmente bucólico e romântico Le mirage. As protagonistas dos seus três primeiros filmes se envolvem de maneira bem diferente com as pessoas ao redor, e essa diferença de envolvimento será determinante no destino de cada uma. A mãe do primeiro filme não acredita no mal do mundo, e por isso vai ter sua casa incendiada pelo filho adotivo com o filho legítimo dentro; a protetora do hotel age como uma conselheira, guardando segredos e testemunhando frustrações, e assim sente-se obrigada a fechar seu estabelecimento quando a vida de uma das pessoas que protegia se esfacela por causa de um assassinato; a mãe que redescobre a tensão sexual e a própria beleza, quando passa a amar um jovem que poderia ser de sua bela filha, lança-se com tudo na vida apenas para descobrir que seu corpo não estava apto a suportar essa entrega. Diante das evoluções apresentadas pela protagonista feminina desses filmes, a narradora de Les passagers, mulher aperfeiçoada pelos reveses, compreensiva e protetora como uma santa, pode ser considerada um fantasma. Se acompanharmos a progressão de longa a longa, ignorando a diferença de idade entre Patachou e Louise Marleau (que é a mais nova entre as protagonistas), e lembrando que essa evolução implica na morte da terceira encarnação feminina, a fantasma/narradora do quarto longa se impõe quase que inevitavelmente com amplas condições para observar o mundo de modo mais frio, e por isso mais justo. Não à toa Les passagers termina com a câmera plantada num cemitério. Não é exatamente o enterro da civilização em pleno 1999, mas da mulher mostrada por Guiguet nos filmes anteriores, que foi mãe, protetora, conselheira, testemunha, amante e doente. Para onde iria seu cinema após esse longa terno, perspicaz e duramente realista fica difícil de imaginar. Curtas são insuficientes para se ter uma idéia. Fica evidente, contudo, que o diretor seria capaz de realizar novas estranhezas, diferentes desafios.

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Como sempre acontece com os grandes cineastas, a luz desempenha um papel de destaque na estética de Guiguet. À escuridão dos interiores dos dois primeiros longas, Les belles manières e Faubourg St Martin, se contrapõe à claridade dos dois longas seguintes, Le mirage e Les passagers. Assim como a escuridão acompanha o sentimento dos personagens nos dois primeiros, sobretudo do jovem interiorano (Emmanuel Lemoine) que responde ao chamado de trabalho de uma senhora de meia idade (Hélène Surgère, atriz habitual de Paul Vecchiali), trabalho que consiste em cuidar do filho recluso (Hervé Duhamel), que não sai de casa “por temer o olhar das pessoas”, em Les belles manières, ou das mulheres que enfrentam as diversidades da vida em Faubourg St Martin, a claridade no campo e na cidade provocam sombras emotivas nos personagens de Le mirage e Les passagers. Mas se olharmos direito, toda a carreira de Guiguet é desenvolvida num caminho semi-circular traçado com muito rigor, que se inicia dentro de um túnel, para buscar, aos poucos e timidamente, o céu aberto, não evitando as necessárias voltas para dentro do túnel. Nesse sentido a abertura e o encerramento de Les passagers são emblemáticos. É para dentro do túnel que o tram vai, dando início aos créditos, saindo logo depois para que seus passageiros vejam a luz do dia e o subúrbio de Paris, conversem e interajam entre si, criem uma espécie de rede social em movimento. É no meio da escuridão, com a câmera localizada no cemitério, vendo o tram passar ao longe após uma despedida tocante da atriz/narradora Véronique Silver, que o filme se encerra, ao término dos cinco minutos mais impressionantes dos anos 1990. Entre uma escuridão e outra, pessoas que procuram, perseguem, desesperam-se, amam, transam, xingam, dizem impropérios em voz alta dentro do veículo. Entre um negrume e outro, a solidão é escancarada menos pela condição solitária das pessoas, mas por não encontrar no outro o eco mais fiel de seus sentimentos. Quando encontram, é por um breve momento, ou depois percebem que era um eco falso, movido pelas circunstâncias. Mas elas continuam procurando a luz, incansáveis.

Não é exatamente o que vivemos hoje, nestes tempos de frivolidades das redes sociais? Guiguet profetizava algo que a Internet, já popular à época, tornaria inevitável cerca de dez anos depois. Um beco quase sem saída para o relacionamento humano, cada vez mais sujeito a mediações e reflexos, o que favorece a covardia e o anonimato. Aquele passageiro que irá vociferar palavras curiosas sobre homossexualidade e lesbianismo encontraria, nas redes sociais e Internet em geral, um imenso campo de exploração para suas inseguranças e revoltas, protegido por um anonimato que a luz que invade o tram de Les passagers não lhe possibilita.

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Conforme mencionado na primeira parte deste texto, existe um mistério em Guiguet, que é apenas aparentemente indecifrável, apesar de sua dimensão; um mistério que se insinua por variadas progressões e caminhos nem sempre iluminados, alguns deles brevemente percorridos por aqui. Seus filmes são daquela nobre estirpe de arte que se desvenda aos poucos, guardando mais segredos para revisões futuras. Estes segredos se desdobram em outros, multiplicando-se com a mesma velocidade com que os primeiros segredos são conhecidos.

Descobrir o cinema de Guiguet exige muito mais do que vaidade e prospecção; exige um passo além da sensibilidade do olhar. Exige sobretudo uma disposição para entender seu mundo - algo como se o século XIX ainda não tivesse terminado, apesar de todas as descobertas científicas e evoluções tecnológicas. Requer humildade para se dedicar ao que seus filmes podem ensinar e disposição para buscar além do que suas histórias simples nos contam. O tesouro é valioso demais para permanecer escondido.


 

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