SUPLÍCIO DE UMA ALMA, Fritz Lang,
1956 por João Gabriel Paixão Sobre um segredo Último
filme feito por Fritz Lang nos EUA, Suplício de uma Alma é marcado por
uma idéia de encerro, de conclusão, um “fim” no sentido mais incontornável,
intransigente, violento do termo - algo que se percebe pelas tentativas de
aproximação que os textos críticos terão de maneira ampla com a obra final de
Lang, e mais particularmente com este filme. “Esta é a única obra-prima da
história do cinema sobre a qual não temos nada a dizer, precisamente porque
ela não diz nada”. A sintomática frase de Luc Moullet, no seu habitual tom
assertivo, descreve, digamos que dentro do limite do tangível, um estilo
regido pela neutralidade, opacidade, pela economia mais rígida de recursos.
Existe “algo” que Lang pretende contemplar, e é este “algo” que suga a cena
para sua contenção absoluta, sufocando a profundidade, comprimindo o
fora-de-tela para os limites do quadro. Este “nada” evoca justamente um
radicalismo último, a saturação máxima da dramaturgia até ela entrar em
colapso e implodir, e o que sobra é este vácuo, espaço idealizado imune das
artimanhas do discurso e da imprecisão da palavra. Sem possibilidade de
respostas, sem contracampo, estão aí as condições impostas por Lang ao seu
“experimento”. E o
experimento é o seu enredo. Nele, o editor de um jornal, Austin Spencer
(Sidney Blackmer), convencido de seu papel legitimador, pretende derrubar a
lei da pena de morte. Apoiado pelo seu genro Tom Garrett (Dana Andrews), ele
incrimina-o de um assassinato através de falsas evidências, o que leva
Garrett a ser rapidamente o principal suspeito, e, logo adiante, o condenado.
Seria então o momento de ridicularizar a autoridade judicial, através de
provas irrefutáveis e não divulgadas, mas eis que... uma série vertiginosa de
desdobramentos seguem uns aos outros. Na primeira metade, em que indícios são
forjados e a justiça os salienta como argumentos, Suplício já é movido
por uma força oculta que nos inscreve no encadeamento inevitável dos fatos -
a criação da culpabilidade de Garrett. É justamente como uma “criação” que
esta verdade criminal torna-se falsa, e justamente por estarmos cúmplices
desta construção que ela se torna, assim, inaceitável, quase
não-crível. Quanto mais nos é “dado a ver”, quanto mais os fatos se
concretizam à nossa frente, nos deparamos, como que “do lado de fora”, com
toda a encenação do mundo. Esta é a posição na qual Lang coloca o seu
espectador: um lugar ao mesmo tempo privilegiado e maldito, em que os males
não nos alcançam, mas também nos tornamos impassíveis a eles. É isso também
que faz com que Lang deixe de se tornar o criador/encenador, deixe de
intervir, e passa a portar o “olhar onde o desprezo absoluto e uma compaixão
de ordem trágica coincidem absolutamente”[1]. No entanto, apesar deste lugar elevado em que nos encontramos,
o filme também consegue trilhar uma direção. É no
segundo momento que as peças deste jogo até então estranhamente transparente
se desfazem. A “encenação”, antes tida como instrumento dos personagens,
volta-se contra eles mesmos. As duas proposições lógicas que poderiam se
extrair do enredo (Garrett é culpado devido a tais evidências; Garret é
inocente, pois estas evidências foram plantadas a um outro fim) se aniquilam.
Dificilmente há outro filme cujo “final surpreendente”, ao invés de trazer um
ponto de vista inesperado, ou relativizar determinado conhecimento, o libera
a um ceticismo implacável, aportando uma questão mais ampla, e também mais
recôndita, que destroça demais necessidades factuais. A pena de morte, sempre
tão polêmica, pesa no filme como o ar que esvai as falas dos personagens; as
causas do crime importam menos que a capacidade que se teve de ocultá-las. Mas o que
realmente importa? Como destacar alguma coisa em um cenário a nós tão
distante, lúgubre, quase incompreensível? Esse destaque mais parece um resto,
aquilo que conseguiu sobrar em meio ao caos, e é finalmente de sua tenacidade
que se estará admirando. O que sobra é um homem - desnudado,
irremediavelmente desamparado. Diz-se que
Lang investiga sobre a culpabilidade universal de todos nós. Vendo Suplício,
a culpa é somente uma característica dentre todas as possíveis, a mais
adequada para atingir a verdade definitiva de um homem. Quando não podemos
fugir e nem nos hospedar, quando não há o que prever ou delegar precisamente
porque não há o que se dominar, é nesse estágio que, em conjunto,
encontram-se o protagonista, espectador e cineasta a compartilhar um segredo.
Contemplar uma vida, o pulso e a respiração, não se trata de simulá-los
através dos meios possíveis (a câmera, o realismo, a fisicalidade do corpo e
do tempo), mas, antes de tudo, reconhecer que existe um grau de incompreensão
tão intenso, que nem mesmo o próprio personagem o compreende (por isso, a
idéia de culpa se torna imprecisa) e que tampouco a encenação é capaz de
lidar. Sobra-nos somente o “nada”. Nota: [1]
Jacques Lourcelles, Dictionnaire du cinéma: Les Films, Paris: Laffont, 1992, pp. 754-757. |
2009 – Foco |