PROIBIDO por Luís Miguel Oliveira (Verboten!).
1958. RKO (87 minutos). Produção: Samuel Fuller para a Globe Enterprises.
Roteiro: Samuel Fuller. Fotografia: Joseph Biroc (P/B). Música: Harry Sukman,
baseada em temas de Richard Wagner e Ludwig Van Beethoven. Cenografia: John Mansbridge (a.d.),
Glen L. Daniels (s.d.). Montagem: Philip Cahn. Elenco:
James Best (sargento David Brent), Susan Cummings
(Helga Schiller/Brent), Tom Pittman (Bruno Eckart),
Paul Dubov (capitão
Harvey), Harold Daye (Franz Schiller), Dick Kallman
(Helmuth Strasser),
Stuart Randall (coronel), Steven Geray (burghermeister de Rothbach),
Anna Hope (frau Schiller), Robert
Boon (oficial da S.S.),
Sasha Harden (Eric Heiden), Paul Busch (Gunther Dietrich), Neyle Morrow
(sargento Kellogg), Joseph Turkel
(soldado da infantaria). Verboten! apareceu entre dois dos
mais conhecidos e aclamados filmes de Samuel Fuller, Forty Guns (1957) e The
Crimson Kimono (1959). Fuller rodou-o nas mesmas condições que eles, fora
do âmbito de uma major (Fuller já saira da Fox, e filmava agora para um
pequeno estúdio, a Globe Enterprises), quase com a mesma equipe técnica (os
nomes das fichas técnicas de Forty Guns
e Verboten! são praticamente os
mesmos) e gozando da liberdade proporcionada pela dupla condição de realizador
e produtor. Por alguma razão, a encontrar entre as péssimas condições em que foi
distribuído (a Globe tinha um acordo de distribuição com a RKO, que
entretanto mudou de proprietário e “chutou” os direitos do filme, que andaram
a passear entre várias distribuidoras) e o fraquíssimo acolhimento crítico
nos EUA e na Europa (lá vieram os Cahiers
e o proverbial Luc Moullet em socorro de Fuller, aliás num admirável texto
publicado em Junho de 1960) Verboten!
nunca gozou a mesma fama dos títulos que cronologicamente o circundam,
tornando-se até um filme bastante raro. Belíssimo
filme, de guts (“tripas”)
profundamente fullerianas, não custa por isso admitir, por uma vez, alguma
razão à injustiça que secundarizou Verboten!;
pela simples razão (e não se trata de fazer fine bouche a Fuller, não seria nosso gênero) de que The Crimson Kimono e, sobretudo, Forty Guns, merecem ser mais famosos
do que Verboten!. É como diz
(deixemo-lo vir agora em nosso socorro) Luc Moullet no referido texto: “Fuller se situe perpétuellement à cheval
entre un lyrisme frénétique, dont le prototype est sans doute Forty Guns,
et le petit train-train raisonneur et ordonné de l’honnête homme démocrate
(…)”. Simplificando um pouco a idéia de Moullet, que diz que destas duas
tendências de Fuller a primeira é a “melhor” por ser “inata” e
“temperamental” enquanto a segunda é o resultado de uma “aquisição pela
educação”, diríamos, de uma maneira que não foi a empregue por Moullet, que a
primeira tendência foi a que fez recair sobre Fuller as celebres acusações de
“fascismo”, enquanto a segunda foi aquele em que ele as tentou, mais ou menos
deliberadamente, aparar. Verboten!,
filme ambientado nos últimos dias da II Guerra e nos primeiros tempos da
ocupação americana da Alemanha derrotada, e filme que coloca muito
diretamente o “fascismo” (ou mais propriamente o nazismo) entre os seus objetos
de análise, pertence, com alguma clareza e mantendo a dicotomia de Moullet, à
segunda tendência. Mas
justamente por isso, e tentemos agora entrar dentro do filme como deve ser,
os filmes de Fuller de que mais nos lembramos enquanto vemos Verboten! são filmes posteriores, e
até bastante posteriores. The Big Red
One ou White Dog, obras dos
anos 80, que retomam, com uma perspectiva aproximável da de Verboten!, os temas, centrais em
Fuller, da guerra e do fascismo. A guerra, a II, que foi, são os seus filmes
que o dizem, um ponto fulcral na experiência de vida de Samuel Fuller.
Encontramo-la aqui dada naquela espécie de realismo despovoado, meramente
“indicativo” e possuído por uma discreta “estética das ruínas” (toda a
primeira parte do filme, até ao encontro entre o soldado ferido e Helga), que
fortemente antecipa Big Red One, a
sua “autobiografia de guerra”. E de resto, o desejo de realismo na
representação da guerra em Verboten!
(que inclui não poucas imagens de arquivo entre as imagens filmadas por
Fuller) leva Fuller sempre um passo adiante, como se não fossem apenas os
“gestos” da guerra mas as suas “emoções” (cf. Pierrot le fou): a total imersão no jogo do matar ou morrer, o
sentido de embriaguez, para além do bem e do mal, do moral e do imoral, que
ele provoca. Ninguém filmou isto como Fuller, e em Verboten! é quase inacreditável a seqüência do ataque ao som dos
primeiros acordes da Quinta Sinfonia de
Beethoven - seria “ingênuo” se Fuller usasse Beethoven (ou outro compositor
qualquer) para fazer “épico”, mas não é “épico” que ele quer fazer; antes uma
equiparação, uma maneira de nos dizer: não percebem o que é a embriaguez da
guerra se não souberem o que é a embriaguez da música. Essa cena de Verboten! vai mais longe do que
qualquer coisa de que Kubrick se tenha lembrado, e mesmo Coppola, no Apocalypse Now, precisou de “escudar”
a Valquíria (que também se ouve
noutra cena do filme de Fuller) na demência de uma personagem. Depois, o
fascismo. Tudo em Verboten! está
armadilhado desde o princípio - e essa palavra (“proibido”), que os soldados
americanos dizem ler a cada esquina é a expressão, o slogan, dessa
armadilha. Verboten! não deixa de
refletir, de algum modo, sobre os processos de “desnazificação” que os
aliados se sentiram obrigados a levar a cabo nos primeiros anos depois da
guerra, e aliás por mais de uma vez, nos diálogos entre Helga e David, vem ao
caso a questão da diferença entre um “alemão” e um “nazi”. É por aí que, a um
nível individual, faz sentido a extrema generosidade, e considerável
ingenuidade, do protagonista, porque a sua limpidez e clareza contrasta com a
enorme ambigüidade dos que o rodeiam, a começar pela própria Helga
(personagem a quem o filme guarda cuidadosamente a possibilidade de ser uma oportunista dissimulada), continuando no
traidor Bruno e chegando à espantosa personagem do miúdo Franz, que exprime o
fascismo como condicionamento educativo e coloca o problema da sua transmissão
e propagação (e se Franz traz à memória, até fisicamente, o miúdo do Alemanha, Ano Zero, de Rossellini,
também podemos dizer que se trata do white dog desta história). Mas,
chegando aqui, percebe-se bem que o realismo “indicativo” de Fuller o seja
por razões mais complexas do que limitações de orçamento: a Alemanha
arruinada, os werwulf, transformam-se quase em mero pretexto
(historicamente justificado, é certo) para falar de processos que se repetem,
de muitas formas diferentes, em sítios diferentes do mundo. Será por acaso
que Verboten! pode, a partir de
certa altura (o “forasteiro” numa cidade corrupta; a cena do
quase-linchamento; o incêndio do final), parecer-se tanto com um western? |
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