AGONIA E GLÓRIA - A RECONSTRUÇÃO por Luís Miguel Oliveira (The Big Red One - The Reconstruction). 2004.
Lorac Productions (162 minutos). Produção: Gene Corman, Richard Schickel
(reconstrução), Douglas Freeman (reconstrução). Produção executiva: Brian
Jamieson (reconstrução). Roteiro: Samuel Fuller. Fotografia: Adam Greenberg
(Metrocolor e P/B). Música: Dana Kaproff. Cenografia: Peter Jamison.
Montagem: Morton Tubor, Bryan McKenzie (reconstrução). Elenco: Lee Marvin (o
Sargento), Mark Hamill (soldado Griff, 1º batalhão), Robert Carradine (soldado
Zab, 1º batalhão), Bobby Di Cicco (soldado Vinci, 1º batalhão), Kelly Ward (soldado
Johnson, 1º batalhão), Stéphane Audran (combatente da resistência no hospício),
Siegfried Rauch (Schroeder - sargento alemão), Serge Marquand (Rensonnet),
Charles Macaulay (general/capitão), Alain Doutey (sargento Broban), Maurice
Marsac (coronel), Colin Gilbert (prisioneiro de guerra), Joseph Clark (soldado
Shep), Ken Campbell (soldado Lemchek), Doug Werner (Switolski), Perry Lang (soldado
Kaiser, 1º batalhão), Christa Lang (condessa alemã), Howard Delman (soldado
Smitty), Marthe Villalonga (madame Marbaise), Giovanna Galletti (mulher na
vila Siciliana), Gregori Buimistre (soldado alemão assassinado pelo Sargento
na 1ª Guerra Mundial), Shimon Barr (enfermeiro alemão no hospital tunisiano),
Matteo Zoffoli (Matteo), Abraham Ronai (marechal alemão), Galit Rotman
(grávida), Guy Marchand (capitão Chapier). Agonia e Glória é o
grande filme de guerra de Samuel Fuller. Mas dizer “um filme de guerra” de
Samuel Fuller é quase um pleonasmo. Nenhum outro cineasta filmou tão
permanentemente “em guerra”, mesmo quando não filmava “a guerra”. Nenhum
outro teve uma carreira tão belicosa, capaz de suscitar intensa crispação e
desconforto à esquerda e à direita. Samuel Fuller, americano do Massachusetts
nascido em 1912 (e morto 85 anos depois) trazia a guerra dentro de si, a tal
ponto que se transformava no seu idioma - toda a gente conhece, mesmo os que
nunca viram, a sua participação no Pierrot
le fou de Godard em 1965, improvisando uma resposta à pergunta “o que é o
cinema?”: “a film is like a
battleground”. A exibição
da versão “reconstruída” de The Big Red
One é um dos pontos altos da edição deste ano do “Indie Lisboa”. E faz
todo o sentido, porque Fuller, dentro dos cineastas do “cânone” clássico de
Hollywood é aquele com um trajeto mais independente - porventura só
comparável ao de Nicholas Ray. Homem de relação complicada com os grandes
estúdios, praticamente desde os anos 60 que filmou fora deles, para pequenas
casas de produção ou, como aconteceu várias vezes, com financiamentos
estrangeiros, mormente europeus. Verdadeiro maverick, Fuller talvez seja em
Portugal um cineasta pouco visto, sobretudo pelas gerações mais jovens - mas
esta estréia da reconstrução de The Big
Red One talvez possa contribuir para inverter as coisas. Os campos
de batalha, Fuller conhecia-os bem, e por experiência própria. Antes de The Big Red One filmou-os várias vezes
- Mas há
outros filmes de Fuller que sem serem genericamente “de guerra” são
claramente filmes “em guerra”. Pickup
on South Street (1953), cujo fundo de luta anti-comunista não fez bem
nenhum à reputação do cineasta junto da crítica francesa (já desconfiada
desde obras como The Baron of Arizona
e o par de filmes sobre a Coréia), ainda tutelada pelo comunista ortodoxo que
era Georges Sadoul (poucos anos mais tarde, as defesas inflamadas de Fuller
feitas nos Cahiers por gente como
Truffaut, Godard ou Luc Moullet criariam um verdadeiro “caso” na cena crítica
francesa, ao mesmo tempo que ajudariam a definir e a precisar o que era efetivamente
a “política dos autores” e quais as suas bases teóricas). Ou, num filme muito
desconhecido, realizado imediatamente a seguir a The Big Red One, White Dog
(1982), derradeira (e porventura a mais veemente) abordagem de um dos temas
que atravessam toda a obra de Fuller, o racismo. White Dog, história de um cão treinado e condicionado para atacar
gente de pele negra, é um dos filmes mais eloqüentes sobre o caráter
“pavloviano” do racismo, e supremamente perturbante no modo como filma uma
espécie de “guerra civil” invisível e subterrânea - tanto assim que nos
Estados Unidos o filme mal foi mostrado (e não em sala), e pouca divulgação
no estrangeiro teve (a RTP passou-o aqui há uns dez anos). Finalmente, Tinikling - The Madonna and the Dragon,
o derradeiro filme de Fuller (em 1990, feito para TV), concilia a guerra com
o jornalismo através do périplo de dois repórteres pela revolução filipina
(outro filme muito pouco visto, que a Cinemateca exibiu no princípio dos anos
90, e que é um felicíssimo fecho de obra até porque “apaga” o péssimo Street of No Return que Fuller dirigiu
em 1989, o pior dos seus filmes). Mas Fuller
também avisava constantemente que nos filmes era impossível mostrar a
“verdadeira guerra”. “Homens com medo, homens a vomitar, homens a borrarem-se
nas calças, homens a dispararem sobre os seus próprios companheiros - o
espectador comum não quer sequer ver o que é a verdadeira guerra: há milhares
de tipos mortos em combate que nem se conseguem identificar, ficam feitos The Big Red One é uma
espécie de autobiografia de Fuller na II Guerra. Há um soldado de charuto,
autor de romances policiais, que o “representa”. Mas é só mais um soldado, é
uma “âncora”. O que conta Fuller não
tinha muitos meios. Não tinha possibilidade de ter milhares de figurantes.
Isso reforçou o lado “intimista” do filme - os mesmos quatro ou cinco
soldados atravessam o filme incólumes, e numa cena até se goza com o fato
(“como raio é que nunca vos acontece nada?” - “não nos acontece nada porque são
sempre os ‘replacements’ que são atingidos”). Mas, por o filme se encontrar
sempre a esse nível, é extremamente interessante o modo como expõe as
relações entre os soldados e os “outros”, sejam os soldados inimigos sejam as
populações locais. A confraternização com os soldados franceses, que depois
da invasão da Tunísia no princípio do filme deixam de ser “franceses de
Vichy” para passarem a ser “franceses livres”; a festa com as mulheres
sicilianas, o miúdo que troca uma informação importante por um caixão para
enterrar a mãe, a rapariga que oferece a Marvin um arranjo floral para o seu
capacete e que involuntariamente se oferecerá como “escudo” protetor; o órfão
que será o “filho adotivo” de Marvin (a inacreditável cena do piquenique) já
na Alemanha, o encontro “espectral” com um pelotão de velhos da Volksturm e
depois o seu reverso, a cena com um crack baby (como os aliados chamavam
aos miúdos imberbes que Hitler lançava para a batalha nos últimos tempos da
guerra). Muitas destas cenas parecem funcionar como “rimas” umas para as
outras, mas todo o filme tem uma estrutura em rima - e circular, com o
princípio (Marvin matando um soldado alemão, na I Guerra, sem acreditar no
que ele dizia: “a guerra acabou”) a refletir-se no fim (uma história
parecida, mas passível de redenção: “you’re gonna live even if I have to blow
your brains out”). “Redenção”, sim: uma das cenas mais impressionantes de The Big Red One passa-se à sombra de
um inacreditável Cristo crucificado, o mesmo sítio do assassínio cometido por
Marvin (ele que diz “nós não assassinamos, nós matamos”) - mas da segunda vez
que Marvin visita o lugar, agora na II Guerra, em vez de uma morte há um
nascimento (os soldados ajudam uma mulher grávida a dar à luz, numa cena que
o humor sardónico de Fuller descomprime, com o trocadilho entre poussez e pussy…).
O alemão da cena final é aliás acompanhado ao longo do filme, muitas vezes
como rima para a personagem de Marvin, como se fosse o seu reverso
hitleriano, e por isso mesmo, por esse caráter especular, é a figura do
próprio sargento que se complexifica. Deste
filme imenso e virtualmente inesgotável (para mais na nova versão
“reconstruída”) não queremos deixar de referir ainda dois momentos
inultrapassáveis. A sequência no asilo de alienados, onde acontece um combate
sem que a câmera desvie a sua atenção dos loucos em plena refeição; às tantas
um deles pega numa metralhadora dum soldado caído e entra no tiroteio,
gritando uma frase que é contrário do final de Freaks: “I am one of you!”. E, talvez a cena mais genial de todo
o filme, a descoberta de um campo de concentração na Checoslováquia. O
espanto e o terror daquele soldado é o espanto e o terror de todos os
soldados - e por isso ele fica, longamente, a disparar sobre o soldado alemão
escondido dentro dum dos fornos. Dispara justamente porque o alemão estava
escondido no forno - esse forno que Fuller tivera o cuidado de nunca
enquadrar no mesmo plano em que o soldado (assim como não enquadrara os
cativos nem as ossadas carbonizadas no mesmo plano do soldado). Na mesma cena
filma-se a História e faz-se um pequeno ensaio sobre o campo/contracampo como
procedimento de pudor “representativo” - Marvin aparece, sussurra “já o
mataste” mas deixa-o continuar a disparar. De certa maneira, o rapaz continua
lá, a disparar. Nota: [1] Título
português do filme (n.d.e.). |
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